Armando Fernandes

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Incertezas Críticas

Por muitas razões vivemos um período de estridente incerteza. Incertezas de contexto e críticas. Vários estudos e de diferentes opiniões referem as dúvidas a planarem na atmosfera relativas à política mundial e europeia, acerca do papel dos Estados e tutti-quanti em matéria de hipóteses referentes ao ano de 2017.
Nós por cá quedamo-nos a assistir a cómicas cenas ao modo da guerra do Alecrim e da Manjerona, pensar dá trabalho e o trabalho dá saúde, logo um qualquer membro da Confraria do badalo dira: que trabalhem os doentes, que pensem os outros. E, no entanto, todos nós pensamos, os anexins o comprovam.
O ano está a findar, o consumismo aguça o engenho na arte de todos consumirmos mais, daí a necessidade de cada qual pensar no quanto possui ou pode gastar na quadra natalícia e afins, as janeiras ainda contam.
Ora, em Janeiro (Jano das duas faces – o passado e o futuro – primeiro mês do calendário juliano e gregoriano) vamos receber novas e maus mandados do aumento de «cousas» as quais tocam a todos, razão da acuidade «no poupar está o ganho», nós acusados de esbanjadores, relapsos à dita poupança, sempre trémulos no momento de pagar, devíamos tentar averiguar como vamos suportar os custos do viver no futuro.
Assim, na incerteza da coesão europeia importa pensar na saída ou saídas alternativas no conspecto regional num quadro de fragilidade económica e acentuada quebra demográfica comum a todos os territórios de baixa densidade. Está a Comissão de Coordenação, as Comunidades Intermunicipais e Autarquias a preparar respostas a contento?
Não querendo «pintar» quadros negros coloco a incerteza apenas numa certeza: a perda de população é evidente apontando os estudiosos fora da propaganda a necessidade de recebermos centenas de milhares de homens e mulheres a fim de refazermos as reservas populacionais no desejo de Portugal enquanto Estado não acabar nos Atlas e Compêndios como Nação perdida daqui a algumas dezenas de anos.
Nesse pressuposto pergunto se existe um plano de contingência a dizer-nos o número de centenas de milhares de emigrantes-imigrantes a serem deslocados para o Nordeste, termos de referência, datas de início de «acantonamento» dos vindos do Médio Oriente, África e outras paragens, medidas de inclusão social, cultural, espiritual e profissional.
Em breve irromperá a campanha eleitoral destinada a escolher os futuros governantes locais, para lá dos ridículos e raivosos azedumes e birras de gente sem o sentido da medida convém perguntar aos candidatos tudo quanto nos interessa relativamente ao futuro a iniciar-se ontem.
Sem nás ou nefas é imperioso saímos da incerteza crítica do modelo territorial, cabeças políticas dizem assim, outras preferem o assado, as titubeantes um misto de frito e gralhado, chegou a altura azada para ouvirmos as ideias dos interessados de todas as quadraturas em geral e dos desejosos de ocuparem as dadeiras municipais em particular no elucidarem ante tão momentoso problema. Ou não há tal problema?
Incerteza crítica é a respeitante às inserções: estratégia de inserção com flexibilidade? Estratégia de inserção nos domínios da complementaridade sem perda de autoridade política? Estratégia de concorrência com os concelhos vizinhos de forma clara e não dissimulada como já aconteceu?
Acredito que estas interrogações sejam consideradas impertinentes, só goste-se ou não velozes mudanças ocorrem em Portugal, tão velozes quanto visíveis a ponto de não lhe concedermos atenção ou apreço, tal como fazemos o contínuo girar da Terra a motivar graçolas e remoques a Galileu. E, ela move-se…
Seria estultícia da minha parte elencar exemplos de mudança, também não fico espantado se algum leitor encolher os ombros murmurando não lhe interessar cogitar sobre o futuro, a morte é certa, quem cá ficar que o rape, rematando a murmuração.
Não podemos estranhar este tipo de posicionamento numa sociedade ou «era do vazio», eivada de cínicos mesmo sendo ascetas de costas voltadas à criatividade social, às dinâmicas de participação colectiva defendendo a memória expressa nos vigamentos culturais do passado num movimento tendente a perpetuar a nossa ancestralidade.
As campanhas eleitorais nos fins últimos é a conquista do poder dê lá por onde der, antes de chegar à cuspi-te da propaganda seria conveniente, pedagógico, ouvir os candidatos dissertarem e discutirem as certezas que os animam, os projectos em carteira, as medidas a tomar de imediato e a médio prazo se foram bem-sucedidos na empreitada. A ver vamos.
Armando Fernandes
Apostilha. O Bloco de Esquerda voltou a imitar os meninos mal-educados ao os seus deputados terem ficado sentados no final do discurso de Filipe VI. Era convidado de Portugal.
Também Passos Coelho revelou falta de chá (toma-se em pequeno) ao não participar ou fazer-se representar na celebração do 1.º de Dezembro, em Lisboa. Depois admiram-se das intenções de voto nas sondagens!

Criatividade e Cohen

A criatividade não de vende nas farmácias nem nas joalharias, ela é fruto da imaginação e travejamentos de vária ordem escorados em esteios científicos, culturais, técnicos, estéticos e éticos, os de maior calado segundo a minha opinião.
No dia 11 deste cálido mês realizou-se em Santarém um colóquio debate dedicado à criatividade, cabendo a Telmo Faria, presidente da Câmara de Óbidos durante doze anos, agira a dirigir um hotel literário e outros projectos. Porque trabalho na área das indústrias da criatividade estando envolvido em dois projectos um deles de cariz mundial, outro no domínio das cidades criativas fui atentamente escutar o Criativo responsável por colocar Óbidos no mapa e ranking classificativo das localidades exemplo de criatividade.
Em 2000 a vila estava encerrada nas muralhas, viva a meia vida de tantas outras e o vetusto património suscitava ais, suspiros, fotografias aos poucos trota-turistas, contavam-se episódios da época de António Ferro, bebia-se ginjinha e ala que se faz tarde em direcção a Lisboa ou a Leiria.
Hoje da taxa negativa demográfica de 25% passou-se a positiva de 5,6%, no concelho vendem-se 3000 (trezentas mil) dormidas, há pleno emprego, as lojinhas e casas de vendas de surpresas depois das viagens existentes na pequena rua directa da entrada da muralha às portas do castelo, uns seiscentos metros se tanto, têm um volume de negócios na ordem dos 11 milhões de euros ano, a restauração nas redondezas está próspera, no centro histórico coexistem 11 livrarias, bares, e tutti-quanti de objectos artísticos.
A antiga fortaleza estoirou as aberturas dos telejornais no início do Festival do Chocolate, a partir daí a criatividade tem irrompidos dali originando mimetismos, invejas e estudos de vária ordem. O debate suscitou vivo interesse, das 21,30 à 1,15 da Manhã, todos quantos quiseram ouvir, certamente, aprenderam.
Sem a nostalgia da Odisseia, sem a melancolia dos poemas dos regressos, lembrei-me do Nordeste, de Bragança, da sua riquíssima história, da estridente geografia, das pasmadas declarações de agentes políticos agarrados ao vocábulo regionalização ao modo das lapas às rochas. O problema deles é aguentarem-se na vazão da maré. Os detentores de massa crítica a nível de outras instituições entrincheirados nos seus redutos apenas pensam na própria manutenção. Noutros lados a expectativa do futuro deixou de o ser.
Morreu ao grande criativo Leonard Cohen. O aedo cantor, o músico cujo derradeiro disco You WantIt Dorker fala de amores, do mau uso do tempo ou desperdício de algo, de envolvências capazes de nos obrigarem a rememorar não Proust, sim a alegria de plena ocupação dos dias, das noites até a aurora mostrar os dedos violáceos e róseos.
O Cohen recorda as raízes judaicas, em Portugal como no resto do Mundo vivem outros Cohen, este, o Leonardo, de voz cavernosa, canta Himei, Himei (em hebraico, aqui estou), morreu há dias, serenamente, aos 82 anos, ainda na estrada a entoar trovas por ele paridas dolorosamente.
O Cohen cedeu ao Leonardo, este deixou-se enrolar por uma contabilista a lembrar alguns financeiros, a conta do notável compositor sofreu um rombo de milhões de dólares obrigando-o a novas digressões quando devia estar a criar mais e mais poemas, mais e mais canções.
Possuo borsalinos do género dos usados por Cohen, o frio anunciou-se tenho-os colocado na cabeça, desta forma lembro-o na rua, ouço-o e leio-o, ele convida-me à reflexão, daí as sucessivas tentativas de entendimento das causas de o Nordeste não conseguir os êxitos de Óbidos. O êxtase de pensar hegeliano fica agreste ante a realidade. E Cohen lembra no disco da finitude aforismas bíblicos, muitos, a levarem-me até Florença, de Ficino, também de Savonarola.

As Castanhas - Para a Maria do Loreto

Bem alinhadas, reluzentes quais unhas envernizadas, as castanhas, de castanho vestidas, exibiam-se no Festival Nacional de Gastronomia, ocorrido em Santarém. Perguntei sobre a sua procedência. De Marvão, respondeu a Menina. Da memória brotaram memórias do brilho das castanhas apanhadas por meninas e mulheres nos soutos de Bragança e Vinhais, debaixo da luz clemente das manhãs frias a anunciarem o Inverno.
A evocação rebentou-me ao modo das castanhas grávidas de ar interior, puxadas à parição pelo fogo vivo, infiltrado nos assadores, aspergindo os pedaços ao modo de gotas do orvalho gelado na face das destras pesquisadoras dos frutos no emaranhado das folhas e nas rachas dos ouriços.
Naqueles soutos pisados e repisados de Lagarelhos, de Vilar de Ossos, nos soutos passeados das cercanias de Bragança, vi mãos de dedos gretados, vi dedos protegidos até ao meio por luvas grosseiras de lã fiada enquanto os meninos jogavam à arrebunhana, tais dedos laboriosos enchiam cestas e sacas dos frutos pingados a cadência marcial pelos majestáticos castanheiros. Vi!
Entrei inúmeras vezes me apeteceu no ventre da castanheira de Lagarelhos, vozes marotas acusaram-me de em sociedade com o Arménio ter acendido nessa ampla barriga um lume apagado de imediato devido à vigilância de vizinha desconfiada, conhecedora das nossas proezas traquinas. Só ouvimos ralhos e imprecações.
Atropelo recordações no aprazível esparzimento da ternura antiga dos magustos, dos caldos finos, adocicados das castanhas cerceadas, piladas, dos caldos grossos inçados de couves, batatas e chicha gorda comida em cima de pão centeio.
As cozidas com a casca, depois esmagadas por garfos de ferro, comida gulosamente no final da ceia, derivaram em criação de pastelaria fina, parideira da delicadeza baptizada em francês, marron glacé assim se chama, segundo consta os mordomos servem-na às senhoras, mesmo no interior de automóveis luxuosos.
Durante séculos as castanhas ajudaram a matar a fome interior, quase endémica, das comunidades rurais de grande parte de Portugal, a doença da tinta, qual virulenta tinha, apagou da face da terra milhares de castanheiros, ficaram os topónimos: Castanheira dali e de acolá, do Ribatejo, de Pera, Castanheiro de muitos sítios, do Norte, Souto, de fora e da Casa, Soutos, Soutelo, Soutelinho da Raia a delimitar fronteiras. Os meninos bem podiam aprender geografia e tantos saberes mais se lhe ensinassem o ciclo de vida dos castanheiros.
Nomeio Opiano por íntima obrigação, ele, Teofrasto e Ateneu ensinaram-me a ver as árvores tutelares da Terra Fria transmontana, a ficar feliz observando-as recuando o registo até às manhãs de cortinas fechadas de cenceno, até às madrugadas finas de Janeiro, chorosas, de fim de férias, no ir apanhar a careira do Sr. Jerónimo.
O exercício memorialístico é tal como o vento, invisível, intenso, longe da suavidade da brisa, as quentes e boas da canção aquecem as mãos dos turistas a gozarem o verão de S. Martinho na baixa de Lisboa, no tropel apressado bamboleiam máquinas fotográficas, quais achas de guerra dos bárbaros de Átila, a vou roufenha de uma mulher ensina-me: as castanhas são do Norte. O Norte não é Trás-os-Montes respondo a mim mesmo lembrando a ironia de Afonso Praça, do Felgar. Tenho de estar com o Rogério Rodrigues a fim de comermos castanhas e bebermos vinho tinto saudando o Afonso, saudando-nos prazenteiramente.
As castanhas são fruto cumpridor das quatro estações, os chefes de cozinha do estrelato Michelin andam a tecer hossanas e louvores aos produtos da sazão, desde Tóquio (197 estrelas) a Lisboa (vai receber mais), passando por Nova Iorque, São Paulo, Londres, Modena, Roma e Paris (o ancestral umbigo culinário), todos gritam a preferência.
Estes famosos chefes para sorte deles nunca tiveram de comer apenas aquilo que a horta dava, as frutas temporãs e do tempo, as gorduras depositadas na salgadeira e dos potes de unto, e…as providenciais castanhas.
A carta de comeres exclusivamente centrada na castanha desde tempos imemoriais documentados até aos nossos dias, incluindo as especificidades de regozijo está por fazer, não advirá mal ao Mundo se nunca for construída, a herança cultural dos nordestinos fica diminuída. Nada mais. Paciência. A verdade manda dizer: já ficou tantas vezes!
Virá o vento, trará frigidez, cairão as últimas castanhas da estação. Quem irá ao rebusco? Talvez apanhe a ignorância enlaçada no desdém pelo passado. Nunca se sabe!

BOB DYLAN

A notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura deste ano a Bob Dylan atirou-me de imediato para um pequeno espaço ao modo de caveau do Rui Bento, rapazão do meu tempo prematuramente falecido no Brasil. Porque me lembrei dele? De imediato não o descortinei, rememorado o anel das afinidades electivas de entre 1964 a 1967 em Bragança, a reconstituição explicou-me a razão.
Era filho do Sr. Armando Bento (o homem que tornou conhecida a Fábrica Internacional de Automóveis de Turim – FIAT no Nordeste Transmontano) e de uma Senhora elegante, esfíngica, sempre vestida a evidenciar gosto fino, requintado sem alacridade espúria.
O Rui granjeava invejas de muitos por possuir aquilo que a maioria não tinha, sempre manteve comigo cordial relação ao ponto de merecer o seu convite para ouvir música, conversar e tomar uma bebida no tal espaço, exíguo, esconso, fora da luz solar, logo misterioso, suspeito aos olhos dos e das zelotas de serviço contínuo. Especialistas na murmuração exclamada concedendo laivos de escândalo aos seus pintados relatos.
Os gostos musicais dominantes em Bragança ao tempo mesmo no circuito Moderno, Flórida e Poças caracterizavam-se pela imitação descuidada ou então colocando a enfâse nos êxitos transmitidos do nacional cançonetismo transmitidos na televisão, acrescidos dos gorjeios ou trinados estilo Joselito. Lembram-se?
Os menos acomodados e de carteira e não porta-moedas vestiam camisolas de gola alta ao estilo do Ives Montand, todos esbugalhávamos os olhos na contemplação da Greco, sons de bacoca admiração rompiam as conversas quando um ou outro exibia roupa vinda da Loja dos Porfírios.
A cidade qual cortiço ou colmeia (Camilo José Cela) cheirava mofo burocrático, a suor de militares à espera de colocação nos palcos de guerra, as senhoras perfumavam-se aspergindo gotas de Diamante Negro ou Tabu no pescoço e nos sovacos, a fragância Dior custava caríssimo, a Chanel significava transgressão exorbitante pois o preço ultrapassava o do francês patrão de ISL.
Os jornais de Lisboa chegavam um dia depois da sua saída, às vezes três para irritação do Sr. Abel Frederico Monteiro seu estrénuo e desinteressado correspondente. Este senhor também merece reconhecimento perene por parte do poder Autárquico pois durante dezenas de anos matraqueou artigos a darem conta da existência da velha urbe. Carregava e soltava verve irónica envolvida em humor ferino sem transpor a cancela da decência.
Ora, o Rui Bento riscava as normas da vulgata em vigor no que tange ao comportamento de jovens adultos, sim detinha possibilidades, no entanto, manifestava interesses de índole cosmopolita, fora da ronceirice dos meninos bric a brac da burguesia citadina sendo patente no referente à música. A morar para lá da ponte do Loreto o Rui ficava de fora do círculo dos chás do favor mútuo.
Ele abastecia-se no decurso das saídas do casulo bragançano, daí a suspicácia gerada a envaidecer o seu ego. Tinha vinte anos. Devo-lhe a descoberta de vários letristas e compositores, como anos mais tarde o Zé Montanha Rodrigues me falou no Billy Evans. O fascinante autor de Afinidades tem-me concedido horas e horas de prazenteiro ouvir aliviando-me dores não físicas, angústias e horas de chumbo. O genial artista de jazz nunca se torna cansativo, assim o disse a Jorge Lima Barreto no decorrer de um almoço dedica à música de protesto. O musicólogo vinhaense não partilhava do meu entusiasmo pelo extraordinário executante.
A atribuição do Nobel a Dylan (apelido falso usado em homenagem a um grande poeta) provocou-me vontade de o ler e ouvir, a rememoração feita trouxe ao de cima O Rui Bento, cuja figura permanece inalterável para o entendimento do viver numa comunidade que no essencial estava presa à tríade – Deus, Pátria e Família – fosse no quotidiano, fosse nos dias nomeados.
Ouvir o Bob à partida, mesmo sem a cabal apreensão do seu dizer, significava ultrapassar a barreira hipócrita do exercício da máxima salazarista relativa à obediência cega, surda e muda. O respeitinho não era bonito, era obrigatório. Obrigado Rui José Bento, por ao tempo ousares respirar fora do reino circular.

PS. O Nordeste informou-me de nova e execranda maldade da praxe no IPL. O requinte da malvadez vai ao ponto de acoimar a acção de praxe suja. Uma vergonha. E, não se pode exterminar?
• Morreu há dias, nonagenário, o escritor Mário Braga autor de um romance intitulado Reino Circular. Esteve largos anos no índex do Estado Novo.
 

GRATIDÃO

Mesmo nas lojas de curiosidades excêntricas, raras, a gratidão não se encontra à venda. Ao contrário a ingratidão oferece-se a granel, ao copo, a todo o tempo, a todo o momento. Sendo um fragmento escasso, quando leio ou ouço notícias a darem conta de nótulas de gratidão alegro-mo ao modo de menino esfomeado de carinho a quem mão suave faz afago na sua cabeça.
Neste Verão a Câmara de Vinhais expressou o seu reconhecimento ao musicólogo Jorge Lima Barreto levando a efeito a II Bienal a ele dedicada. Terem convidado Mário Vieira de Carvalho a dissertar sobre a obra do vinhaense foi uma boa escolha, no mais interessa-me o gesto da Autarquia, o acto de gratidão.
Também o Nordeste me informou ter a Câmara de Mirandela ter homenageado o seu famoso filho que ficou conhecido pelo nome corográfico da terra onde nasceu, Doutor Mirandela, entenda-se Francisco da Fonseca Henriques. No decurso de uma investigação centrada em documentos existentes na Academia de Ciências tomei conhecimento da existência do saliente facultativo, médico do rei Magnânimo, o qual abusava dos prazeres em especial das doçuras levando-o a ficar gotoso. Para lá do alargamento dos sapatos, as reais articulações rangiam provocando-lhe dores terríveis na companhia de remorsos ante o receio de ir parar às profundezas do Inferno.
Trazer o médico pioneiro no estudo do papel dos alimentos na obtenção de corpo saudável para a ribalta, além de prazenteiro ajuste cultural, é outro registo de gratidão.
Embalado pela feliz circunstância destes dois planturosos exemplos atrevo-me a enumerar quatro personalidades, duas de Vinhais, os Barahona Fernandes, uma de Bragança, o exímio pedagogo Carlos Silva, conceituado professor de Matemática.
Sobre os Barahona Fernandes, existem várias referências de realçar o facto de terem nascido em solo transmontano porque o pai, o médico António Augusto, a residir em Lisboa, ter feito questão de os filhos nasceram em Vinhais. Bonito! Ao tempo, dealbar do século XX, as comunicações eram precárias, as estradas más, piores ainda quando as viajantes estavam em adiantado estado de gravidez.
Na Marinha, na Medicina, na Universidade não escasseiam reputados Mestres dos que sabem, à altura de lhe formularem o panegírico. Deixo a sugestão, de resto neste e noutros jornais já aludi à figura do filho Enrique João eminente psiquiatra, catedrático e Reitor da Universidade a seguir ao 25 de Abril, não por acaso.
No tocante ao Dr. Carlos Silva pode parecer excessivo sugerir a sua exaltação na aura da gratidão. O leitor distraído ou pouco informado (invejoso?) pode confiar à sua camisa o resmungo sem ponto admirativo: era um professor como tantos. Engana-se o leitor. Redondamente.
O Carlos Silva detinha e expandia um fascínio particular no ensinar a gostar-se da matemática, explicável, pela facilidade na apreensão epistemológica da matemática clássica a escorar a matemática moderna. Não vou fazer citações, mas todos quantos conviveram ou partilharam afinidades electivas com o bem-humorado Carlos, nunca poderão esquecer quão arguto era nas formulações dos raciocínios sobre o assunto em discussão ou análise.
A diáspora impediu-me de melhor e mais íntimo convívio com ele nos últimos anos do seu viver, no entanto, em qualquer parte do Mundo onde topo transmontanos antigos estudantes em Bragança, de imediato recordam Carlos Silva. No Rio de Janeiro, um médico no decurso de um almoço regionalista elogiou o contributo de Carlos para ele ultrapassar as dificuldades de acesso à Universidade, em Moçambique e em Macau ouvi louvores ao professor despido de doutorice do mesmo teor.
Não ouso acrescentar aos ilustres acima referidos que no meu entender devem ser recordados os de personalidades vivas, a causa reside na certeza de granjear resmungos de estridência de maior volume porque o despeito é pulsão virulenta a enciumar os nossos corações. Agora, que há mulheres e homens de todas as condições a justificarem pública exaltação, isso há. 

A Geringonça

Soltam lamúrias quais carpideiras a preço de saldo. Invocam o passado sem o terem sabido defender, na deles, a Geringonça é antinatural esquecendo os setecentos mil votos perdidos. E, a Geringonça vai rodopiando.
Fingem arrepelar cabelos existentes e os voados por mor os malefícios do Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, no entanto, socialmente, tudo corre de forma a o girar da geringonça só sofrer atropelos vindos de Bruxelas. As émulas da Kiki (Espírito Santo) ainda tentaram ridículo bater de testo na caçarola. De óculos escuros Ray Ban só fim perceberem não chegarem a duas dúzias. Ponto final. Parágrafo.
Choram lágrimas ao modo dos crocodilos, acusam os socialistas de traidores ao velho esquema, nunca entenderam a canção – mudam-se os tempos, mudam-se as vontades –, a ignorância é atrevida, subestimaram a experiência dos comunistas, as alteridades partidárias ocorridas na Europa, para o bem, para o mal. Néscios, ficaram iracundos.
Rangem os dentes ao contemplarem o desembaraço de Marcelo no enfunar as velas da geringonça facilitando-lhe o deslizar, o Presidente vai ajustando contas antigas, vai traçando o caminho em função dos seus desejos, vai cumprindo o dito do poeta: o caminho faz-se caminhando, de modo a aumentar o seu poder de poder.
Os apaniguados de Passos enterram a cabeça na areia de forma a avestruzes ficarem invejosas, ao invés, os atingidos pela pressa demais do antigo primeiro-ministro (continua a colocar na lapela o signo a enunciar despeito) não esquecem o sofrido, não esquecem as desgraças no BES, não esquecem o truque eleiçoeiro do BANIF. Os áulicos de Passos pensam que o povo são os amáveis empregados do restaurante O Comilão. Podem ler a Time, não leem a imprensa regional.
Os choramingas apostrofam Costa, ele ri-se, negoceia, mete a mão de ferro em luva branca de pelica antes de socar os adversários internos, afastar os incómodos, colocando em prática o ouvido a Marcelo nas aulas na Faculdade de Direito, e a Jorge Sampaio, Vera Jardim, José Manuel Galvão Teles, Victor Wengorovius e César Oliveira, ao redor da mesa do Flórida, no edifício Franjinhas, onde eles almoçavam nos dias activos da semana.
A oposição passista é passadista, anémica, queixinhas, Passos Coelho reduz ao menos possível a ambição de reconciliar o eleitorado vagabundo (um milhão de votos) com o PSD, resgatar o passado, antes das atribulações resultantes do desvario ideológico de assessores tipo Maçães e Morgado.
O líder laranja devia pedir ao deputado Adão e Silva o favor de lhe explicar o jogo do Rapa, no intuito de embaraçar Costa e Centeno, de alegrar os militantes laranjinhas ao opor vigorosa e exaltante barreira às suas políticas. A pionça do Rapa impulsionada por Centeno faz perder, sempre, todos quantos ousam ganhar o salário mínimo praticado na Noruega, Holanda ou Alemanha. As quatro faces da pionça ostentam as letras: R de rapa, T de tira, D de deixa, Põe, de pôr.
O ministro Centeno interpreta as letras da seguinte forma: Rapa tudo quanto pode em impostos sobre quem gera riqueza e emprego, Tira quanto pode em impostos indirectos, Deixa o fisco vasculhar a tua conta bancária, Põe a classe média à míngua se quiser adquirir livros, ir ao cinema, ouvir música num concerto ou comprando discos, fruir o olhar visitando exposições, longe da tentação de sinalizar a aquisição de um quadro. Em suma: a aculturação dos públicos é cada vez mais cousa televisiva. Um desastre. Sim, o dinheiro tem de vir de algum lado, sabemos isso, mas tudo o que é demais é moléstia. E a classe média está à beira de ser garrotada.
Os querubins de Passos nunca pensaram na classe média, habituados às extravagâncias virtuais, eles só exultavam quando os chocalhos tecnológicos tocavam, tudo quanto cheirasse a cultura preferiam a inculta (Alain Bloom), tudo quanto fosse no sentido da discussão da essência da social-democracia motivava-lhe risadinhas disparatadas (ainda acudi ao convite de Jorge Moreira da Silva, após a sessão inicial desisti de imediato), só após serem apeados do poder Passos proclamou a sua paixão pelo cânone social-democrata.
A geringonça gira embalada pela maioria, não adianta continuar Passos a encharcar lenços, a teimar no Pin, a soletrar soluços, não adianta os militantes do PSD descarregarem a electricidade nervosa contra os socialistas, adianta isso sim, pensarem a estratégia de os confrontarem seriamente com o futuro. O nosso futuro. E, ao fazê-lo, sem serem atarantados equacionarem o presente do Partido. Passos passou, só que ainda não o percebeu. Ponto final. Parágrafo!

Do calçar

Repetiu-se o desconcerto do ano passado. Honrei um convite de envernizamento social. Há quem fure, penetre, mova mundos e fundos de modo a farandolar uma horas, raramente gasto tempo em tais passadiços de corte e costura linguístico de exibição de roupinhas cintilantes, sapatos tacão de agulha e quejandos. Às vezes tem de ser. Enrolo o corpo em roupa a condizer, calço sapatos confortáveis. Prefiro os resistentes Sebago.
No ano ido arregalei os olhos a fim de melhor apreciar os chinelos nos pés de estimado amigo, o efeito colhido levou-me a soltar chiste sonoro: “esses chinelos lembram os dos carteiristas, silenciosos e aptos a fugas rapidíssimas!”. Dos sorrisos passámos às gargalhadas quando um ministro do governo passista chegou até nós trazendo nos pés chinelos idênticos, só diferiam na cor do pano.
Desta feita dois dos convivas arrastavam chanatos, não eram outra coisa, lembrei-me de imediato dos lastrados nos pés de reformada profissional da mais antiga profissão do Mundo residente na Boavista (Bragança), a qual dava um toque de classe aos seus porque um deles tinha redondo buraco a permitir ao dedão mostrar-se revelando unha de luto pesado.
A diferença centra-se nos materiais empregues, no lustroso feérico pelo efeito do Sol e das luzes, mas não passam de chanatos, de luxo, chanatos apenas. Um dos visados galhofava acusando-me de terrível conservador, só faltou comparar-me ao Botas de Santa Comba, que tinha o pé boto.
O melhor surgiu depois, rapazão do aparato revisteiro cor-de-rosa exibia a torto-e-a-direito sapatos cujas solas eram vermelhas benfiquistas, tanto as mostrou, que só o receio de enfadar o anfitrião impediu-me dizer ao pimpão para dependurar os sapatos nas orelhas, pois não sendo de abano à Rodrigues dos Santos, não eram ratadas.
Fora do quadrado colorido dos comentários misturados em tem-te em pé e bebidas refrescantes, o visto revela quão grande foi a transformação no vestir e calçar dos portugueses nos últimos quarenta anos, longe vão os tempos (ainda bem) das socas abertas e fechadas, dos socos cravejados de brochas e bota de atanado a defenderem os pés da maioria da população que até aos anos sessenta do século passado em grande parte andava descalça.
Agora ninguém se espanta ao ver luzir faiscantes sapatilhas em pessoas de avançada idade, agora ninguém se benze quando partes generosas dos corpos se revelam nas ruas e cafés, pois bem, para a história da estupidez autocrata ficou a ordem de prisão do estudante de Vinhas, a mando da mulher do governador civil de Bragança. Para a história da bacoquice os olhares de inveja e estultícia de gente tida como assisada ao contemplar o casacão/sobretudo de couro verde e gola farfalhuda de pele, bem vestido pelo Fernando Tozé, no seu regresso de Londres, já no dealbar dos anos setenta.
Enquanto permaneci na velha urbe brigantina, já detentor de fundos a possibilitar tal, calçava sapatos segundo as indicações do Sr. Vitorino (o Vitorino) alma-mater da Sapataria da Moda. Além de atilado vendedor, o Vitorino também conseguia meter na ordem um menino gordo, possuído da doença de S. Vito, (traquina), em permanente desassossego, sobrinho neto do Senhor Alberto Rodrigues.
O menino era parente de formosa rapariga, mal ela assomava à janela do segundo andar do prédio da Sapataria, recolhia olhares admirativos e cobiçosos de homens e rapazes de todos os talantes, sem suficiente talento para a conquistar. O menino cresceu, enveredou pela carreira política, tem sabido manter-se na bancada central. Chama-se Pedro Pinto.
Entre sandálias abertas, à romana, os turistas adoram-nas, é vê-los sentados rente ao Tejo a tirá-las e a enfiarem o indicador de uma das mãos nos intervalos dos bípedes no fito de coçarem o sebo, e os usuais sapatos de atacadores, perpassa cromática miríade de artefactos chamados calçado, a jorrar mais-valias tão necessárias ao revigoramento da economia portuguesa.
O primeiro-ministro foi a Milão participar na sofisticada e extravagante Feira Mundial do calçado. Fez bem. Quanto mais exportarmos melhor. A competição é feroz, especialmente vinda do Brasil. O caso das havaianas rasas.
Num espaço do El Corte Inglês vendem-se havaianas ao modo de pãezinhos nas padarias. Não lhe vejo diferenças relativamente aos chanatos, pior, são ruidosas no arrastar, obrigam-nos a fixar calosidades pintalgadas de surro negro.
Os meninos pobres das aldeias escondiam-nas no pó acumulado nos caminhos. Descalços recebiam frescura enterrando os pés nos torrões desfeitos pelo sol abrasador.
Nunca devemos esquecer as agruras suportadas pelos nossos ancestrais, não nos caem os parentes à lama por causa disso.
Bertoldos sem vergonha têm vergonha do mau passadiço dos pais e avós. Desavergonhados!

A Casa

No Ípsilon do Público, de 18 de Agosto, li bem desenvolvida reportagem sobre a casa onde nasceu e viveu até aos treze anos o famoso escritor americano John Updike. A autora, Isabel Lucas, teve o talento de realçar a paixão do autor de Corre Coelho pela casa situada numa cidadezinha perto da cosmopolita Filadélfia, capital do estado da Pensilvânia.
O escritor suscita-me grande admiração, possuo a maior parte da sua obra, se tudo correr como espero na próxima Primavera irei entrar na casa renovada, tactear a grande mesa debaixo da qual o impetuoso autor enquanto menino se acolhia segurando um livro, apurando o ouvido no fito de nenhuma palavra lhe fugir das saídas das bocas dos adultos sentados ao seu redor.
À medida do correr da leitura do texto começaram a surgir imagens da vetusta casa de Lagarelhos, a Casa, da minha meninice, de outras casas em que tenho vivido além, acolá, ali, aqui, nestes últimos anos, num casarão prantado junto ao rio Tejo, no entanto, a Casa prevalecente é a de Lagarelhos, antes de a ter restaurado.
Recuada relativamente ao caminho agora rua alcatroada, antecede-a ampla entrada, no passado, de um lado várias canhotas à espera de arderem no Inverno e o esqueiro, do outro o parral, uma parede baixa separava o quintal cultivado quase todo o ano de modo a abastecer a cozinha de primícias sazonais, a escada de pedra dava (e dá) acesso ao piso de cima e à varanda comprida que no ano do dito de Delgado obviamente demito-o foi amputada com a incrustação da casa de banho.
Agora diz-se rés-do-chão, nesse tempo feliz rente ao chão situava-se o lagar, as lojas dos porcos limpas e canonicamente acolchoadas com palha a fim de os laregos engordarem jubilosamente e ressonarem placidamente. A meio da primeira loja ficava o poleiro-abrigo do galo, das galinhas e descentes, frangas a preservar, os frangos a saborear nos dias nomeados. Gostava de ser mandado a verificar a existência ou não de ovos, a incumbência caso a procura fosse positiva rendia-me um estrelado em unto, guloseima de estadão, a obrigar-me a sensível desempenho no furar a gema empregando a fatia de centeio, tarefa de grande risco, de fina engenharia.
Contínua à loja era a adega dotada de tina, vasilhame diverso, esteios, a masseira e a cuscuzeira, arcas de castanho, o monte das batatas, no extremo sinais locativos de ter existido mula ou égua antes do meu avô ter emigrado no intuito de pagar dívidas abanando a árvore das patacas no Rio de Janeiro.
Entre a segunda loja e adega ficava o falso, um pequeno quadrado, criado na sequência do regicídio pois o meu bisavô recebeu a notícia de todos os familiares de Manuel Buíça até à sexta-geração, como prémio do parentesco seriam executados. Não foram, provo-o exuberantemente. O primeiro-ministro da acalmação Ferreira do Amaral não deixaria cometer tal torpeza de lhe fosse proposta. Assim o penso.
No piso elevado logo à entrada o lar, do tecto pendia grossa cadeia de ferro negra da fuligem, sustentáculo de caldeiras e do lato onde coziam os manjares dos suínos, no chão a pedra grande, lisa, sobre ela pauzinhos de cisco, urzes e giestas secas logo pegavam lume iscando guiços, ramalhos, a seguir rachos, todo aquele combustível fazia forte fogueira a na época das matanças fumar chouriços, salpicões, alheiras, palaio e reizinhos.
O lar estava envolto em colete de madeira agrilhoado a bancos largos, a banda esquerda acoplava mesa de pôr e levantar escorada em dois cavaletes. Exemplo do modelo medieval de pôr a mesa.
Na outra ala dois quartos dotados de forro tal como a despensa cofre-forte da salgadeira, dos potes contendo rojões e pingo, de duas arcas e uma mosqueira.
Sem forro o restante espaço, nos dias rudes o vento fanfava entre as telhas, no sobrado de tábuas irregulares tralha diversa, a cantareira, o lava-louças, debaixo as caldeiras, numa mesa o garfeiro, a arca do pão, o saleiro grande, os colherotos e colheres de madeira.
Na outra parte da casa um quarto, a sala só utilizada no dia da matança, grande comezaina todo o dia, à noite a luz dos candeeiros iluminava a brava suecada prenha de facécias e renúncias. Aquela sala de paredes bem caiadas, decorada com a tulha, mesa de alargar e cadeiras a condizer, só voltava a servir no dia da bênção pascal e no dia da festa. No resto do ano recebia maçãs porfirias (reinetas), amarelas e rosadas, o forro exibia numerosos camarões que na altura devida recebiam cachos de uvas a secarem até atingirem a podridão ideal para serem comidas na companhia de pão trigo.
Daquela sala desprendiam-se aromas intensos, agradáveis, dizíamos bem cheirosos a anularem os odores maliciosos vindos da rua e da loja dos dadivosos fornecedores de carnes e gorduras sápidas, capazes de levarem um eremita à tentação.
  A velha casa, não do esquecido José Régio, mas minha por herança. Lá está a resplandecer brancura, quando a ela aporto cada resquício aponta-me o passado de felicidade, de folgança, de liberdade.
Agradeço a John Updike a ideia da crónica.

Belisário & Marvel

Se fosse realizado um inquérito tendo como alvo a Comunidade Científica e Cultural de Bragança, perguntando-lhe quem foram Belisário e Marvel, seguramente, as respostas seriam: o primeiro ter sido famoso general de Bizâncio, o segundo, cómica figura de uma banda desenhada americana.

Se o mesmo inquérito fosse levado a cabo nos Lares de idosos existentes em Bragança, as respostas seriam completamente diferentes, reinadias até, impregnadas de cordata malícia. Adiante explicarei a razão.

Porque integrado numa equipa multidisciplinar estou a trabalhar num projecto visando a mundialização de um concelho, coube-me a tarefa de potenciar os activos culturais e sociais existentes de modo a conseguir-se o objectivo pretendido.

Nesse propósito, todos os envolvidos no projecto dedicamos atenção à população envelhecida, mesmo a doente, porque é detentora de perenes e formidáveis saberes, especialmente de natureza empírica, os quais não podem ser esquecidos dada a importância da nossa herança cultural, segundo porque as pessoas idosas são muito importantes no acrescentar valor de experiência consolidada aos especialistas académicos e científicos.

E, Belisário e Marvel (pronunciávamos Marbel) surgiram-me na memória (o papel da memória é crucial no âmbito cultural) na justa medida de terem sido figurões da paisagem social bragançana de recorte jocoso, mas a par de outros significantes do modelo e moco como nos idos de cinquenta e sessenta do século transacto os marginalizados às vezes de motu próprio eram tratados. No referido projecto pretende-se recuperar todos quantos vivem situações de sofrimento, miséria, marginalização e doença, cujos custos são enormes debaixo de todos os prismas.

Eu conheci muito mal os ditos figurões, no entanto, o primeiro, revejo-o de grenha suja protegida por boina esburacada, tez arroxeada, nariz em forma de torneira de pipo, voz borras de vinho, curvado, a viver de biscates e da carinhosa caridade sem alarde. Tudo quanto recebia gastava-o alegremente em aguardente e vinho, não apreciava ser censurado, às vezes deixa a ira à solta e regougava palavras frementes contra esta, contra aquele. Ele sabia coisas. Se instado a explicar o dito sussurrava melopeias e desandava.

O Marvel (Marbel) executava tarefas de carrejão a meias com a mula do Sr. Augusto (Má-Cara). A mula puxava a carroça, ele colocava as pernas de alicate num varal e toca a levar e a trazer pacotes da estação de caminho-de-ferro distribuindo-os a seguir pelos clientes regulares e irregulares. O Marvel também usava boia (muito comum na altura mesmo no círculo dos donos de posses), o rosto permanentemente enrugado conferia-lhe peculiar semblante, se o picavam da sua boca saíam rajadas de palavras em consonância, vernáculas de vermelho vivo, muito mais moderadas quando o espevitador do azedume era o Senhor Queiroz, afamado especialista no modo de moer o ânimo mesmo dos mansos e cordatos. Nem as repreensões da Dona Mariazinha moderavam a verve do saudoso comerciante, fervoroso portista, dono de invulgar sentido de humor em todas as circunstâncias.

O Senhor Belisário e o Senhor Marvel nunca tiveram direito a senhoria, era o que fazia falta, diria o menos graduado dos funcionários públicos, não eram lúmpen no sentido marxista do termo, não passavam de membros de uma sociedade onde o preconizado nas obras de misericórdia, só raros cumpriam o preceituado.

No fundo, no fundo, persistia a hipocrisia envernizada, de fora da embirração lustrosa ficavam as Senhoras esmoleres, os Senhores esmoleres (o Sr. Queiroz gostava de azucrinar, também gostava de ajudar) suavizavam o quotidiano de desprovidos de meios, de família consistente, de tolheitos e doentes. Lembro a mulher com o menino ao peito a entrar ali e acolá, salmodiava palavras, levantava o lenço postado sobre a cabeça e exibia pústula disforme. Recolhia a esmola, alisava o lenço e prosseguia a jornada.

As pessoas são o nosso melhor património responderam dezenas de homens e mulheres nos questionários de recolha de informação na preparação do aludido trabalho, tal resposta constituiu forte incentivo a procurarmos requalificar e recuperar os menos preparados, os considerados pesos mortos, fonte de problemas e pesada despesa.

Não tenho dados precisos sobre o Sr. Belisário e o Sr. Marvel, pretendo prestar-lhe melhor atenção. Espero o contributo de quem o quiser dar.

Empurrar com a barriga

A expressão título desta crónica estival ganhou espaço instalando-se nos miméticos vocabulários ditos chiques dos comentaristas bebedores de piadas servidas nas televisões estrangeiras. Sem qualquer sombra de recato, quanto mais de pecado, os nossos representantes nas Assembleias da República e Municipais enchem a boca de barrigas a empurrarem tudo e mais alguma coisa, a concederem razão ao antigo professor universitário Monarca Pinheiro, o qual escreveu um livro a glosar as barrigonas dos alentejanos.
O sociólogo é estrénuo contador de histórias tendo como pano (prato) fundo petiscos e vinhos das terras além Tejo, num enrolamento de demorados cantares e episódios burlescos em suspicaz mistura.
Ora, em Bragança também existiam barrigas rotundas, uma seria esférica, não por acaso o seu detentor carregava a alcunha de Bolinhas (Sr. Machado, funcionário do Governo Civil), mas não consta transformá-la em alavanca ou travessa empurradora, tal qual às usadas no metro de Tóquio no afã de empacotar as pessoas nas carruagens do Metro. Apesar de estarmos na estação maluca coíbo-me de descrever exercício de empurra nipónico porque podia ofender as pessoas sensíveis.
A expressão cimeira de grosso modo significará – varrer o lixo para debaixo do tapete – daí ao ouvir as bazófias de Maria de Luís Albuquerque, dado a presunçosa não exibir protuberante barriga, prefiro imaginá-la agarrada à vassoura a esconder o caso BANIF, a inaptidão na regulação da Caixa, sem esquecer o BES, entre o soalho e a carpete do seu outrora gabinete. O PSD vai perder uma carreta de votos em consequência das asneiras de Luís.
A rapaziada dos anos sessenta do século ido lembra-se, tal como os mais velhos, de um contínuo (chefe) do Liceu proprietário de imponente pança a qual ficou nos anais das extravagâncias comilonas porque numa clara demonstração de superioridade relativamente à do Senhor Augusto (também contínuo) alojou sem problemas uma carreta de batatas assadas no forno e apurada canhona.
No capítulo de barrigas quase rivais da de Gargântua, o meu prezado amigo Zé Monteiro (historiador José Monteiro) é testemunha e às vezes parceiro das proezas de Arquivista à força, dotado de invulgar apetite, certamente, inspirado no formidável Padre-Boi (Doutor José Antunes) são lendárias as suas mastigações de horas e horas. O Zé participou num exercício desses na casa de um sacerdote amigo, que os convidou a almoçarem com ele no dia de exaltação do orago. Foram, o padre ainda estava a presidir às cerimónias religiosas quando chegaram, mal franquearam a sala das refeições viram um leitão e um cabrito assados, luzidios, cheirosos, a fazer salivar bocas ressequidas.
Atiraram-se aos deleitosos assados, quando o amigo pároco voltou só viu ossos, exclamou, exclamou, referiu outros convidados, lastimou a gula dos manducantes. O amigo do Zé Monteiro, buliçoso, respondeu-lhe galhofeiro: olha que tivemos de empurrar a carniça com muito pãozinho…
As deputadas esquálidas aludirem a barrigas soa-me a blasfémia, ainda se fosso o deputado Carlos Abreu Amorim vá lá, o honorável revela volumosa volumetria ventresca, imita perfeitamente o deputado salazarista Pinto Barriga (exactamente) destro na palavra e no manejo de faca e garfo entre outros no já desaparecido Restaurante Paris onde podíamos apreciar esfusiante comida galega.
Ainda vi jogar o guarda-redes Barrigana, empurrava as bolas a soco, chamavam-lhe o mãos de ferro, às vezes as suas manápulas mereciam o epíteto de mãos de caca, o facto de a sazão ser doida uma palavra escatológica não borra a escrita, tal como aludir ao doutor Nalguinhas caso em vez da barriga fosse o sim-senhor a empurrar os desastres da governação de todos quantos nos vêm governando.
A elite política está a banhos (sem sabão-macaco) nas salsas ondas descansando das ingentes tarefas de memorização de graçolas e epítetos ingredientes considerados necessários aos despiques no Parlamento, rádios e televisões, seria grave intromissão eu sugerir-lhe leituras conducentes a elevar a qualidade dos ditos e contraditos. Eles não têm tempo, nem vontade para tal.
Já os leitores devem lardear o lazer lendo, muito, os múltiplos lucros grudam-se na mente sem a avolumarem qual Sancho Pança (o Dom Quixote vela releituras) depois de ter ingerido um pote de caldo manchego. As leituras concedem-nos a possibilidade de levarmos o nosso sentido crítico à eficiência dos bisturis no lancetar as disformidades pançudas de vitoriosos vendedores de ilusões porque gostamos de nos iludir ilustrando o mote: temos grandes desilusões devido a…isso mesmo.
Encher a barriga de leituras impede sermos empurrados. Percebem!