Frenesim de Verão
Fui buscar o título da crónica à bibliografia de Erskine Caldwell escritor que muito admiro, sendo um dos sustentáculos de uma tripeça literária americana à qual rendo tributo por tudo quanto fez no sentido de aumentar o meu gosto pela leitura. Gostos não se discutem! Os estetas romanos soletravam a evidência após banquetes como o descrito no clássico Satyricon. Gostar e a amar a leitura é um privilégio não tão usual quanto – gosto –, porque a jeira da leitura também cansa apesar dos cuidados do distinto e conceituado oftalmologista bragançano António Sampaio, me dedica periodicamente.
Estamos no mês de Agosto, gosto dos livros de Caldwell, torrenciais, cuja escrita de sabor a manteiga de amendoim me envolve em calda branca e negra do sul da América profunda, puritana, sensual, saudosa do esclavagismo, onde Caldwell, Steinbeck e Faulkner (os pés da tripeça) causaram enorme tumulto em milhões de consciências malhando o ferro frio até ficar rubro a favor de todos terem os mesmos direitos e deveres.
Descobri Caldwell, na Livraria Cristal situada na rua Direita (porque directa ao Principal), onde o Nuno Álvaro Vaz me abriu conta com a anuência simpática do Senhor Álvaro Pereira. O Nuno guardava-me livros, os quais pagava conforme a disponibilidade, o Sr. Pereira fomentava oposição ao salazarismo inspirado nas ideias do reviralho, pós 25 de Abril terá sido fundador do PPD em Bragança (bem merece um homenagem pela sua conduta cívica). Era casado com uma professora de francês a Senhora Dra. Evangelina Pintado, a qual se esforçou no propósito de concitar o meu interesse no idioma de Racine, não terá tido grande êxito, porém lembrou-me outros autores para lá de Zola, Hugo e Balzac. O casal, além do filho, oficial da marinha de guerra, falecido prematuramente (tempo de aluno liceal exímio jogador de hóquei em patins a pedir meças ao Eduardo Gonçalves, queijinho), tiveram uma filha muito bonita, demolidora de corações apaixonados enquanto estudante em Coimbra, um deles professor e farmacêutico confessou-me a sua tristeza por não ter tido êxito na categoria de pinga-amor empedernido, pois recebeu rotunda nega após a apresentação do requerimento a pedir namoro. Nunca mais a vi, no entanto, retenho a imagem de beleza serena, sorridente.
Guardo vários títulos de Caldwell, reli a Jeira de Deus e a Estrada do Tabaco, acusados de obscenidade e crueza na época da grande depressão. Sem surpresa, o Partido Comunista não apreciava o autor dado o seu pendor na denúncia das desigualdades sociais a leste e longe da vulgata leninista, bem pelo contrário, exaltava a alegria de viver num fundo jubiloso dos sentidos derrubadores de barreiras e plenamente usufruídos. Os comunistas acorrentados ao denominado neo-realismo não toleravam tão e tanta satisfação de emoções contrastando com a escrita dos autores do socialismo real. Mais tarde julgo ter apreendido as causas do sectarismo propagandeado entre outros pelo temível Dimitroff, plenamente secundado em Portugal por Álvaro Cunhal e companheiros de rota. Leia-se o Diabo e Sol Nascente.
Na Livraria Cristal encontrava bons alimentos espirituais, a sua aparição na canhestra e circular cidade, de rotineiras livrarias, constituiu uma vibrante lufada de ar fresco arejando o ambiente ainda rufado politicamente pelas sapatorras do Coronel Machadinho e as botas do Coronel Salvador.
Nunca perguntei como chegavam os livros da editora Delfos, todavia chegavam. E, no rol de livros censurados e proibidos (edição policopiada) vindo a lume a seguir à data libertadora, constam títulos da referida editora. Também encontrava na Cristal as edições críticas da Portugália, na altura tais edições ensinavam e ensinam a gostar em Agosto e restantes meses do ano, de autores como Gil Vicente, Camões, Garrett e outros, nas antípodas daquelas lousas de resumo estilo Carlos Reis, um dos matões de Os Maias, sugestão de Maria Filomena Mónica (veja-se Expresso de 04 de Agosto).
Completo o Frenesim de Verão recorrendo ao isabelino e universal dramaturgo criador de Sonho de uma Noite de Verão.
Esta crónica canicular tem como elemento primacial a palavra Verão, por isso as referências a dois autores de obras a lembrarem a estação dos três meses de inferno, no intento de agradar a leitoras de recordações da plena e pujante juventude das mesmas, por nás e nefas o vou sabendo, procurando a todo o custo perseverar a sua identidade.
Nos verões do passado, cinquenta anos mais coisa menos coisa a nudez era interdita, mesmo o tapa/destapa analisado por Georges Bataille nos seus escritos sobre erotismo recebia forte censura. O multifacetado autor continua a justificar leitura (mesmo no Estio) as leitoras adicionem-lhe a recordação do uso de combinações e saiotes nos dias sudorosos e falem às netas nos tormentos passados não no pressuposto de cumprirem um evangelho de salvação, sim de obedecerem aos pais, especialmente ao pai, desgostando os rapazes privados de visões de contra-luz. E agora? Agora, segundo informações colhidas verbalmente de bocas femininas ninguém liga a desconfortáveis e vetustas usanças, mesmo o mote do que é bom é para se ver caiu em desuso, restando a moda de vestir à Eva antes de levar o rolo do Adão a morder a maçã. Os saborosos malápios do Gamboa provêm dessa espécie!