Armando Fernandes

PUB.

Pascoelas e violetas

Na borda da estrada vi pascoelas a tiritarem de frio, a balouçarem sem quebrar, vi violetas minúsculas a concederem cor ao terreno a enxugar a água resultante das copiosas chuvadas caídas nas margens do rio Tejo. A contemplação da humildes flores não me recordaram a sagração da Primavere (era o dia de início da estação verdejante, assim o desejo), lembraram-me vivazmente a matriz de onde provenho, aqueles campos, as faceiras, as hortas ou cortinhas, os tufos de erva aqui e acolá, todos os rebentamentos vegetais a nos alegrarem, mesmo as raparigas namoradeiras obrigadas a irem vigiar os laregos soltavam cascatas de riso utilizando sabiamente os olhos e os lábios no indicar a possibilidade de os ansiosos interessados retouçarem nos lameiros e veigas convidativas ao «pecado» em plena Quaresma.
Nos arredores da cidade também existiam pascoelas e violetas, olhava-as, no entanto, porque eram belíssimos, maiores e cujo nome – amor-perfeito – encerrava enorme carga simbólica cotava alguns, sempre que podia, nos bem arranjados do jardim António José de Almeida. Relativamente a jardins de culto, feéricos e frementes tenho a minha conta, lastimo existirem tantos patrimónios nesse segmento da arte ao abandono que me levam a deduzir a pouca consideração dos decisores pelos jardins, os alegretes, os muretes floridos, as janelas engalanadas como duas que exibiam formosas begónias na rua Santo Condestável.
Do grafar o nome a tinta preta Pelikan nas flores eu lembro-me, de olhos baixos ou arregalados agradeciam raparigas sem ósculos, a moda dos beijinhos restringia-se à família, para de imediato colocarem a oferta no meio de um livro. É bem provável passados anos aparecerem as pétalas secas, tal qual a paixão, e se motivarem ligeiro suspiro é frémito deteriorado quantas vezes repelido de supetão.
Ali estava a enovelar em forma de caleidoscópio imagens, palavras, gargalhadas, lágrimas, suspiros, alegrias, suavidades afagadoras do ego, as pascoelas continuavam a tremer, as violetas pediam socorro pois estavam prestes a afogarem-se, esquecendo-me da trepidação da vida, da saída de pista do PSD, do ajuste de contas de rapazes crescidos e educados no mau manual da JSD, levando à «decapitação» de Feliciano Barreiras Duarte (bem pode principiar a procurar emprego), a promoção de José Silvano (quem diria!) acreditando eu no seu bom desempenho caso não escorregue numa casca de laranja, nos gorjeios aflautados da Senhora Cristas nutrido exemplo da jactância, no homem espectáculo António Costa, no amais que esperado triunfo de Jorge Gomes, o vencido não entendeu a cidade, muito menos os avisos dos camaradas treinados e batidos em desmontarem minas e armadilhas. E qual estaca, especado, permaneci longos minutos.
Sem pedantismos espúrios a intencionalidade desta crónica será sempre aferida por quem a lê, todavia a minha intenção é o de afirmar o estatuto (divino?) da Natureza, no caso em preço dos montes e vales da Terra Fria, já pouco semeados de gente, enormemente glosados nos círculos políticos e sociais, a plagiarem a passarada ávida das sementes, bichos saídos da casca das frutas (ainda aparecem) e abelhas precedidas de insectos no chupar os açúcares das flores.
Imóvel, risonho, ao chegar a casa o Nordeste obriga-me a fechar o carão; a falta de financiamento impede a realização de uma feira, a falta de clientes leva ao encerramento de casas de venda de dinheiro, os dois exemplos nada indicam de bom, os produtores e empresários do Nordeste têm pensar argutamente trabalhando na dualidade ter mais lucros e menos despesa num círculo agressivo e tempestuoso. Como fazer? Fazendo, aproveitando a inteligência dos criadores e a acutilância dos empreendedores.
Falar é fácil, opinará o leitor. É facial, no entanto sugiro aos estrategas do desenvolvimentos passeios a enlamear os sapatos, não descansem a inércia no fundo surrado da verborreia, observem as abelhas, as aranhas tecem teias de intenções e realizações (há teias enormes e custosas), a formiga como disse um pensador é empirista que colecciona, “mas o verdadeiro trabalho filosófico é o da abelha, que reira suco das flores para o transformar, como o espírito faz com os dados da natureza”.
To o texto é um hino â natureza. Lá onde estiver o panteísta Teixeira de Queiroz desculpara a presunção, fica o desejo. Na Quaresma serei absolvido, assim acredito. Boa Páscoa.
Armando Fernandes
Ps. Parabéns à Diocese de Bragança pela digitalização do seu Arquivo e o ter colocado à disposição de todos os públicos. Um exemplo a ser seguido.

Folares

A Páscoa este ano é madrugadora e festeja-se no dia das mentiras. No entanto, a mensagem Pascal não é mentirosa para centenas de milhões de crentes e não crentes amigos de pensar sobre a sua grandeza espiritual seja no tocante a suscitar-nos apreensões, seja no que tange à espiritualidade multiforme numa liberdade livre mas prenha do sentido de responsabilidade perante o próximo de forma a exigirmos reciprocidade nas várias gradações quotidianas no fazer fazendo na esfera da cidadania.
O mês de Março ao contrário dos antecedentes tem sido pluvioso originando tapetes verdes recheados de rebentamentos florais a amenizarem a solidão provocada pelos tremendos incêndios e a seca severa evocadora de outras semelhantes cujos efeitos séculos atrás redundaram em penúria, fome, doença e morte. E, neste ponto o contraste é claríssimo, no antecedente a pura miséria, nos dias de hoje os efeitos do progresso científico e técnico enchem os celeiros e os mercados do mundo Ocidental, sendo as excepções na maior parte dos casos originadas pelo mau governo de ditadores populistas ou não, devido à ganância de multinacionais compradoras de consciências, sem esquecer as catástrofes naturais, muitas delas da autoria da mão escondida ou revelada dos homens. A quadra pascal intima-me a pensar relativamente ao acima referido, intima-me a não ficar preso à música sacra e profana da época desleixando o dever de escrever abrindo as feridas provenientes do meu egoísmo do não te rales, do tapar as chagas sociais existentes porque somos acomodatícios com a manta dos desgostos colhidos na prematura morte de um querido filho, na doença aguda, nas consequências e lenta na recuperação, na alacridade autoelogiosa porque a mão esquerda praticou acção elogiosa sem a direita saber.
Encomendaram-me um artigo relativo à violência individual contra a violência das instituições, aceitei o encargo sem cuidar das implicações, o leitor pode considerar esta crónica como desabafo na justa medida de ainda não saber como o principiar. É verdade.
O leitor pode não acreditar, mas fique ciente quão grande é o prazer de desabafar escrevendo correndo o risco de recolher o epíteto de lamechas ou incapaz de guardar os desabafos para mim próprio.
Em pleno período quaresmal a sucessão de episódios grotescos no universo do futebol e consequentes relatos bem salivados das atitudes dos actores incluindo os violadores do segredo de justiça leva-me a desabafar: este País não tem emenda, muitos nichos da sua representação têm cromatismo suspeito, negro, conspurcado a justificar o queirosiano palavrão – choldra –, por nossa absoluta e profunda culpa.
Sim, eu sei, nesta altura a maioria dos leitores do Nordeste está prioritariamente ocupada no conseguirem sol na eira e chuva no nabal a fim de gozarem plenamente a quadra pascal, sim, eu sei do estar a repetir-me, sim, eu sei da possibilidade de uma ínfima parte das mulheres transmontanas apesar dos incidentes abafadores do passado ainda se preocupam na elaboração de folares verdadeiramente artesanais, sentido grego do technikos, significando que o artesão não consegue conceber duas peças escrupulosamente iguais. No cados folares a massa, os enchidos, a carne entremeada, os enchidos e o presunto não são diferentes, específicos na forma, muitas vezes as quantidades no seu bojo, incluindo o azeite e/ou a manteiga ou o sucedâneo espúrio (aqui) da margarina. Posso acrescentar o tamanho e o peso, a feição exterior derivada da acção do lume vivo ou brando empregue nas cozeduras.
Essas Mestras artesãs são cada vez mais raras, a maquinaria adoça as tarefas e reduz a individual tecnicidade, sem esquecer a indústria dita artesanal da fabricação de folares em série segundo a cartilha certificadora, normalizadora e mimética. Os meus desabafos são mero jogo de adivinhas adivinhadas em face da grandiosidade simbólica dos folares sem mácula do barrenhão berço ao semblante numa autenticidade a principiar na farinha peneirada em três peneiras até a Mestra conseguir o – beijinho – da farinha, se for de trigo serôdio ainda melhor.
As distintas pessoas que ganham paciência lendo os meus textos podem desta feita pensarem estar ante um preciosismo de sinuosidade identitária do Folar como referência matricial, pensam bem. A vulgarização material do folar, o facto de realizarem concursos de molde a serem premiados os melhores folares sem ser levada em linha de conta a outra matricialidade longa, custosa, profunda do artesão de nenhuma peça igual e os artesãos do amassar automático até à embalagem em celofane obrigam-me a desabafar: será que a nossa herança imaterial ainda persiste numa ou noutra família citadina ou rural do Nordeste?
Eu não sei responder à interrogação, desconheço os programas de ensino das nossas sinuosidades culturais, procuro conhecer as origens, viagens, fixações, alterações, experimentações das matérias-primas base dos produtos por seu turno objecto de transformação em alimentos.
Todos conhecemos o significado de serôdio (fora de tempo, para lá da estação própria), pois bem a farinha de trigo serôdio talvez capricho da natureza a ensinar o Homem que a sua felicidade ganha consistência na exaltação e fruição das subtilezas serôdias porque são mais fortes. Bons folares!
Armando Fernandes
PS. A composição dos folares tem segredos de cada autora, desde as quantidades aos ovos utilizados, passando pelas gorduras animais e vegetais.

Oito de Março

Se tivermos em consideração a qualidade e os diversos graus de infelicidade das nossas Mães e Avós dos tempos até aos anos oitenta do século passado (estou a ser generoso) temos de concluir o óbvio: a maioria dessas Heroínas sofreram no corpo e na ânima persistentes trovoadas relampejadas de toda a casta de sofrimentos, quantas vezes raios a tirar-lhe a vida ou deixá-las tolheitas até ao fim dos seus dias. Não adianta colocar paninhos quentes nas bubas violentas arrecadadas ao longo das suas existências, não vale a pena soletrar palavras compungidas de remorso ou hipocrisia, as Mulheres na sua esmagadora maioria foram obrigadas a quase diária invenção no propósito de minorarem as dificuldades incluindo a de suportarem agruras por serem consideradas inferiores, quantas vezes a um nível mais baixo do que os animais domésticos a viverem nos seus lares.
Trazer e tecer considerações piedosas acerca da subalternidade da diferenciação social fica bem na lembrança de efemérides caso do dia oito de Março, pouco atreito a tal até porque considero ofensiva esta data a menoriza-las, pura e simplesmente as Mulheres têm direito (era o que faltava!) a em todos os dias do ano a ser iguais à outra parte, os Homens, na bonança e na tempestade, nos deveres e obrigações, no usufruto de bens espirituais e materiais, enfim…no viver vivendo conforme os seus códigos de conduta, convivialidade e circunstância na plena assumpção da unidade na diversidade religiosa, política e social. Tudo o resto é supérfluo e trivial, tanto como as simplistas ou simplórias campanhas das feministas implicadas nos movimentos da sua Maiorização.
As pensadoras femininas do calibre de Susan Sontag e Camille Paglia nos seus incisivos comentários evidenciaram o ridículo as possessas do feminismo, a exigente académica Paglia colocou a nu as dogmáticas senhoras, lembrando o óbvio – o despotismo masculino – combate-se dia a dia, hora a hora, se for necessário imitando Lisístrata (famosa comédia de Aristófanes) sem peias ou recuos.
O leitor fingirá não ter percebido o feito de Lisístrata, a leitora pensará: esta crónica é uma rematada hipocrisia porque ou estou esparvoado ou procuro esconder debaixo da manta de farrapos humanos a longa história de humilhações cometidas contra as mulheres, a bem viva violência doméstica desculpada aqui e onde não o deve ser, toda uma cultura de afundamento da personalidade das queridas Mães casadas com os queridos Pais, as violações verbais e físicas. Nem estou esparvoado, nem desconheço a história, muito menos o clima tendente a ilibar os pecadores, agressores e criminosos por torturarem, mutilarem e matarem.
Todo aquele que comete acções criminosas deve ser punido, os culpados não podem ficar impunes, as polícias e os tribunais existem e entre as suas finalidades a maior é garantirem a segurança dos cidadãos. Nem mais, nem menos. No entanto, os créditos das mulheres vão para lá da segurança corporal, no tocante ao espiritual a cousa fia mais fino, a filósofa Hanna Arendt escreveu sobre a banalidade do mal, dado admirar a discípula afeiçoada a Heidegger (é verdade) penso na ingente tarefa das mulheres se convencerem a si próprias na necessidade de repudiarem a banalidade em aceitarem e acharem normal incursões alheias ao seu telemóvel, às suas contas nas redes sociais, às suas contas bancárias, à sua correspondência, aos códigos dos cartões de crédito, tudo isso também considero quebra de respeito pelo íntimo e complexo edifício feito de pedaços das suas vidas. Se fosse há anos escreveria: Segredos!
Sim, eu sei, toquei no baralho de cartas prenho de ciúmes, dos ciúmes. E, manifestar ciúmes pode redundar e redunda em tragédias. O filósofo Nietzsche designou de Amor Fatti a exigência do bem e do mal no comportamento do homem, daí o Amor Fati é a emanação da teoria do super-homem, dando consistência à valoração do Homem mais forte, mais dotado, construtor de impérios e aniquilação dos mais fracos, menos dotados. Trago à colação o autor da Gaia Ciência não no sentido de repetir o dito mil vezes acerca do efeito dos seus escritos no concerto das Nações, sim na convicção do seu super-homem, Homem Novo, não ser alheio às representações do «que, posso e mando» sobre as mulheres num alarde de fraqueza intelectual ante a insofismável verdade – a Mulher e o Homem – são seres cuja formulação no corpo difere, no espírito não têm diferença. Os émulos do super-homem possuídos do temor e tremor (Kierkegaard) abusam da condição física, económica e postulados sociais a ampará-los nas tentativas quantas vezes exitosas de colocarem as mulheres nas masmorras da liberdade. A reacção é conhecida, delas e deles.

Escritores e escritores

O conceituado biógrafo e crítico literário italiano Pietro Citati afirmou “que não há nenhum autor jovem que lhe interesse”, acrescentando “Umberto Eco não era u, bom escritor”. O famoso polemista acentua a minha opinião acerca da multiplicação não dos eixes, sim no milagre do aparecimento de um escritor na mão e contramão, na berma, no passeio, em tudo quanto é sítio lembrando-me o fenómeno ocorrido há anos na bela cidade de Cartagena das Índias (Colômbia), os habitantes dessa fulgurosa cidade quando se apresentavam uns aos outros tiravam (rapavam) do bolso do casaco um livro e em vez do nome diziam: Me Lê.
Tudo isto vem a propósito dado o olhar arguto do meu velho amigo e vizinho Casimiro Pires, livreiro empenhado na divulgação e enaltecimento dos Escritores e escritores transmontanos, pois vendo-me balbuciar o passeio rente à livraria apoiado num cajado elegante (sequelas de uma substituição de peça no coração) clamou o meu nome. Alegremente o balouço entre os pés aquietou-se. Retrocedi.
O Casimiro apresentou-me na categoria de escritor a um senhor também escritor. Em uníssono negámos a condição, os astros invisíveis ante a luminosidade do sol-frio impeliram-me a recordar os prolíferos colombianos atirando de escantilhão o fato de no Nordeste os escritores serem numerosos, todavia ter a impressão do número de Escritores ser muito, muito menor.
O Casimiro tem o condão de puxar palavras ao modo da galinha puxar grãos de milho perfurados por uma linha terminando asfixiado ao ficar engrolado para alegria dos estudantes (e não só) pilharem guloso alimento nas vésperas do 1º de Dezembro, os donos ficavam furiosos, ao contrário preferi entrar na geringonça falada e não tardei a defender a leitura e estudo da obra Cinco Lições de Literatura de Nabokov como fundamental no ensino dos aspirantes a escritores, já no que tange a Escritores o bico-de-obra é bem mais afiado, podem-se gastar as palavras de centos de livros na ânsia de os desejosos lá chegarem, no entanto, se o talento morar noutro cérebro nunca o vão conseguir. Oficina sim, muita oficina, escassez de qualidade obra atamancada.
Sobram «pintores de papel», faltam Escritores, porque durante dezenas de anos trabalhei e privei com Contistas, Filósofos, Novelistas, Poetas de elevada qualidade aprendi a respeitar o vocábulo Escritor, por isso mesmo não corro o risco de receber uma resposta do género da repassada de ironia dada por Apeles a um crítico armado em esteta. Falando de críticos, dos mais incisivos aos mais moderados nunca esquecerei a argúcia de David Mourão-Ferreira, a racionalidade de Guilherme de Castilho, o fio-de-prumo nas observações de Álvaro Salema, da bondade Matilde Rosa Araújo, o britânico humor de José Palla e Carmo, a operatividade de Álvaro Manuel Machado, a acutilância de Victor Silva Tavares, entre outos membros das Comissões de Apreciação de Livros do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, cuja história continua por fazer apesar de terem surgido teses e trabalhos claramente parcelares e ignorantes.
O frio cortante não cortou a vontade de conversar (e estava apressado), fiquei a saber da eleição dos corpos gerentes da Academia de Letras de Trás-os-Montes, à qual concorreram duas listas, esta Academia fruto da perseverança de António Jorge Nunes pode ser um instrumento de grande valia cultural, veremos se o consegue ou pelo contrário resvala na cova das vaidades a dela saírem egos envernizados e livros tediosos antes de serem colocados na montra da antiga Livraria Silva, em boa hora recuperada pela transpiração e inspiração do Casimiro.
Por todas as razões gosto de livros, logo de leituras, dos livros recebo consolação ao modo de o notável homem de cultura Boécio recebeu da filosofia, gosto de abrir os livros e ler páginas a esmo imitando o Novelista duriense Domingos Monteiro, o autor de Histórias Castelhanas fazia-o e de imediato emitia opinião – vale ou não a pena ler – raramente se enganava fazendo espirrar os considerados críticos autores de milhares de fichas de leitura do Serviço da itinerância cultural.
No século passado perguntava-se a Beltrano e a Sicrano que livros levavam na saca de viagem caso fossem depositados numa ilha deserta, num exercício de mimetismo elaborei listas intermináveis. A meio do ciclo do Outono da Vida a lista é bem mais reduzida, dos estrangeiros de obra publicada no século XX, Cabrera Infante,
Guimarães Rosa, Herman Broch, Musil, Nabokov, Ezra Pound, T.S. Elliot, e Ungaretti, dos portugueses do mesmo século levaria Raul Brandão, Aquilino, Vitorino Nemésio, Teixeira de Pascoaes, Jorge de Sena, Herberto e Fiama. O seio memorialístico guarda centos deles, a nata é a acima referida.
Em matéria de gostos gastronómicos alguns romanos disseram nada estar escrito, no tocante a Escritores e escritores afino pela mesma diapasão, se assim não fosse como compreender o êxito de relâmpago traduzido na venda milhões de exemplares de autores caídos no olvido ainda a fazerem prova de vida, ao contrário ficaram os criadores de obras-primas a ultrapassarem os milénios continuando a suscitar entusiasmos consoladores dos espíritos. São Mestres dos que sabem disse-me um dia intuitivo pensador português.
Armando Fernandes
PS. O livreiro Domingos da Silva era um homem faceto, reviralhista q.b., dava-se bem com o clero, o Padre Doutor Videira Pires frequentava e perorava na Livraria que frequentava nos fins de tarde.

Restaurante O Nobre

Nos idos de 1984, no fervilhar do caldeirão político, reuníamos perto do Palácio de Belém, num restaurante chamado Rimini, nessa casa de comeres avultavam figuras militares do talante de Melo Antunes e Vítor Alves, discutia-se muito, acima de tudo a necessidade de ser formado, construído, desenvolvido um projecto político alternativo ao Bloco Central, assim foi parido o PRD.
A marcha do tempo impunha-se à marcha dos militares, em 1085 realizaram-se eleições, o PRD elegeu 45 deputados, fui um deles, os trabalhos parlamentares impunham presença assídua em Lisboa e errâncias prandiais especialmente à noite.
Numa dessas incursões o meu amigo e excelente jornalista transmontano Rogério Rodrigues disse-me (e recomendou-me) a novidade de na Ajuda existir o restaurante O Nobre onde “a nossa conterrânea Justa deliciava o palato da nata da classe política a principiar no Dr. Mário Soares”. Agradeci a informação, mal tive ensejo fui «testar» as aptidões da Chefe, de tudo quanto degustei na ocasião a sopa de santola agradou-me em excesso e ascendi à condição de cliente regular. O Sr. Nobre, tal como agora, recebia-me de forma galharda e todos quantos franqueavam a porta do restaurante cujo espaço de espera dava pretexto a bebericar vinhos intranquilos e mastigações de entreténs de boca. A seguir o gritado bródio sensorial. Num desses jantares o então Ministro Mira Amaral explicou-me quais eram as virtualidades industriais do vale do Côa, explicou a cousa de modo a estalejar gargalhadas como se fossem foguetes em honra do senhor São Pedro padroeiro da aldeia dos três deputados na altura, Amândio Gomes, Armando Vara e eu, que também entendo possuir vínculos à aldeia por raízes de quatro costados. Lá possuo uma casa herdada baptizada de Casa Buíça.
O Sr. Nobre é uma pessoa duplamente Justa, por isso obrigou-se a derribar muros de dificuldades, assumir responsabilidades dos outros, nunca perdendo o sorriso amável a receber os clientes e para consolo dos gourmets a viverem e/ou a trabalharem em Lisboa renasceu nas imediações do Campo Pequeno. E, de vez em quando ali acudo a refeiçoar não me dando ao trabalho de escolher, mas prazenteiramente dado a honrar como merecem as vitualhas saídas da cozinha onde pontifica a Dona Justa. Pois é no restaurante mais transmontano da capital que a Câmara Municipal de Bragança leva a efeito o tradicional festejo do butelo acolhendo convidados de vários saberes e sabores bem como jornalistas e profissionais das agências de comunicação.
A refeição substanciosa inclui enchidos de massa e de carne, os cuscos cuja ancestralidade está no Magrebe e forma de fazer nos fogões portáteis de cerâmica usados no deserto, e o Butelo em casamento com as casulas ou cascas. A refeição permite rever amigos, ouvir as sábias e momentosas palavras do Professor Adriano Moreira, verificarmos o entusiasmo do Dr. Hernâni Dias a apontar caminhos em direcção à cidade do cunhado do Rei Afonso Henriques, enaltecendo os nossos patrimónios imateriais e materiais a romperem a teia burocrática da Entidade de Turismo mais virada para o Douro dos cruzeiros, o Porto das pontes e o Minho do vira. Causou-me prazer ouvir o óbvio – Bragança - ~e destino capital e não adjacente.
O Nordeste Informativo esteve presente através dos seus colaboradores Ernesto Rodrigues, José Mário Leite e o autor deste escrito, aproveitámos o ensejo falando de vivências, de gente da escrita, de livros, dos livros itinerantes das Bibliotecas da Fundação Gulbenkian desaparecidas há anos, hoje entendem-se noutro figurino de presença cultural, distribui amplexos, fortíssimos ao meu Amigo desde os tempos em que fomos alunos da sempre lembrada Dona Aninhas Castro, o Comandante José Manuel Chiote, troquei piadas picadas não picantes com o Ezequiel Sequeira, osculei a Alexandra Prado Coelho do Público, e a todo o tempo e a todo transe enalteci a Terra Fria, porém o Ernesto Rodrigues só sorriu e o José Mário Leite não se exasperou. E, aguardemos a próxima edição da substanciosa Festa.

Amendoeiras e amêndoas

Não tarda muito e a publicidade anuncia excursões ao rincão das amendoeiras em flor, os excursionistas podem fixar imagens magníficas de muros de xisto, de terrenos escalavrados de amendoeiras em flor, podendo depois reviver o texto de Sofia sobre a lenda que lhes concedo a graça de alegrarem os olhos da princesa muçulmana, ou aprofundarem a emoção pictórica olhando e perscrutando o fascinante quadro de Van Gogh, intitulado ramos de amendoeira em flor.
A flor da árvore chamada – formosa – nas línguas semita e síria, daí derivando Almendra em latim, e amêndoa origem de topónimos onde se fixou há séculos, existindo no território português o povoado (despovoado) Almendra ou não fosse situada naquele terrunho entre Douro e Côa que a História da quarta classe do antigamente escrita pelo Sr. Tomé de Barros explica o modo da sua integração em Portugal.
Segundo os documentos a amendoeira terá nascido na Pérsia há cinco mil anos, outros documentos atribuem aos Fenícios a sua proliferação pelo Mediterrâneo, apesar de noutros livros mencionarem o nome do frenético e inditoso (morreu cedo) Alexandre Magno como indutor da sua expansão.
Naquelas paragens pouco populosas do Médio-Oriente a árvore para lá das vinculações económicas – frutos e cascas enquanto combustível – a amendoeira no referente simbólico judaico representa o desconhecido e daí chamar-se luz, tendo saído de uma delas saiu o ramo transformado em ramo que nas mãos de Anrón indicou o caminho para a Terra Prometida ao povo judeu a seguir à morte de Moisés.
Os egípcios acaudelados recamavam os corpos com óleo de amêndoas doces, os pobres quando conseguiam trincar os apetecíveis miolos regozijavam o palato e saciavam os estômagos famintos, por isso mesmo diziam ser a árvore de tirar fomes.
Seria estranho não encontrarmos referências às amêndoas e sua belíssimas flores, o leitor por uns momentos procure as ditas nótulas e enriquecerá os seus conhecimentos na matéria, nesta crónica prefiro falar no greco-romano Dioscórides, este botânico, médico e farmacêutico deixou-nos frutuosa e famosa obra muito estudada e editada até ao século XVIII, cuja leitura recomento e onde alude às amêndoas doces e às amargas.
O pai da farmacognosia refere serem as amêndoas doces logo gostosas para comer, no tocante à medicina apenas atribui qualidades ao seu óleo no alívio das dores nos rins. Já as amargas misturadas com mel são remédio contra as mordeduras de cão, moídas e incorporadas em vinho empregam-se contra as dores nos rins, e animem-se sulfurosos bebedores de vinho; comam cinco ou seis amêndoas amargas antes de comerem e beberem, ficam a salvo da embriaguez. Anote-se que os patrícios romanos na dispensavam o seu óleo junto das banheiras a fim de tonificarem o corpo utilizando-o nas massagens.
Os muçulmanos trouxeram a árvore para a Península Ibérica, daí viajou até à América Latina, os jesuítas introduziram-na Califórnia (a maior produtora mundial), de relevo as produções no Chile e Argentina.
E por cá? Por cá acompanhamos o progresso no vai vem do mimetismo, se consultarmos os receituários gastronómicos de Espanha, Itália e Portugal retemos poucas diferenças, nos licores a mesma coisa, idem aspas para feiras, festivais, festins, almoços e ceias. Ali arroz com amêndoas, aqui amêndoas com arroz, ao meio bolos e pudins de arroz e amêndoas, vira o disco e toca o mesmo, dependendo o rolar do disco da boa ou má colheita, do tempo brumoso ou soalheiro, da mais ou menos alegria no manter o figurino polvilhando-o de rodriguinhos a fingir novidade.
Ora, a árvore por si só justifica apurado e substancioso programa cultural onde a caça aos monumentos naturais de sua representação estejam presentes, bem como o refinamento culinário, Hipócrates demonstrou que o acto de fazer comida é uma criação cultural, além dos elementos enunciados por Dioscórides e discípulos onde na Idade Média surge um médico, matemático, filósofo e teólogo conhecido como tendo sido o Papa XXI, ou mais tarde (séc. XVI) o também médico e filósofo Amato Lusitano (João Rodrigues) por si só dão (pano para mangas) enaltecer e promover o fruto que pode ser consumido no domínio de várias cozeduras, ainda cru ou torrado.
Se a Natureza não se travestir, Fevereiro quente traz o Diabo no ventre, ou um qualquer furacão dispa os ramos floridos, iremos ver a «neve» que secou as lágrimas da princesa muçulmana, ter à nossa disposição as usuais formulações culinárias e doceiras, num anunciar de no próximo ano há mais …do mesmo.
Seria estultícia pegada continuar neste registo, entendi cumprir o meu dever de cidadão, agora vou ouvir madrigais Cláudio Monteverdi e ler poesia onde as amendoeiras são enaltecidas e cantadas como merecem.
Estudem os clássicos, pelo menos façam favor de os ler, os decisores políticos além de ganharem massa crítica, ganham conhecimentos suficientes para engendrarem programas culturais de outro alcance. Valeu!
Armando Fernandes
PS. O recém-falecido jornalista e escritor Baptista Bastos acusava jocosamente um político português contemporâneo de abusar da amêndoa amarga. O BB preferia whisky.

Dicionário do Nosso Falar

Julgo ter lido no Nordeste um artigo no qual se dizia – falar ao nosso modo – está na moda. Se especialistas de «todas as especificidades» linguísticas continuam a esgaravatar nos códices e nas coifas onde se escondem vocábulos ditos arcaicos, caídos em desuso, importa referir os trabalhos de recuperação encetados por não credenciados universitários que o fazem pura e simplesmente no âmbito dos deveres cívicos na esfera do seu quadro de referências espirituais e materiais.
Ora, Joaquim do Nascimento, natural do Alto Douro, transmontano envergonhado como o nomeio no intuito de o picar ao modo de picada de ouriço de castanheiro, ou de alfinetada das mestras costureiras alcandoradas pelas clientes no grau de modistas, é um Cidadão de corpo inteiro, o qual dedica estudo, tempo e fazenda aos costumes e usanças da sua terra – Pereiros – integrante do concelho de S. João da Pesqueira. Frequenta alfarrabistas e vendedores de livros em segunda, terceira ou demais mãos, ao encontrar um documento do seu termo luzem-lhe os olhos, sendo um homem de máximas, sentenças e provérbios, esquece quem tem livros, não tem libras e adquire o pequeno (grande tesouro) ficando à espera do meu comentário, irónico na maioria das vezes.
No seu entender os vocábulos não podem ser zorros, por isso mesmo acaba de publicar o Dicionário do Nosso Falar, onde reúne centenas deles, instrumentos vitais para apreendermos os interstícios do falar das gentes do reu terrunho duriense que aprendi a apreender a dureza e quase epidémica penúria lendo entre outros, João Araújo Correia, Miguel Torga, Domingos Monteiro, Graça e Lisa Pina de Morais e Alves Redol do ciclo do Port-Wine.
Li o livro de um trago de muitos bagos de A a Z, reli ao modo de saborear um cálice (avantajado) de vinho fino, soberbo, de uma só colheita, sem surpresa encontrei termos comuns a todas as regiões, pinga a pinga dos de trá-los Montes, escondidos nas covas e largas luras, protegidos pelos fraguedos, camuflados nos giestais e arvoredos.
Há dias no decurso de um noticiário televisivo falei sobre a Carta Gastronómica de Bragança, antes recebi indicações acerca da intervenção a fazer, sugeri levar uma raba, disseram-me para me abster de tal desejo. Sem grande dificuldade consegui mencionar a deliciosa raiz e trago-a a terreiro porque o Joaquim Nascimento não a refere, certamente, porque no Douro, no Alto Douro, nunca as mulheres nunca as preparam a sós ou na planturosa companhia de salpicão tirado do fumeiro, costelas de porco ainda no adobo, ou simplesmente guisadas com ovos batidos.
O benquisto autor ainda está a tempo de provar e degustar tão substanciosa pitança, fosse eu dado a localismos e escreveria que a cozinha tradicional da Terra Fria é a «melhor do mundo», assisadamente alguém diria o meu mundo ser minúsculo e cujo centre ficou centrado na patusca Argana, no entanto, dentro do quadro dos sápidos sabores transmontanos é um bornal repleto de vitualhas de untar a barbela, de a língua estalejar como os foguetes estrondam nas festas e a memória trazê-los à lembrança a propósito de tudo e a propósito de nada, Assim acontece neste escrito, do falar dos montes pintados (J.A. Correia) dos socalcos sudosos dos galegos às touças, matas e bosques de Bragança e Vinhais, apenas foi o intervalo das rabas, sem serem rebitesas.
Às vezes mastigo a hipótese de os meus leitores levarem as contínuas referências a livros num arremedo de pedantismo que a ser verdade além de ridículo seria bacoco e abstruso ao jeito do pedinte de encómios tão do agrado dos génios de bagatelas. Repito, volto a repetir: a minha vida tem nos livros a sua maior pulsão espiritual. Os livros são os meus maiores amigos, dão-me bons conselhos, ensinam-me, corrigem-me os erros, não me pedem dinheiro emprestado. Ah, esquecia, posso incomodá-los a qualquer momento e não ficam a murmurar injúrias ou críticas.
Bom Ano Novo.

Figuras em fuga

Segundo o filósofo Lamenais, a “vida é uma espécie de mistério triste do qual apenas a Fé tem o segredo”. Rufando silenciosamente o tambor sobre o mistério escancarado, clarinho, a tentar perscrutar mistérios de existências cujas formas de vida parecem ser tão evidentes. Há uns anos escrevi um livrinho onde dedico atenção a Figuras e Figuronas de Bragança, tendo o arquitecto Manuel Ferreira, saudoso amigo, engrandecido o livro através da composição ilustrada das personalidades trazidas a terreiro. Noutro plano a sua saída só foi possível devido à vivacidade harmoniosa do Padre Calado Rodrigues e a tenacidade do Manuel Pereira.
No conjunto das figuras há uma evidente discordância entre elas, seja no foro económico, seja na sua representação social, seja na aculturação e modo de andar e pisar as calçadas e ruas. A estridência da desigualdade só não foi maior porque várias dessas figuras ou tinham falecido privando-me de as abordar de viva voz, ou me escorregaram entre os dedos quais enguias a viverem nas águas límpidas dos rios e ribeiras e não no meu vizinho Tejo a agonizar devido à incúria dos homens.
A proximidade do Natal levou-me a puxar uma a uma as figuras em fuga na procura de reparar a falta mesmo quando as famílias no seu legítimo direito não quiseram fornecer dados biográficos, casa da estimada Senhora Maria, mulher do cauteleiro Sr. Guedes, ou do procurado mas não encontrado Senhor cuja nome desconheço, mas sei qual era a sua alcunha – o traquina e esperto – Farturas o maior de um rancho de irmãos moradores na rua Direita, nas imediações da Igreja de S. Vicente. A Senhora Maria detinha um quiosque na Praça da Sé, vendia jornais, revistas, tabaco, livros, escondidos os do corrosivo José Vilhena. Dali observava o Mundo, debruçada no exíguo balcão ouvia as vozes desse mesmo Mundo circular, especialista no chiste, na manha e na resistência passiva.
O Farturas cirandava e voltava a cirandar da Praça do Mercado aos mercados estudantis, dos burocratas do regime, dos feirantes estacionados nos cafés – Chave d’Oiro, Central, Machado, menos no Moderno – na procura de «massas alimentícias», quando a procura era uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma (Irene Lisboa) a Dra. Margarida Machado reduzia a falta, bem como duas outras senhoras ainda vivas, de boa saúde. O Farturas no Inverno exibia frieiras, isso não o impedia de saltar de pouso em pouso ciente de inspirar simpatia junto da maioria das pessoas, quando enxotado (figuras ditas piedosas o praticavam) saía compungido à frente dos irmãos à procura de gasalho nos dias friorentos e Inverno. Porque na altura tinha bem viva a leitura de Os Miseráveis, o Farturas no meu entender seria (era) o Gravoche de Bragança. 
Entre as figuras da Sra. Maria e o Farturas avultam outras a quem gostava de ter concedido maior atenção, um relance de olhos, uma palavra-chave, uma exclamação seguida de interrogação indagadora impediram a consumação do desejo.
A Senhora Maria Geraldes, docemente tratada por Maria Preta, a apanhadora de malhas (leitores de agora sabem como se apanhavam malhas em meias de vidro?) cujo coração cedeu às palavras maviosas do futebolista Belo vindo das pampas cantadas por Carlos Gardel, para lá levou, o Senhor Adriano «manco» os dois o alfaiate e o vendedor de toucinho e derivados também saltaram não lépidos, sim nás e nefas de braço dado com a Maria Rapaz, o eterno treinador do Bragança, sempre pronto a ocupar o buraco dos fugitivos treinadores de nome Jesus, ferviam no meu imaginário e fervilham agora por não ter conseguido evocar as suas presenças riscantes no burgo impregnado de mofo dos tempos salazaristas.
Escrevo e o abismo do esquecimento flui a acusar-me de desatento, o policia-sinaleiro Alfredo não é uma figura menor no firmamento das figuras desprovidas de vaidades e prosápias dos de manguitos lustrosos, figuras de alta craveira moral foram o Cónego Falcão patriarca dos escuteiros, e o Cónego Jerónimo Pires estrénuo e desinteressado defensor dos rapazes de Vilar-de-Ossos, Lagarelhos, Quadra e Travanca acabados de cumprirem o serviço militar e desejosos de encontrarem lugar na Polícia e Guardas em busca de melhor pousio. No dito firmamento onde os doutores e engenheiros não se sentiam atraídos eles foram estrelas luzentes ao modo da estrela que guiou os Reis-Magos. Não exaltei as suas impantes qualidades, agora pode parecer comida requentada. E, no tocante a comida deixei fugir as figuras do Padre Pires e do Padre António (Marroncho). O roubo dos perus ao bem-humorado Padre Pires por si só possibilita faceta crónica, a visão das perdizes assadas numa casa de Vale da Porca provocou no benquisto Padre António (meu vizinho) a pergunta no decorrer de almoço festivo: então as perdizes? A resposta desgostou-o, ele estava a reservar-se no fito de lhe prestar o devido preito. A criada risonha, maliciosa, informou-o: as perdizes estão reservadas para o jantar!
E, são estas figuras sem fama que lhe encontro qualidades e considero merecedoras de as reviver.
Acima de tudo as pessoas. Elas não são talhocos utilizados na falta de cadeira, bancos, mochos, tripeças e… sofás.
Boas Festas.

Tempo de Rojões

Aqui, no Ribatejo, também a matança do porco desprovida dos normativos de Bruxelas é revestida da carga simbólica da convivialidade familiar e dos amigos, no entanto, o semblante da festa é outro, embora a garridice das falas jocosas e vernáculas seja forte nas intonações e entoações.
Só que estou agarrado às variações imanentes dos prelúdios e da festa que eram as matanças nas aldeias da Terra Fria deleito-me a evoca-las num consolo de doçura a apaziguar a ausência da fruição directa e empenhada. As matanças são uma bela parte da construção dos ritos e rituais onde o porco assumia a tripla condição de agregador dos parentes e vizinhos chegados, a de se constituir reserva alimentar de sedosas gorduras na maior parte do ano e a no dia do seu finamento proporcionar pitanças preciosas pela natureza sápida, logo prenhas de sapidez. Encontram-se nessa categoria os rojões.
Estamos em tempo de rojões. Estamos em tempo de ver os porcos atados por correias a traves que suportam telhados, os recos esventrados a pingarem gotas de sangue para um barrenhão. Estamos, devia escrever estávamos, a usura do tempo e as consequentes transformações nas usanças assim o determinam.
No pote de cântaro os bocados de carne coziam lentamente na sua própria gordura, uma colher comprida de pau, um colheroto, não os deixava descansar evitando o agarrarem-se, lentamente, ganhavam a cor dourada/acastanhada até estarem prontos a saírem do assanhado calor que não os devia esturricar. Noutro pote, um potinho ladino dos ladinos, afeito a dar consistência a canjas, caldos de unto, côdeas guisadas com cebola, papas e arrozes, rechinavam os rojões do balho, outros nomes têm como torresmos do entretinho, do rissol, e por aí adiante que Portugal não é tão pequeno assim.
Numa travessa grande repousavam os rojões maiores, alguns dos intervenientes na matança, normalmente o sangrador atrevia-se a pedir um já a noite crescia. Dava salivada inveja e refinado gozo ver o homem da faca pontiaguda, após ter colocado o rojão (rijão) sob uma fatia de pão trigo (naquele dia comia-se níveo pão desse cereal), auxiliado por uma navalha de meia-lua o feliz contemplado fatiar em finas fatias aquele carne magra entremeada com gordura leitosa que se derretia na boca retirada do animal mais amigo do homem porque se come da ponta da cabeça ao fim do rabo.
Os rojões do balho no dia imediato, exibindo impecável fritura – dourada, estaladiça e seca –, comiam-se frios, trazendo agarradas partículas de gordura branca só por si a proporcionar sensações de excelsa agradabilidade palatal tão difícil de explicar quão intensa foi no momento da degustação.
Sim, estas notas de felicidade colhi-as em casa da minha avó materna, sim estou a cometer o mesmo erro de todos quantos a propósito de tudo, a propósito de nada, só sabem elogiar os comeres da lavra das suas avós e mães, na ausência da minha mãe prematuramente falecida trago a terreiro a Avó figura tutelar, mas podem acreditar sem farroncas disparatadas, ela cozinhava primorosamente no quadro da cozinha oral e rural. E, eu conheço bem do que opino neste campo.
Os rojões constituíam uma reserva alimentar de enorme importância, conservavam-se durante bastante tempo imersos na sua própria gordura, os do balho amenizavam a primeira refeição do dia e do espaço intervalar chamado o taco, os d maior dimensão, da cobiçada febra, emprestavam consistência a uma dieta alimentar monótona devida à falta de outras matérias-primas num quadro de forçada parcimónia rodeada de penúria e fome a atingirem larga fatia das comunidades.
Aquando da Norcaça edição deste ano passei fugazmente pelo certame devido à apresentação de um livro da minha autoria, dada a hora do acontecimento jantei na nave do Nerba, no restaurante Javali, o jovem Fábio Gonçalves ao modo de entretém de boca enquanto não surgiu sobre a mesa uma excelente lebre já não saltarilha, serviu-me rojões de graciosa catadura. Amenizou a saudade dos rojões, todavia a hora não era a mais propícia para os honrar como mereciam.
Ser possível é, se é negócio rentável não sei, no entanto, seria cliente fiel se encontrasse à venda rojões de porco bísaro enlatados ou enfrascados da mesma forma que encontro perdizes e outros mimos nas casas de venda de delicadezas gastronómicas. Os galegos exportam grelos medidos nos frascos, os da Cantábria ovas, filetes de anchova, manteiga e queijos, os de Múrcia as aludidas perdizes, não vale a pena continuar senão obrigava-me a deter-me nos patés, nos peixes fumado e tutti-quanti das especialidades de toda a Europa. E os rojões?
Não sei responder à interrogação, sei, isso sim, clamar no deserto a recordar os rojões louros, de febra magra, prenhos de filamentos destinados a nos concederem momentos de felicidade neste vale de lágrimas caídas em terras sedentas que as chuvas recentes não apaziguaram a sede.
Escrevo interesseiramente, na esperança do meu amigo Alberto Fernandes estudar a possibilidade de apresentar rojões fora do seu restaurante, certamente, outras pessoas pesarosas pela ausência de rojões originários do terrunho transmontano também os incluiriam no seu cesto de compras satisfazendo desejos não provindos de gravidez uterina, sim plasmados no hipotálamo recebedor dos estímulos cerebrais. O casal Damásio explica agudamente tal tipo de sentimentos, suas raízes e ramos.

Manteiga de Travanca

Reina grossa tormenta no território gaulês. A falta de manteiga é a causa, o seu preço triplicou, quase desapareceu nas prateleiras dos supermercados, a escassez provoca dores de cabeça e azia nos estômagos dos cozinheiros e pasteleiros, pis a gordura láctea é fundamental nos restaurantes e pastelarias, assim como nos lares dos franceses.
Ao contrário dos países sulistas afeiçoados ao azeite, a cozinha gala atingiu a qualificação de alta cozinha escudada na gordura amarelo-dourada, o mesmo acontece no tocante à sua prestigiada pastelaria. A privação de manteiga já obrigou o governo a discutir as causas e as formas de atenuar o jejum também extensível a outro símbolo do requinte culinário da Nação que conseguiu criar um nacionalismo gastronómico, mantê-lo e irradia-lo para todo o Mundo pelo menos desde a Revolução Francesa. A sublevação que acabou com o Antigo Regime é a causa da afirmação do conceito de Restaurante tal como o conhecemos.
Em face da penúria de manteiga lembrei-me da outrora apreciada pelos burgueses de Bragança da manteiga de Travanca (Vinhais) chegada à mesa dos bragançanos em biquinhas. Eu não sei as vacas criadas na aldeia postada aos pés da serra da Coroa detinham carnes tão qualificadas como as de Kobe, Hida-gyu ou Matsuzaka, as quais atingem preços altíssimos por serem tenras, tanto a tenra carne de porco, desfaz-se n boca e é excelente para a elaboração do sushi e o carpaccio especialidades servidas cruas.
Eu não sei quão grato seria ao palato deliciar-se a comer um troço de vitela mamona de Travanca apenas temperado com uns grãos de sal e poisado por breves momentos em brasas vivas quanto baste, mas sei do bom nome da manteiga proveniente das ditas cujas vacas.
Discutir a razão de ter sido interrompida (digo interrompida) a produção de manteiga naquelas paragens de lameiros verdejantes não adianta, nem atrasa, saber que são necessários 22 quilos de leite para se obter um quilo de manteiga é um pormenor técnico (e económico), interessa-me acicatar a minha amiga Carla Alves, de modo a pensar na possibilidade de reatar-se a produção da cobiçada e macia gordura transformando-a noutra marca marcante do terrunho vinhaense, a pardos enchidos e do presunto.
Reclamo a atenção de Carla Alves na justa medida de desde há longos anos, principiou numa noite friorenta em Montalegre durante a Feira do Fumeiro a que estava ligado, ter acompanhado o seu entusiástico labor na requalificação das carnes fumadas produzidas no concelho de modo a constituírem (já assim acontece) um pomo de concórdia entre as aldeias independentemente da sua diversidade, prevalecendo a unidade nos propósitos de aprimoramento dos chouriços agres e doces, das chouriças, dos palaios, dos salpicões e presuntos provindos dos porcos e porcas criados ao longo dos meses.
Sim, existem rivalidades no tocante a gosto, é natural, sim existem interesses e interesseiros, já diziam os almocreves – onde há lúcaros, não há esccrúpa-los –, embora tenham de ser escrupulosamente salvaguardados, por assim ser o papel determinante das Autarquias, no caso em apreço – manteiga de Travanca – a Câmara de Vinhais.
Há tempos estanciei em Santander, a cidade do Banco da família Botin, no Hotel do temporário alojamento, ao pequeno-almoço aparecia a manteiga em biquinhas de barro vidrado, a memória avivou-me o terrunho onde frui a felicidade, a lembrança acirrou-se no barrar a deleitosa manteiga em torradas de centeio.
Os orçamentistas peritos no cálculo dos prejuízos dos toques e amolgadelas nos automóveis também farão o mesmo se lerem este artigo, só que a revalidação da marca Manteiga de Travanca seria (será) um ousado acto publicitário capaz de ser acarinhado no Comité das Regiões da União Europeia, a exemplo de outros no passado. Lembro, um pão de Feira produzido na Croácia foi considerado património da Humanidade pela UNESCO, a par das pimentas do México e da culinária dos agora carentes de manteiga.
Nós temos sido preguiçosos na competente defesa dos nossos produtos, gostamos de copiar, estudar e inovar dá imenso trabalho, porém se queremos conservar a nossa identidade é imperioso apressar-nos a preservar a Herança cultural ainda incólume às apropriações globais, à voracidade das tecnologias de ponta e registo de inventivas transmutações escoradas nas nossas ancestralidades.
A mundialização está na ordem do dia, o incremento do turismo também tem duas faces, por vezes esquecemo-nos, os desafios tocam todos, os atrasados mais atrasados ficam, repare-se no fenomenal progresso português na área da medicina, pense-se em cientistas do calibre de Maria de Sousa, não esqueçamos o facto de Ronaldo ser quem é no estrelato do futebol devido a exaustivo trabalho de treino. O anexim exalta – querer é poder – dá-se o facto de querermos pouco. Espero nova e mandados de Carla Alves. A antiquíssima Póvoa Rica merece aproveitarmos o ser Rica, pelo menos de nome!