Armando Fernandes

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Ano Novo

Falar do ano velho enterrado entre exercícios de juízos do juízo do ano obrigava-me a ingente tarefa de procurar eufemismos de modo a não recorrer a linguagem baixa ou obscena para caracterizar o vulcão de lama e escórias de cada um dos 365 dias que lhe deram corpo. Poupo os leitores não lhes recordando o passado recente, poupo-me higiénica e espiritualmente na contabilização dessas enxúndias. 
Escrever sobre 2019 ainda mal soltou os primeiros vagidos é, principalmente, alinhavar palavras cuja essência primacialmente assenta nos nossos desejos apesar de poderem estar imbuídos de sopesada reflexão seja de cunho futurista popular, seja de índole futurista de expressões literárias defendidas e propagadas por Marinetti, cujos caibros de sustentação eram o inconformismo, a ausência de humanismo e anti-tradicionalista. Trago à colação o inventivo Marinetti por temer os efeitos dos rebentos em crescendo do enovelado futurismo relativamente ao Futuro não só na Europa, também no resto do Mundo, não devemos esquecer os ensinamentos da história, por isso mesmo agito a água do referido movimento literário surgindo hirsuto, de cabelo lambido, usando três telemóveis ao mesmo tempo, um em cada orelha, a gritar elogios à sua poesia e a defender a destruição de Museus e Bibliotecas. Repito, Museus e Bibliotecas. O estrídulo movimento foi incerto no Fígaro, de Paris, em 1900. 
Anunciam-se movimentos a entornarem copos cheios de sumo de laranja por especialistas no espremer de laranjas colhidas há muito tempo cujo objectivo é o de sobrar pouco desse líquido após as eleições legislativas, tais peritos na intriga defendem crua e duramente os seus muitos interesses, não temem a invasão do seu território, só temem a esterilidade do veio sustentador, em face desta realidade mesmo o Senhor de La Palice augurará meses sombrios a Rui Rio. Os politólogos de formação anglo-saxónica apontam-lhe o defeito de instinto de matador político.
Já António Costa é alto representante da escola italiana do stiletto (Mota Andrade é um bom exemplo), manejando-o nas ocasiões graves, as miúdas ficam ao cuidado dos muitos ajudantes, fundamentalmente, preocupa-o a forma expedita e subtil no desfazer os nós sedosos de Marcelo empregando os seus dotes no manejo das palavras na dupla ortofonia ocidental e oriental. Pode apetecer-lhe esticar a corda até cair, levantando-se rapidamente indo à procura da maioria absoluta, no entanto, a constância da cultura hinduísta leva-o a esconder a ânima portuguesa até ao dia do resplandecer a aquela que não tem princípio nem fim, podendo manifestar-se em pessoas, animais, plantas, coisas, dúctil, refreando a vontade de agir imediatamente. 
Em 2019, o nosso Presidente, o dos afectos, continuará a colocar no cesto das intenções de voto a conjugação dos abraços, afagos, beijos (mesmo os lambuzados), beliscões doces nas bochechas das crianças, palmadinhas e palmadas nas costa, o intento é superar a votação anterior promovendo o esvaziamento dos putativos adversários, não lhe passa pela cabeça ser apodado de rei sol, agora Presidente Sol, acredito piamente nisso. O açoriano Carlos César tem de esperar. Há anos, nos jardins da fábrica de Chá da Gorreana alvitrei-lhe essa hipótese. Também tenho de esperar. O PSD não escolhe, está escolhido, esteja no comando da nau laranja Rui Rio, esteja mandar Relvas escondido no biombo chamado Passos Coelho. O CDS idem aspas, aspas!
Acerca do PAN não escrevo. Um partido interessado no extermínio dos animais nos provérbios não merece a minha atenção. O caso muda de figura relativamente ao Bloco da esquerda caviar e ao Partido Comunista. 
Os bloquistas perseguem o sonho de um dia ocuparem alguns cadeirões do poder, nesse propósito convém-lhes ouvirem ópera em São Carlos e dançarem o chula no Minho na tentativa de aumentarem a sua presença no Parlamento Europeu e na Assembleia da República, não sendo, nem querendo armar em pitonisa imitando a bruxa de Quiraz (ela possuía o dom da duplicidade opinativa das referidas pitonisas) não prevejo a insuflação do seu eleitorado pois quando chegar a altura os rapazes socialistas vão lembrar a sua cumplicidade na governação de Costa apoiado no Senhor das cativações, férreo carcereiro das contas públicas agradando aos conservadores por convicção e a todos quantos estão obrigados a serem. 
O Partido Comunista tenta contornar o custoso e evidente envelhecimento do seu eleitorado, a modernização na forma de entendimento do quotidiano, o adoçar preguiçoso da militância com a proliferação de novas formas de luta no quadro sindical, sendo assim e a meu ver é, Jerónimo de Sousa continuará a ser imprescindível a fim de o PC manter o seu grupo parlamentar até porque em caso de necessidade o filho de Orlando da Costa prefere ouvir as palavras comunistas ao palavreado de Catarina. Uma coisa é o aperto de mão dos comunistas, outra são as palavrinhas da Catrina que andaram de mão em mão e foram ter ao pombal de S. João. Lembram-se da canção de ninar?
Votos de Ano Novo. Um novo ano repleto de venturas para os leitores, para redacção do jornal e director, sem esquecer a continuação de vivacidade nos editoriais.

Estrelas da cozinha bragançana

A exposição do Mundo Português realizada no ano de 1940 debaixo da batuta de António Ferro (leia-se a sulfúrica biografia de Orlando Raimundo) foi a exaltação do salazarismo de modo a alardear os «sucessos» do opressivo regime utilizando talentos e criatividades de intelectuais desafectos à Ditadura, não imunes à maestria de Ferro e da sua mulher Fernanda de Castro autora de livros para a infância e adolescentes, bem como incursões na arte poética. A dona Fernanda de Castro manteve largos anos uma tertúlia literária de múltiplas tonalidades e doutrinas ideológicas até às proximidades da sua morte ocorrida em 1994. A também tradutora e amiga de comeres bem cozinhados nasceu em 1900.

A exposição da apoteose a Salazar movimentou todas as áreas artísticas e criativas, por essa razão as artes culinárias integraram o painel principal e por isso mesmo Bragança indicou quais as preciosidades do receituário local e dos restantes concelhos do distrito. Importa mencionar o decisivo papel de António Ferro na criação das Pousadas de Portugal, a primeira na recta do cabo, a hoje fenecida Estalagem do Gado Bravo.

As autoridades de Bragança informaram o Secretariado da Propaganda Nacional das ditas preciosidades culinárias, relativamente à cidade do Braganção, lembraram e elogiaram: alheiras (época própria, de Outubro a Fevereiro) – alheira assada –, almôndegas de lebre (esta receita é originária da Pérsia), arroz de lebre e repolho, bifes de presunto e de vitela com batatas fritas, cabrito assado e guisado com batatas, caldo verde, chouriço de pão com grelos cozidos, cozido transmontano, empada de sardinhas, enguias fritas ou assadas, folar, frango abafado, grelos com bacalhau às tiras e pedaços de ovos cozidos, grelos de couve penca guisados com ovos batidos, leitão assado, lombo de porco assado, migas de bacalhau, pasteis de lebre, perdiz assada e de cebolada, rabas guisadas com ovos, salpicão assado, trutas fritas de escabeche e assadas na grelha, tabafeias, melão da Vilariça e queijo de ovelha. Este magnífico rol de comeres referentes a uma cozinha urbana e rural de gente de posses permite aos chefes e cozinheiros, às Mestras cozinheiras, a uns e a outras conceberem formidáveis recreações seja no respeitante ao escrupuloso respeito pelas receitas tutelares, seja no tocante às configurações modernistas da cozinha contemporânea. A descrição leva-nos a carpir mágoas ante o desaparecimento ou quase apagamento de algumas referências (almôndegas de lebre, trutas dos rios limítrofes, rabas guisadas), também enuncia sem margem para dúvidas a clara distinção entre alheiras, chouriços de pão e tabafeias. Ao longo dos anos através da palavra escrita e falada tenho denunciado de forma veemente a torpeza de postergar as tabafeias dizendo serem a mesma coisa que alheiras. Não são, possuo receitas a provarem as diferenças na sua composição, no entanto, sabichões de pouco estudo prático erguem muros de palavras furadas no intuito de provarem o afã igualitário. Em seu socorro podem invocar rechonchudos querubins, serafins e seráficos anjos, alheiras são alheiras, Tabafeias não são iguais às primeiras.

No que tange à doçaria a lista enumera: bolo doce, amêndoas doces enfeitadas com canela, cavacos, súplicas, doce de melão, pastéis de ovos, bolos de chá e folares.

Se pretendermos fazer um estudo analítico à escolha de 1940 é evidente estarmos ante a vivaz realidade de um reino circular pontuado pela dualidade noves meses de Inverno e três de inferno, cujas assimetrias climatéricas influíam na colheita e caça de matérias-primas, sua conservação e fórmulas de as cozinhar. Bom seria que esta resenha patrimonial desse azo a investigações, estudos e propostas de sua revigoração e divulgação. A estrela bem concedida a Óscar Gonçalves pode servir de luz nesse propósito pois a competição é fervente quanto a água necessária à massa destinada às célebres tabafeias ora esquecidas por obra e graça do descuido e consequente preguiça. Ao meu amigo Alberto Fernandes lanço o pedido: recupera as Tabafeias.

Boas Festas, boas comidas!

 

PS. A condição sazonal das alheiras desfaz a lenda ardilosa de terem sido concebidas pelos judeus no intuito de enganar a Inquisição.

 

A estrelinha e a Estrela de Óscar

No mar encapelado da alta cozinha são frequentes os naufrágios porque os cozinheiros e chefes não souberam escolher a estrelinha capacitada para os orientar de modo a superarem as dificuldades inerentes a uma profissão de alto risco, pensemos nos chefes desapossados da estrela o sol, um deles não aguentou o desgosto e suicidou-se. Ora, o Óscar, trato-o assim porque desde a tenra idade, tamanino, o cintilante criador de fórmulas culinárias sempre assim o tratei, ao longo dos anos, mesmo contra a sua vontade, revelou curiosidade e engenho para fazer um comentário aos comeres realizados pela Mãe, senhora Mestra da cultura de do pouco fazer muito, sempre atreita a fazer/fazendo, longe dos holofotes da vaidade balofa, sem esquecer os atinentes à arte de criar clima ou ambiente para os clientes se sentirem confortáveis e tão mimados quanto o rei Midas.

Lembro-me dele enquanto estudante do Politécnico, perguntava-lhe sobre o andamento dos estudos, alargava o sorriso, prometia não esquecer a importância dos estudos académicos e praticava no restaurante num afã digno de registo que os seus amigos e clientes desde sempre, como são os médicos António Machado e Telmo Moreno que foram observando, verificando, incentivando o ladino rapaz aprendiz até obter a estrela a catapultá-lo para o disputado e exigente firmamento Michelin. Diga-se o que se disser do famoso Guia os que contam são as estrelas dado as mesmas serem eclatantes indicações aos muitos milhões de leitores do «Miquelino», apodo criado por José Quitério no intuito de o desvalorizar.

Há anos o Chefe José Cordeiro (já regeu restaurantes estrelados) salientou-me as qualidades e fogosidades de Óscar, augurando-lhe voo picado, consistente e cada dia mais alto. Na altura disse ao Chefe de Óscar estudar mais as técnicas das várias cozeduras e acima de tudo não se deslumbrar. De resto, quando trocava impressões com o seu Pai, homem prudente cujas raízes brotaram e cresceram na área da restauração, embora ele não escondesse o orgulho no engenho do filho a deslizar no fio da navalha do conceber/concebendo receitas cuja matricialidade assenta nos vínculos da cozinha popular transmontana, colocava travões no entusiasmo de Óscar e do irmão António empenhado em decantar e destacar as virtudes organolépticas de vinhos de múltiplas proveniências e origens.

E, agora Óscar? Não é esta crónica azada a esmiuçar as vantagens e saliências lucrativas da Estrela, é sim de júbilo transbordante e reflexivo pois o futuro prepara-se no presente.

Desde há muitos anos defendo a elevação da cidade de Bragança ser ponto focal da gastronomia regional e nacional com incidência no Nordeste, alguns amigos têm aturado e lido as razões para este desejo, António Jorge Nunes e Hernâni Dias contam-se entre os pacientes. A luz emanada cobrindo o burgo brigantino não pode esfumar-se ficando bruxuleante, mortiça, projectando sombras sobre o passado, aos irmãos Gonçalves pede-se constância em continuado estreitar de braços com os pais, aos restantes profissionais do binómio comeres e beberes alvitro preencher a inveja trabalhando as matérias-primas transformando-as em produtos de alta qualidade conducentes à sua materialização em suculentas e sápidas receitas cuja ânima seja a nossa cozinha – rural, urbana, popular, nobilitada, conventual, monacal, experimental e contemporânea –, mas que o seja. Não cedam a tentações, rejeitem o «gato por lebre», cozinhem e temperem levando em linha de conta o conselho do Bispo de Viseu, Dom António Alves Martins, o húmus da nossa terra e o saber herdado de geração para geração. Deixem-se de mimetismos rançosos, imitem até à exaustão o Óscar.

Desconheço qual será a atitude do Município, Associação Empresarial e Politécnico relativamente ao galardão outorgado a Óscar Gonçalves, era um despropósito elencar ou citar modos de o potenciar, será erro clamoroso se não for retirado «lucro» a todos os níveis do novo património. Como? Sejam frementes na ambição e responsáveis na concretização. A espanhola Pilar del Rio conseguiu levar um escritor português ao estrelato do Nobel!

Virgens ofendidas

A deputada Emília Cerqueira declarou não existirem virgens. Pa­-ra meu sossego verifiquei que no tocante a azeites continuam à venda os extra-virgens. Ainda bem. Para lá da ironia um pouco pesada a graçola da honorável vinda do Alto Minho deu salientes provas de desconhecer ou não querer saber o que caía sobre a rapariga desflorada antes de casar.

Na cotação bolsista denomi-­nada – honra e vergonha – a perda dos três vinténs desvalorizava-a de modo pungente restando-lhe esperar o aparecimento de um homem compreensivo, viúvo ou velho solteirão. Não há muito tempo entrevistei uma senhora de oitenta anos a qual foi enganada, logo estigmatizada. Um viúvo deu-lhe apelido e carinho, ela concedeu-lhe amor e fidelidade até o «seu homem morrer».

Não vou socorrer-me dos tremendos costumes relativa­men­te às mulheres medievais seduzidas ou forçadas, limito-me a recordar um episódio ocorrido no concelho de Vinhais, nos anos vinte do século passado, após a cerimónia de casamento o pai da noiva no decurso das libações à volta da mesa levantou a voz, chamou o genro e a filha, e disse: aqui a tens – bonita, rica e virgem –, só que passados três meses ela pariu. O pai coberto de tristeza nunca recuperou da violenta humilhação.

Os anos consumiram calendários, a evolução social provocou enormes alteridades no comportamento sexual e respectivas práticas fundamentalmente no universo feminino e abaixo dos cinquenta anos com o multiplicado contributo da Internet disseminada por tudo quanto é sítio de Portugal.

Abundam os debates acerca de sexo e sociedade, sobre as diferenças e o direito a ser diferente, raramente se analisa e discute o conceito de virgindade para lá das jocosidades grosseiras ou de salão, a sua validade para inúmeros jovens, a conflitualidade entre os conservadores e os liberais expressa em silêncios ruidosos, o nebuloso paradoxo do para mim e para os outros. Em suma: uma coisa é o pudor em falar seriamente num ambiente sério e a palrice obscena, do comentar ordinário encobridor de pulsões enterradas no sepulcro da mente.

Sim, a deputada laranjinha procurou salvar Silvano de novas explicações minimizando custos políticos, a emenda saiu pior que o soneto, «admiradores colegas deputados» da sua bancada desmentirem a prática de acessos indevidos dando claridade à luta intestina dos deputados adversários (inimigos) de Rio e os seus apoiantes. Porque nestas frondas prevalece o vale tudo brotaram como cogumelos em tempo chuvoso insinuações de falta de inocência de Maria Emília, sim de oportunismo caucionadoras sua integração em lugar elegível na lista a ser sufragada nas eleições do próximo ano.

Uma coisa é certa, modelos de contornarem crivos de controlo na Assembleia da República sempre existiram e vão continuar a existir, desde o esquema das viagens ao de quatro deputados viajarem no mesmo automóvel e cada qual apresentar a folha de quilómetros vão sendo conhecidos quando as comadres ficam zangadas ou o prevaricador é descoberto oferecendo aos eleitores motivos de gáudio e crítica acesa.

A cupidez não é exclusivo de uma casta, é extensiva a todas as castas, nem os reis, nem infantas e demais nobreza escapam, o dinheiro é engodo triunfante, só que se algumas mulheres e homens detêm liames motivadores de cederem à tentação, outras pessoas, a maioria, repele-a, sendo sustentáculo ou trave mestra da democracia. Há dias pessoa minha conhecida sofreu condenação a pesada pena de cadeia dado o seu envolvimento em negócio desastrado de oitenta milhões de euros, penaliza-me, não deixarei de o cumprimentar e falar com ele se o encontrar, no entanto, obrigo-me a pensar na razão de pessoas donas de vidas desafogadas enveredarem por caminhos tão tortuosos concedendo substância moderna ao velho anexim – quem tudo quer, tudo perde –, levando a chistes de uns, a manifestações de tristeza de outros. As mães de antanho constantemente lembravam aos filhos o preceito de não caírem em tentação. Alguns tinham os ouvidos cheios de cera e afundam-se no poço do opróbrio. Talvez não existam virgens ofendidas no circuito do comportamento político, porém ainda as há virgens na causa pública permitirem-lhe rasgar as vestes.

Meu Brasil, brasileiro…

Se consultarmos os mapas da emigração portuguesa de 1850-1950 ficamos a saber quão intensa, dorida e retalhada em rios de lágrimas foi o corrupio de transmontanos para o Brasil. Nasci na casa de um avô ausente no Rio de Janeiro, cresci a ouvir falar desse homem militante do Partido Democrático, lavrador de courelas, professor no âmbito do movimento republicano das Escolas Móveis, caçador de coelhos e lebres, fumador inveterado, fazedor de filhos, cinco em cinco anos, emigrante empenhado e disposto a pagar a dívida e juros usurários. Pagou, forrou gastando as solas dos pés, regressou em 1958, um malão de roupa, anel de ouro no mindinho, óculos, relógio de bolso, botões de punho e botão destinado a fechar o colarinho da camisa, tudo em ouro, poupanças que no seu entender escorariam velhice sem temores e tremores. Lá estava a acolhe-lo na noite da chegada, a aldeia em peso visitou-o, o brasileiro Francisco Buíça estava de volta.

Descansou uns dias, visitou velhos amigos, recebeu piadas vindas da boca do seu camarada de armas durante a I Guerra Mundial, o Padre Aurélio no decorrer da missa dominical dado os brasileiros de torna viagem serem dados ao espiritismo e outras ideias abstrusas.

O ritmo galopante da inflação levou à desvalorização do cruzeiro, quem possuía 100 cruzeiros passou a ter um cruzado, o sonho de um fim de vida confortável esvaiu-se, sobraram as recordações e uma resignação a pedir meças ao bíblico Job, os últimos suavizava-os a ler tudo quanto lhe levava, ficava agradado ao receber as revistas Cruzeiro e Manchete,

Porque muito o admirava dada a sua a sua curiosidade cultural, a sua argúcia a jogar a sueca, a sua escrita desprovida de erros ortográficos em impecável cursivinho, a sua permanente ironia relativamente a Salazar, no seu entender refinado manholas, à diligência no sentido de lembrar as virtudes da honradez e rompante frontalidade, senti profundamente a sua morte ocorrida em Junho de 1973. Na altura da urna descer até repousar no coval devia ter rasgado o véu de silêncio proferindo palavras alusivas ao Homem a quem tanto devo. Remordo os lábios sempre que a omissão aparece.

O drama da emigração em busca da árvore das patacas brasileiras povoou o ambiente das comunidades rurais do tão propalado reino maravilhoso, reino pedregoso, a escalavrar famílias nessa já longínqua era – monárquica, republicana, salazarista –, a ideia do eldorado não se restringe à literatura.

Sim, recordo Os Brilhantes do Brasileiro de Camilo, vai para além dos livros de Carlos Malheiro Dias, Ferreira de Castro, Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Mina de Diamantes e Quando os Lobos Uivam, a pungente poesia de Guerra Junqueiro referindo os forçados a abandonar os seus casinhotos, entre muitos outros de menor envergadura, só que a pulsa salvífica do enorme, estranho, quente, gerador de leite e mel povoava os sonhos dos nossos avós mortificados por cilícios de toda a casta de provações, desfavores e miopia analfabeta e interesseira do poder, dos diversos poderes. Sendo assim e foi o lodo e o pó dos caminhos serviu de argamassa ao desejo da evasão colorido periodicamente quando Fulano e Cicrano recebiam a «carta de chamada» de familiares ou amigos bem instalados porque conseguiam bons réditos na exploração do varejo, botecos, padarias e confeitarias como as do meu avô sitas na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, as dele transformadas em churrasqueira como tive ensejo de contemplar nas idas à mítica cidade.

Agora? Agora Bolsonaro ganhou, não adianta chorar sobre o leite derramado, em muitos aspectos o Brasil ainda é uma África tropical envernizada já o disse e novamente escrevo, alegria e verve dos anos quarenta do século passado personificada na portuguesa Carmen Miranda coexistiu e continuou com os nefandos crimes de Getúlio causadores do seu suicídio e dos carrascos generais do golpe de 1964, o vinhaense da Moimenta Alípio Freiras recentemente falecido exemplifica os milhares de vítimas da repressão, ou seja: a história do Brasil tal como a nossa está povoada de contrastes, muito mais evidentes neste tempo devido à vertiginosa velocidade de imagens e palavras.

A mirífica vazão rural do Brasil desapareceu tal como desapareceram (e bem) as fontes de mergulho e o pão cozido nos fornos (mal) das nossas aldeias, viajamos facilmente até lá, compramos cá a farofa e a picanha, o Mundo mudou e Bolsonaro pode provocar tremendos entorses à democracia, porém não tem poder (de nenhuma natureza) capaz de sorver a seiva vital da sociedade brasileira, e não podemos esquecer o óbvio: essa mesma sociedade votou livre e maioritariamente em Bolsonaro. As representações lacrimejantes de bem-pensantes portugueses além de ridículas estão inchadas de hipocrisia dada sua vesguice ao ignorarem o facínora Maduro da Venezuela.

Aguarde-se o rolar do tempo, volto a reler Machado de Assis, Lins do Rego, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Padre António Vieira, a ouvir Marcelo Vianna, Sérgio Mendes, a esfusiante Dona Edith do Prato e outros discos editados pela Biscoito Fino. Biscoitos não, feijoada versão de Minas Gerais sim!

 

Concertinas

Três instrumentos musicais continuam a soar nos meus ouvidos, escutados entusiasticamente na minha meninice, que são a gaita-de-foles, a rabeca e a concertina. Cada qual na dupla actividade de frenético regozijo, ou de descaroçamento da vida afectiva a animar as trevas das noites longas e friorentas alumiadas por candeias e lamparinas, às vezes por fétido Petromax a adensar as sombras das pessoas alumiadas.

Os leitores de menos de cinquenta anos para seu bem não viveram em aldeias desprovidas de luz eléctrica, os de menos de quarenta anos regozijem-se porque não enterram os sapatos ou botas nos caminhos pródigos em lama, buracos e dejectos, as fontes de mergulho passaram à condição de património edificado abandonando a função de encherem os cântaros e cântaras das raparigas namoradeiras e sem namorados, dos meninos e das meninas cuja prioritária função após saírem da escola era irem à fonte.

Esses leitores e leitoras imaginem tal viver, dando consistência os relatos dos avós e pais não só acerca do monótono dia-a-dia, também dos dias nomeados de guarda das alfaias agrícolas e de outras obrigações. Trabalhava-se ver a ver, desde tenra idade, folgava-se pouco, no entanto, festa era festa.

Ora, em Lagarelhos naqueles roídos anos cinquenta, a gaita-de-foles acordava os dorminhocos como eu era. Estremunhado, num ápice lavava a cara ao modo dos gatos, agarrava um bocado de pão trigo (dia de festa), corria até ao terreiro onde os tocadores sopravam e expeliam sonoridades musicais, umas adstringentes como alguns vinhos, agudas, vibrantes, outras mais calmas ou domesticadas ao modo de tisanas a repelirem cavernosos catarros.

Sim, eu sei, os jovens de agora sabem os nomes técnicos do seu sistema de funcionamento, quais as notas musicais e possibilidades de o tocador fazer uma pausa e a gaita continuar a tocar. A Internet explica, eu gostava de ouvir a gaita-de-foles no terreiro. Já ouvi concertos de grande aparato de gaitas-de-foles na Escócia, na Galiza e noutros lados, só que a força do sopro dos gaiteiros no dia da festa em honra do Senhor porteiro do céu ficou a ecoar na minha memória colocando em segundo plano outras soltadas por esse Mundo fora.

A rabeca do sapateiro Izé (José) plangia latidos de cão sonolento pela noite fora irrompendo na casa (agora minha) através do telhado da cozinha a qual ao tempo não possuía forro. O vizinho Izé tocava mal, nas antípodas do rabequista bafejado pelo milagre de Santa Cecília, todavia adquiri uma rabeca num esconso tugúrio de Budapeste porque quando a vi apareceu-me a face tisnada, ossuda, a soltar palavras apimentadas escorridas num sorriso maroto do meu vizinho enquanto batia solas retiradas de uma selha cheia de água ou cozia tombas nas botas dos dias de feira entregues para ele consertar. Um dia deu-lhe na veneta rumar até Lisboa em busca de amor antigo, encontrou-o num instante, foram felizes, engendraram uma filha de olhos bonitos que encantaram um «capitão» de Abril. O Senhor Izé não era uma caricatura do Louco Rabequista, no entanto, quando li o relato de Fernando Pessoa, a rabeca que tantas vezes vi e ouvi na aldeia apareceu-me à frente dos olhos. Uma miragem sentimental. Forte, a exalar saudade.

A concertina rufava apelos nos caminhos escuros e lamacentos a anunciar baile, a prima Teresa vinda de S. Pedro Velho não bailava, porém sabia qual a palheira onde se realizava. A concertina anunciadora dava a volta ao povo, não tardavam a surgir as raparigas acompanhadas por sentinelas familiares dos dois sexos, os rapazes estavam de tocaia fora e dentro do espaço do baile, o homem da concertina recebia paparicos e pedidos para tocar a Linda Morena (lembro-me desta), além de outras a justificarem consentidos cravanços de unhas nas palmas das nãos das namoradas às esconsas. Os leitores de idade recordem e expliquem às netas de maneira a elas rirem sem maldade de tão (para elas) arcaicos comportamentos, as leitoras avós das aldeias digam-lhe quantas censuras e bofetadas levaram por a concertina as empurrar para a arca do peito dos pares. Os jornais regionais também devem educar para no futuro o passado não se perder. Lembro-o constantemente.

A concertina é parente pobre do acordeão, na Argentina, nas covas fundas da bela (já foi mais) Buenos Aires a concertina passa à condição de bandoneón concedendo verve maliciosa ao tango porteño, na Bragança de outras eras existiam exímias tanguistas, uma apanhadeira de malhas (já desapareceu essa função) e uma costureira dos Batoques. Mostravam a sua classe nos bailes plebeus da Associação. Lembram-se?

O falecido compositor e bandeónista Astor Piazzola propiciou intensos minutos de felicidade a quem o viu no Coliseu, um pouco por todo o lado assiste-se ao reaparecimento das concertinas, além de tal revivalismo alegrar os nossos ouvidos provoca agradável formigueiro nos pés. Bem bom!

O machucho e o salamurdo

 

A diferença de opiniões vem de longe, ainda o machucho usava mefistofélica barba, o salamurdo andava a escolher o carro destinado a ir fazer a rodagem à Figueira da Foz já gastavam tempo a esgrimir palavras sonantes o primeiro e o segundo esgares sibilinos num confronto que ciclicamente irá continuar fazendo sorrir a Ritinha e remoer irritações a Senhora Dona Maria Cavaco Silva.

Ou seja: o machucho inteligente, finório, de pensamento fulgurante e ágil e resposta pronta, cortante ou macia como manteiga quente chama-se Marcelo Rebelo de Sousa, o salamurdo, de poucas falas, de voz de timbre roufenho, arrastada, sonso quando lhe convém, especialista em «morder» pela calada é o Senhor Professor Cavaco Silva. Se consultarmos os anais políticos dos últimos quarenta anos, os livros de cada qual, sem esquecer sarcasmos, ironias e educados cortes de mangas escondidos nos punhos das camisas, percebermos a antinomia entre o passado e o presente destes dois Presidentes da República.

A última rixa é puramente de despeito rançoso do professor Cavaco contra o professor Marcelo porque este último pulverizou os recordes de popularidade a concederem-lhe folga política e popular para levar a água ao moinho dele sem atravessamentos de maior e críticas a suscitarem amplo aplauso. O móbil – La Dona é móbil – Joana de seu nome – prende-se com a bem sucedida substituição da Senhora contrariando todos os comentadores e políticos evidenciando-se na asneira a Senhora Cristas, a qual nunca deve ter ouvido a ária do terceiro acto da ópera Rigoletto, pois dessa ária retiramos o ensinamento de não serem só as mulheres volúveis. Entendido!

O machucho dá a impressão de ser volúvel, não é nos princípios, menos ainda nos objectivos, ao contrário do salamurdo leu O Príncipe de Maquiavel, sabe qual a causa do filósofo, diplomata e grande homem de leis Tomás Morus ter sido canonizado, daí ter contrariado os desejos, isso sim, dos volúveis pouco atreitos a descortinarem onde está o sol nos dias de cerrado cenceno. O salamurdo seguiu os passos do discípulo Passos que pretende regressar ao passado num alarde de analfabetismo político ou partindo do pressuposto de a maioria dos portugueses terem esquecido o ter ido para além da troika. As pessoas têm memória por muito que custe aos seus apaniguados.

O salamurdo insinuou cousas estranhas na passagem à disponibilidade JMV no exercício do cargo de PGR, o machucho respondeu sem carregar nas intonações, num registo de professor que não se limita a ensinar a perceber, também a imaginar, ora os contabilistas sabem contar notas, não sabem explicar a composição das cédulas que contam. Eis a lapidar diferença de um e o outro na transposição das armadilhas existentes nos caminhos pedregosos da política ora recheada de réplicas de imagens colhidas nos telemóveis, ora de escolhos de escutas a solto e a salto, leia-se o acontecido ao rei emérito espanhol, pense-se no rufado e ainda não esclarecido episódio de Tancos. De 1985 a 2018 tombaram na obscuridade ou vivem dias amargos centenas de rapazes videirinhos muito badalados em breves momentos de glória. A tal glória efémera!

Em 2018, as redes sociais intimidam, foram-se as alcoviteiras da Caleja das Pedras, do Bairro de Além do rio, da Estacada, da Vila, da Rua da Boavista, do Loreto, dos Batoques (devo ter esquecido algum poiso), vieram e estão nas nossas casas, a toda a hora e momento, o ensaísta António Guerreiro alude ao telemóvel grudado na nossa pele, sem surpresa o machucho nada nessas redes como barbos nas águas límpidas do Sabor selvagem (?), sem as frequentar vis a vis, não por acaso despediu o Facebook, os seus canais de comunicação escoram-se no momento do abraço afectuoso, no taco a taco com os jornalistas, sem esquecer os competentes assessores que tudo esquadrinham, tudo sabem e tudo lhe transmitem.

O salamurdo tinha outra forma de actuar, todos sabemos o resultado de várias «operações» onde pontificava um destro jornalista caído em desgraça junto dele e dos outros.

Permito-me recomendar aos leitores o trabalho de fazerem listas de machuchos e salamuros que conhecem, será uma tarefa risonha, também tristonha. Seguramente!

O cerco a Rui Rio

O filósofo Álvaro Ribeiro escreveu Razão Anima que desde há largos anos me auxilia a entender as indignidades humanas e as virtudes de O Homem Sem Qualidades (fundamental obra de Robert Musil), no paradoxo de o Homem é o homem e suas circunstâncias, explicou o filósofo madrileno Ortega y Gasset.

Inicio a crónica amparado na proficiência no esventramento da ânima humana de três grandes vultos da cultura, primeiro porque a todo o tempo me ensinam, a todo o transe me indicam caminhos e veredas no sentido de melhor levar a água ao meu moinho – o porquê de causas e efeitos – do nosso viver em sociedade dita civilizada, todavia recheada de vilezas, traições, vanidades e torções de carácter.

Sempre que entendo por azado recorro à benevolência de filósofos e ensaístas no intuito de serem traves sustentadoras das asserções que formulo, podia recorrer ao seu anonimato não o faço na convicção de um ou outro leitor levar a sua curiosidade ao ponto de ler algum livro de tais autores revalidando a certeza de os jornais serem educadores forma da escola funcional, sim da Escola Formal como a concebiam os pensadores do círculo do autor da acima referida Razão Animada. O Nordeste forma e informa para enlevo e prazer cultural dos seus leitores.

Todos sabemos quão monstruosa é a vivência dos grandes partidos quando arredados da arca do poder pois as manjedouras ficam sem erva e feno e as bornais desprovidos de buchas suculentas e as mesas de manjares substanciosos a obrigarem à utilização de colher, faca e garfo. As clientelas barafustam, intrigam, chega-se a atingir a fase de balbúrdia no Oeste. O PSD vive tais ciclos ao modo de irmãos desavindos, o provérbio ensina – são mais que inimigos, são irmãos – entusiasmando-se a ponto de as cicatrizes não sararem, de se atingir a pulsão do ódio velho não cansa.

Há anos Manuela Ferreira Leite tentou «endireitar» o Partido e dizer verdades sem adornos os luvas acetinadas. Tramou-se. Os rapazes glutões guiados pela mãozinha (entenda-se Miguel Relvas) colocaram-lhe armadilhas de toda a espécie escorados em mensageiros jornalistas treinados como as galinhas poedeiras causando-lhe graves prejuízos de afirmação política a culminar na derrota no prélio eleitoral. Na altura o rapaz Pedro Pinto muito se esforçou ou não fosse grande amigo da mãozinha seu companheiro de estúrdia na escola de quadros da Jota, volta a estar na crista da onda contestária a Rio. Pergunto: alguém conhece uma ideia para o governo do País ao Senhor Pedro? Ninguém conhece, conhecemos isso sim apartes, jogadas no aparelho partidário e mais não digo. Na meninice passava dias na casa do seu parente Alberto Rodrigues, conceituado comerciante brigantino, benfiquista assumido, proprietário da Sapataria da Moda e do Café Central. O Senhor Pinto principiou a sentar-se nos bancos do Parlamento no início da longínqua década de oitenta do século passado. Façam as contas.

O portuense Rio lutou e venceu o portismo clientelar de Pinto da Costa, recebeu votos, o grupo de inimigos aumentou, três mandatos na Câmara do Porto, contas equilibradas, as suas atitudes valeram-lhe esperança em variados sectores do PSD, o feitio teimoso granjeou-lhe animosidade na classe jornalística e dos elitistas bem pensantes do Porto. Não por acaso o amigo de facilidades refere os pacóvios suburbanos na carta de despedida do PSD (recordem-se da cunha a favor da filha), estou a referir-me a Martins da Cruz militante há sete anos sempre atento às vantagens do usufruto do poder.

O homem da mãozinha é o líder do cerco a Rio, dispõe de vários peões de brega em linguagem ribatejana, ouve muito Marques Mendes (no Comilão, Vela Latina e adjacências), consulta Dias Loureiro e está determinado em atirar borda fora o economista de contas escrutinadas. Os ruídos na imprensa são cuidadosamente planeados, os deslizes dos elementos aliados de Rio conseguem enorme projecção, a procissão está a sair do adro. A procissão só não será de defuntos – Rio e apoiantes – se os militantes de base, intermédios nas diversas estruturas do poder a começar pelo autárquico derem um safanão e consigam colocar os intriguistas do grupo parlamentar e afins a falarem para eles próprios destapando-lhe a cortina do fingimento levando os meninos a imitarem outro menino que disse: o rei vai nu.

Foi Telmo Moreno (não esqueço o seu desempenho na pacificação do PSD na época do consulado socialista na Câmara de Bragança a possibilitar a sua recuperação laranjinha) quem me apresentou Rui Rio numa noite bucólica numa casa de bebidas sita nas proximidades do Castelo. Agradou-me a sua franqueza e simplicidade, posteriormente falámos mais duas ou três vezes, o tom de aprumo e vontade de exercer o munús político sem demagogia reforçou a minha crença no ser possível «regenerar-se» o PSD libertando-o dos elementos postiços que no antecedente tanto trabalho custaram a Telmo Moreno.

Os dados estão lançados. Desejo a Rui Rio destreza na sua movimentação e golpe de vista apurado.

Setembro chegou…

Setembro chegou, o Verão terminou …cantava Sérgio Borges do conjunto João Paulo, a canção animava as verbenas pindéricas versão rural espanhola sem chistes e muito desejo recalcado. Estávamos nos anos sessenta do século passado, as bailações intercalavam jogos sobre rodas de patins na ringue de piso cimentado no Jardim António José de Almeida,

As verbenas concitavam o interesse de boa parte da população de Bragança, os programas desenvolviam-se num sinédrio de vaidades de vários elementos das denominadas forças vivas da cidade acolitados por mangas-de-alpaca de várias proveniências e funções. Tudo compostinho, os descompostos pura e simplesmente eram arredados das imediações porque sim e porque não. Episódios e actores numa próxima crónica.

Trago à colacção as verbenas convencido de as mesmas virem ao encontro por um lado das profundas aspirações do Homem necessitarem de divertimento mesmo se aperreado por uma Ditadura, por outro o desejo de diminuir as pulsões energéticas tão bem descritas por Norbert Elias na obra Em Busca da Excitação.

Manda a verdade escrever que as verbenas surgiram na minha mente após ter lido nos jornais e visto nos canais televisivos a profusão de festivais e festas aproximadas ocorridas um pouco ao modo de estalinhos e bichas de rabiar do tempo carnavalesco, estabelecendo o contraste temporal entre a tal imposição do referido compostinho (roupa, sapatos, penteados e acessórios colocados no corpo) e a liberdade de costumes; soberanos ou quase num ímpeto a retroceder aos bacanais romanos.

Não estou a exagerar, se o leitor duvidar faça o exercício de ler os programas de muitos desses ajuntamentos tendo como pano de fundo músicas de violenta batida, fumos inebriadores e cerveja ao preço da uva mijona. Leram notícias do ocorrido em Idanha-a-Nova?

O revivalismo do da canção – Setembro chegou –, serve-me não no sentido saudosista, sim na justa medida de também no confronto sazonal o mês das vindimas significar o corte da folia estival enquanto agora o fluxo festivaleiro preencher programações durante todo o ano. Seria absurdo procurar adnumerar tantos e tantos festejos, no entanto, julgo não ter surgido até agora o Festival da Murinheira como bem merece. Recordo na meninice ouvir a murinheira ser tocada e dançada nos dias de festa, para lá de Júlio Iglésias a recordar num canto à terra do seu pai, a Galiza.

Nas verbenas ganhavam as músicas propícias ao colanço corporal, dançar em cima de um tijolo constituía desafio muito tentado, uma formosa costureira bragançana demonstrava a maestria nessa execução nos bailes ditos particulares ou quase clandestinos.

O espartilho circundante das verbenas faz-nos rir quando o mesmo é colocado nas conversas dominadas por punções de apoio às revisões memorialistas umas vezes a colorirem faustos passados, outras vezes a encobrirem infaustos de má…memória. Ao invés o culto da crueza na linguagem e do quanto mais destapado melhor, tão estridentes nas redes sociais desbaratam completamente os carroceiros acusados de serem bocas sujas e as comadres zangadas em disputa do melhor espaço de secagem da roupa após ser desencardia nos lavadouros públicos. Se tivermos paciência na audição dos dichotes e insultos desenrolados e soltos nos Festivais colhemos uma boa amostra do extraordinário aumento lexical do mais virulento calão rico em condimentos estrangeiros. Às vezes tenho paciência!

Antes de Setembro chegar mantive conversas com dois jovens de trinta e tal anos cuja profissão é a de serem professores de viagens em cima de pranchas na crista das ondas do mar. Abandonaram os estudos escolares, um na área da sociologia, outro das ciências agrárias. As lições decorrem de oito a quinze dias, os alunos são estrangeiros, cada sessão dura no máximo duas horas. As alunas e os alunos carregam as pranchas, executam breves meneios do tronco e braços, logo de seguida entram na água e é a jiga-joga do tentar surfar a onda e do deslizar de barriga na areia. O negócio é rendoso, nos últimos anos a costa portuguesa deixou de exibir mostruários de peixe a secar, passou a suportar lojas de venda de equipamentos das modalidades praticadas e toda a quinquilharia adjacente, incluindo casas de comes e bebes, os bebes até altas horas da noite a fim de a vizinhança ensonada gritar como se tivesse tido um pesadelo macabro estilo cobrador do fraque a atormentar caloteiro empedernido.

Os doutos professores usam e abusam de palavras violentas, agressivas, do mais sórdido calão, um deles afiançou-me ser a única maneira de os alunos entenderem as ordens pois a língua em uso, a inglesa, é viral e incisiva nessa área. O problema do constante emprego da agressividade vozeadora gera incómodos, mimetismo das crianças a gritarem nos restaurantes defronte de pais passivos e frequentes conflitos entre clientes e funcionários, as agressões de adeptos boavisteiros em Ponta Delgada é uma amostra de um clima ameaçar a tranquilidade dos menos apetrechados para suportarem refregas musculares.

A festa é o embrião dos festivais, as tecnologias de ponta transformaram as festividades (todas) trazendo-lhe outras alacridades, a indústria é intensa e rendosa enquanto dura a moda e a fama dos artistas, as agências especializaram-se em todas as matérias, os escritos de Huxley (Admirável Mundo Novo), Orwell (1986) entre milhares de outros pecaram por defeito de imaginação, no entanto, tal como Júlio Verne proporcionam boas leituras outonais ajudando-nos a rever e cogitarmos demoradamente acerca do Homo Ludus e das suas disformidades. Vou rever a Laranja Mecânica, comer mirtilos e procurar um disco de Madalena Iglésias onde canta Setembro. Sim, o mês desnatador dos namoros de praia. No antigamente!

O Meinante

Assim chamavam ao homem meão: trago ao conhecimento dos leitores este pequeno agricultor de Lagarelhos, não na fantasia de através deste escrito e ficar quite com a obrigação de descrever ou lembrar pessoas simples, algumas vinculadas à classificação de simplórias, de um modo geral eivadas de bondade, desprovidas de inveja, conformadas com a sua sorte, triste, porque confinados ao seu apertado e estreito reino circular resignavam-se, trabalhavam arduamente, autênticos servos da gleba, vestiam camisa lavada nos dias de festa, comiam um pouco melhor nesses mesmos dias nomeados como é exemplo estridente a matança do porco, o dia de tirar a barriga de misérias, nessa sisudez quebrada quando surgia uma trovoada violenta, um incêndio na aldeia, uma morte inesperada a provocar estupor e consternação na comunidade. Sim, eu sei, na boa literatura e nos livros de “papel pintado” como os acoimo, tenho de acrescentar os digitais, abundam figuras parecidas ao Homem central da crónica. Se Aquilino, acima de todos o enorme Raul Brandão, trataram tais desprovidos de tudo de modo a percebermos a grandeza de anima de seres cujo fatum os colocou numa extenuante existência de só serem ouvidos e ora lembrados por serem sinuosidades humanas. A torto e a direito digo e escrevo quão mesquinho e invejoso é um País que não concede a importância devida a Raul Brandão, a melhor forma seria levar os meninos e matulões mesmo os da geração rasca a lerem obras dele, por exemplo Os Pobres, O Gebo e a Sombra, A Morte de um Palhaço, a Farsa, de forma a entenderem quão ignaros são no tocante à riqueza e pluralidade dos monumentos escritos entre outros por os seus émulos Luís de Camões, Sá de Miranda, Francisco Manuel de Melo, Padre Manuel Bernardes, Padre António Vieira, Camilo, Eça, Nemésio e Tomás de Figueiredo. Acrescento ainda, todos quantos se compungem por terem dificuldades da altura dos Himalaias a fim de parirem um livro porque nasceram longe dos bairros chiques de Lisboa, e choram baba e ranho em virtude de na meninice descaroçaram as cerejas ao contrário da vedeta televisiva, Fortunato de apelido, arvorados em escritores, deviam ler pelo menos quatro vezes o notável Húmus e as Memórias do majestoso sem culto Brandão a fi de pensarem no seu talento dedica a nos lembrar a existência dos humilhados e ofendidos a principiar pelos seus familiares sem qualquer maldade por parte deles. Detesto os lamurientos instalados comodamente nas suas casas ancestrais, no remanso de férias, capazes de chorarem ao ler Pão Partido em Pequeninos do obliterado Manuel Bernardes, incapazes de gritarem no adro ao saírem os fiéis da massa, levando os conterrâneos a interrogarem-se sobre a causa dos senhores doutores e engenheiros gritarem, eles, tão doutorais, tão compostos, tão divertidos na gravidade encerrada no canudo. Outros, na época dos passadores de corpos fizeram-no por imperativo de consciência numa mistura de ingenuidade e parvoíce, preferindo observar os dedos róseos do raiar da aurora a arrotar lamentos e colocar os dedos a premir bubas imaginárias. Pois é: há sem dúvida quem se coce tédio, o Senhor Meinante, deixem-me trá-lo desta maneira coçou-se sempre porque as pulgas, os percevejos, os piolhos apreciavam a seiva do seu sangue, arrepiando-se os parasitas quando ele corava lágrimas de sangue na infinita tristeza do beijar as faces das parentes no momento da definitiva separação fruto da forçada emigração consequência da aridez dos terrenos pobres a gerarem fracas colheitas, penúria e emigração. A emigração é um novelo enovela do de lágrimas e suspiros (obrigado Ingmar Bergman) cujo conteúdo encerra enganos, desejos, traições, ciúmes, invejas, denúncias e tutti-quanti a caca humana assola e tolda o bom senso possibilitando o espraiar das nossas pulsões negativas. O irmão da Senhora Maruja (infatigável acarretadora de água da fonte de Santochão) recebia elogios e convites dado ser avesso a contorções nos sulcos gravados pelo arado, a competência dele e de outros levava os donos de terras a querem-no como obreiro. Os agoniados escritores (alguns) doridos devido a não terem crescido rente às Universidades se largarem o papel pintado e ascenderem à categoria de criadores dentro do conceito do por eles concebido sem estarem encostados a modismos facilitadores das expressões. O Sr. Meinante traçava os sulcos baseado na condição do terreno (fresco ou seco, forte ou fluído, fundo ou superficial, na pujança dos seus braços na orientação do arado, na força das vacas. Leitor impenitente, às vezes forçado a lar cousas indigentes (podem considerar presunção), refugio-me na releitura dos autores de sempre dada a sua coriácea qualidade estilística, poupando os olhos habituados a folhear autores de grande êxito temporário logo efémero.

Em Menino vi e observei o talento do inofensivo e crédulo sulcador de regos nas terras da aldeia, na idade a beirar a quarta categoria recordo-o na categoria de símbolo na perfeição imperfeita das courelas conseguindo o louvor dos considerados perfeitos, escrevendo nos solo assemelhando-se aos prosadores de tal talento que conseguiram e conseguem romper o híman duro dos editores caçadores de lucros fáceis apostando nos escrevedores de obras de êxito fácil, as quais passada a onda desaparecem da nossa memória num relâmpago em trovoada seca. Os arados entraram na categoria de semióforos, escrever à «unha» também, os computadores e a Internet conseguiram o regresso da multiplicação… dos livros. Em Cartagena das Índias os conhecidos cumprimentam-se – me lê – por cá não tarda a chegarmos a este estádio. Vou continuar a reler os Mestres dos que sabem, a sorrir ante os queixumes dos deserdados das noites feéricas da noite lisboeta, entretidos a suspirar debaixo da luz da candeia a recitarem litanias e soltarem suspiros por a fada não o terem bafejado como o fez relativamente a Nabokov só para citar um dos maiores das letras universais.