Armando Fernandes

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Bom senso & Bom Gosto

O título da crónica remete-nos para uma polémica literária de tal forma ribombante que marcou uma época e continua a ser marca maior de castigo do excesso, do dislate, do encardido a sobrepor-se alvo tecido do múnus político. Se as sucessivas metidas do pé na poça da prosápia e ridículo deslumbre da envernizada esquerda caviar de Graça Fonseca, ministra da Koltura, não trespassa o influente circulo das Artes, se as passadas em falso de Céu Antunes, ministra do Sol na eira e chuva no nabal apenas irrita a CAP e seus associados, se a ministra da Saúde faz sorrir as pedras da calçada quando puxa a manta das estatísticas a seu favor e obriga os calhaus dos caminhos a verterem lágrimas ante o caos e atrasos nas consultas e cirurgias, a ministra Ana Mendes Godinho averbou o Prémio Camões da vesguice, da nódoa e do desaforo ao responder como respondeu ao Expresso relativamente ao nó- -górdio de Reguengos de Monsaraz, ainda ao relativizar o número de idosos falecidos derivado da pandemia. A ministra que ostenta apelidos de uma conhecida família socialista de Tomar, conseguiu ofuscar o tremendista Miguel Relvas quando aconselhou os jovens quadros à procura de trabalho a desampararem a loja e emigrarem. O Sr. Passos Coelho estatelou-se na referida poça da asneira achincalhando os reformados e pensionistas, estes e os jovens utilizaram a arma do voto e, despediram-no para desgosto de um ventrículo da asneira cujo nome é Pedro Duarte. Bem pode António Costa elogiar a ministra Godinho, bem pode o primeiro-ministro apelar à paz e concórdia, bem pode o secretário-geral dos socialistas mandar o arguto Carlos César piscar o olho esquerdo à Dona Catarina (muito suave para a ministra) e ao Sr. Jerónimo, o mal da Dona Ana Mendes Godinho está feito e as sondagens vão emitindo sinais a provarem quão maléfico é o sal nas feridas abertas na ânima dos velhos não do Restelo, sim de todo o País. O PSD ainda nos dias que correm está a pagar as argoladas perpetradas no âmbito da Troika, muitos dos seus dirigentes comportaram-se pior que comissários do povo a executarem um qualquer plano quinquenal, as coisas são como são, quando o bom senso e o bom gosto são esquecidos o corpo eleitoral é que as paga. As quatro ministras estão longe de serem émulas do bando dos quatro, no entanto, estão perto de afundarem os socialistas nas próximas eleições autárquicas. E, depois logo se vê, dirá o conselheiro Acácio de serviço. O Dr. António Costa possui a experiência e sabedoria suficientes para ignorar os acacianos, ele além de molesto sabe onde estaciona o sol quando as nuvens o ocultam, porque os cirros estão a enegrecer entrou em velocidade frenética na intenção de sair airosamente do saco de ataques, ameaças, e demais torpezas vindas ao de cima em virtude da auditoria da Ordem dos Médicos. Dois ou três budas do sistema questionam e colocam em causa a autoridade da Ordem dos Médicos, curiosamente não lançam pústulas à inventariação das deficiências do triste episódio no Lar da bonita vila alentejana, não precisamos da pitonisa de Delfos a fim de apontar o rabo do gato escondido na burocracia da Administração Regional de Saúde do Alentejo. Uns finórios estes senhores! O primeiro-ministro não demite ministros a pedido, no entanto, não esquece o tremendo pontapé em falso da Ministra, a seu tempo cobrará o custo do falhanço comunicacional, até porque sabe-se como principiou o novelo mediático, não se sabe quando terminará porque os médicos têm uma importância crucial nas comunidades, sabem usar os seus atributos e, na esmagadora maioria não desconhecem o sentido de corpo baseado no milenário código de Hipócrates. A sociedade portuguesa está crispada, está farta de propaganda, farta de governantes a evidenciarem a repetida carência de bom senso, quanto ao bom gosto começamos a nada dizermos, só pensamos em nos salvarmos usando máscaras de vários tipos e feitios. Até as dos caretos servem! A procissão dos defuntos lembra a urgência de as arcas serem desencoiradas. Acerca das encoiradas escreveu magistralmente Magister/Mestre Aquilino Ribeiro. Antes de correr o pano sobre a crónica e, porque o tempo corre, as acídulas declarações de Jorge Gomes no rescaldo das eleições distritais do PS de Bragança são a prova provada da falta de bom senso. No distrito os atiçadores comprazem-se em avivar as brasas da discórdia. No PSD estão (aparentemente mortiças), porém a buba continua por sarar. O meu estimado amigo Mota Andrade entrou na pugna e perdeu. O operativo Jorge Gomes pode não saber cantar a canção mexicana El Deguello, mas conhece e aplica a letra – não há piedade para os vencidos. PS. Estejamos atentos às urdiduras dos dois partidos no respeitante à composição das listas das autárquicas. A tartaruga venceu a lebre. A tartaruga é persistente, não acredita em renovatos renovados. Acredita nela.

Regresso ao Paraíso

O meu querido amigo Francisco Gomes telefonou-me na semana passada. Queria saber novas da minha pessoa. O Francisco (somos Homónimos) nasceu no Castro nas redondezas de Vinhais, em 1967 apresentou-se a fim de cumprir o serviço militar obrigatório, entre receber fardas e botas iniciámos bela amizade, já lá vão 53 anos, fomo-nos vendo esparsamente, mais amiúde enquanto desempenhou com devoção e elegância o cargo de gerente do BPI em Vinhais, sempre que visitava a aldeia dos prodígios – Lagarelhos – ia trocar abraços, rirmos acerca das pérfidas bilhardices do alferes Prata e/ou trocar um cheque por dinheiro certo sem necessidade de cobertor ou cobertura. O Francisco a quem chamo Xico ou Chico, depois de lhe ter relatado em cursivas palavras sem zagalotes do chorrilho vocabular vinhaense, a violência insolente do viver enclausurado, receoso e confinado ao abrigo caseiro ele disse-me andar feliz e contente a calcorrear os caminhos e a observar os campos da aldeia e suas cercanias onde herdei uma touça após a morte da minha avó. Não sendo invejoso de nada, nem de ninguém, no corrimento da nossa conversa invejei-o por que muitas vezes não se lembrar de colocar a máscara, de respirar os ares puros vindo da serra da Coroa e montes anexos como se estivesse no jardim das delícias sulfurosas da poesia do Regresso ao Paraíso do poeta Teixeira de Pascoaes ou a colocar as asas de Como ser Anjo do escritor Vassilies Vassilikus, a fim de esvoaçar qual Ícaro sem correr o risco de afogamento nas límpidas águas dos rios que persistem em serem fontes de aprazimento naquelas paragens. Se, me é permitido escrevo: porra e três quinze, Xico és o itinerante das cortinhas e lameiros, como eu fui dos livros mágicos de assombrações talvez ainda passíveis de ver, sentir, cheirar nas Pendelinhas de Lagarelhos, Castro, Soutelo e Sobreiró. Um exercício só para quem consegue escalonar o Mafarrico a imitar as mouras encantadas ensonadas nas fontes e poças, pôr o Trasgo trapaceiro no bornal do João Soldado que nele malhou como quem malha centeio verde, responder com um corte de mangas ao Demo de Aquilino Ribeiro, de acorrentar o Porco-Sujo acorrentado ante S. Bartolomeu, enxotar o Demónio invocando a oração o Diabo sem cabeça apareça, apareça e exorciza para as profundas infernais o desobediente e pior de todos, Lucífer, o das trevas. O estimado Francisco acendeu a centelha da recôndita vontade de lavar os olhos não no reino maravilhoso de Torga, sim no rincão grávido de hierofanias e alegorias onde fui feliz debaixo de relâmpagos e trovões, de zurvadas verdejantes, de meios-dias de esconjuro sob tórrido sol a levar Carracó a resguardar a caixa das sardinhas na sombra dos cabanais. O Carracó é ao lado outras figuras picarescas da iconografia da antiga Póvoa Rica. As referidas figuras émulas do Malhadinhas justificavam (justificam) livro galhardo e eclatante. Se um dia surgir fico feliz, até lá vou porfiar no sentido de tal como o gavião perscrutar o paraíso que o Francisco desfruta amenamente, tal qual, o articulista Barrondas da Serra fruiu nas faldas da Coroa ou não fosse ele digno coroado. Nem que seja só por um dia irei ao Paraíso após subir a Escada de Jacob!

O Virgílio

A miserável exibição do Benfica na meia parte do campeonato entregou o título de campeão aos portistas e, a arca da memória atirou cá para fora, de imediato a lembrança de um baptizado ocorrido na aldeia dos prodígios – Lagarelhos -, onde o menino recebeu o nome de Virgílio porque o padrinho assanhado adepto do clube cujo animal no emblema não existe assim o determinou. O menino nos dias de hoje vive na cada vez menos povoada localidade dos três deputados em simultâneo dela originários, o Amândio Gomes, o Armando Vara e o Armando Fernandes que na opinião do meu progenitor nada fizeram relativamente ao pequenino burgo acarinhado pelos jesuítas, cujo padroeiro é o chaveiro do Céu o senhor São Pedro venerado, pelo menos, no dia 29 de Junho em plena época das cerejas e das ginjas que no meu tempo de meninos eram empregues no tornar mais rutilante e colorida a imagem de Santo Estevão também integrado na procissão, escorado nos ombros dos garotos. Ora, o padrinho do Virgílio era o Senhor José dos Santos negociante de produtos rústicos – batatas, castanhas e cereais -, sendo o avô do Virgílio «delegado» e acendrado amigo do senhor de voz cantante, de faces risonhas, olhos brilhantes e cabelo ondeado ao modo dos galãs do cinema, especialmente Tyrone Poyer e Errol Flynn. O agente chamava-se João Martins, por alcunha Janaz, não sei se corruptela de Joanaz) era primo direito da minha bisavó Júlia Martins, por esse vínculo e de vizinhança fomos convidados a participar na entronização como filho de Deus do menino e o negociante mais a filha (penso não errar) apadrinharam-no. Segundo a minha avó Delfina o Senhor José dos Santos catrapiscou uma bonita rapariga de Rio de Fornos, ela acolheu os gorjeios, casando de seguida. Recordo-a fugazmente no decurso das bailações pós prandiais no dia da festa do Santo registado em forma de imagem segurando as chaves, barba cinzenta e toga azul. Assim o rememoro. A senhora fazia- -se acompanhar pela irmã e a filha a quem a família do Sr. João chamava menina Helena. Na altura, uma mocinha ser tratada debaixo dessa forma, vestida de frou-frous de organza, calçada com sapatos de verniz, a irromper na festa, contemplando-a de longe enquadrada na família, reverenciada pelos anfitriões provocou- -me impressão tão profunda que passados uns sessenta anos ainda perdura. Nos meus cálculos teria nove anos, as aldeias primavam pelas fontes de chafurdo, pelos caminhos lodaçais no Inverno e montes de pó no Estio, imperando o espanto ante o visto e observado até a luz do dia o permitir, comentado à noite no aconchego do lar enquanto os tições não esmoreciam. Terei trocado meia dúzia de palavras com o senhor Santos em fugidio encontro na faceira de Lagarelhos, porém ouvi a testemunhas que reavivarem vários episódios facetos da noite vinhaense nos quais ele foi actor principal, num tempo de luz eléctrica nas ruas a fenecer à meia-noite, daí os homens serem pardos tal como os gatos, ora, o fervoroso andrade (assim se tratavam os portistas) possuía o condão de não os deixar extravasar mantendo-os confinados às regras do bom viver com todos a fim de gastar os dias conforme lhe apeteceu. O defesa do FCP inspirou o nome do cidadão de Lagarelhos, outro recebeu o patronímico de Eusébio em virtude do pai nado e criado no lugar de lagares de vinho fruto de boas uvas de vinhas bem expostas ao sol. O apaixonado lampião morreu há anos, os lagares pereceram em consequência da dizimação das cepas atacadas pelas pragas tal como agora o vírus ceifa vidas a esmo. Esperançado na finitude da pandemia atrevo- -me a escrever sobre um passado recente porque ao contrário do que os amoladores de tudo quanto não é com eles é possível registar factos anódinos, porém no tocante a História representativos do quotidiano das comunidades. A Escola dos Anais ensina-o. Uma pergunta zombeteira: os Professores na preparação das aulas de história, filosofia e ciências sociais recordam os mandamentos da Escola dos Annales?

Máscaras, Mascarilhas e Mascarados

No tocante ao abrangente tema da Máscara guio-me pelo aprendido nas obras de Claude Lévi-Strauss, Mircea Eliade (que trabalhou na Avenida Marquês de Valbom em Lisboa), Marvin Harris e Roger Callois. Eu sei que existem centenas de outros especialistas e putativos especialistas, no entanto, prefiro confiar nos Mestres que sabem, a gastar os olhos nos do pouco pensado, reflectido e vivido em cavalgadas em vez do percorrido a pé, porque o caminho faz-se caminhando, assim o assinalou o poeta que morreu nos braços da burguesia após jornadas em caminhos que o seu opositor Camilo José Cela calcorreou de lés a lés de toda a Espanha franquista que nos legou Mazurca para dois mortos que vale por toneladas de títulos de antropologia. Esta obra do galego passa-se na Galiza e nela surgem como fantasmas risonhos, pícaros, obscenos, glutões e excessivos os nossos avós do Nordeste transmontano. No tocante a máscaras há quem a afivele todo o ano, excepto no Entrudo, há quem possua várias a fim de as usar conforme as circunstâncias por isso as mulheres astutas das nossas aldeias os crismaram de pantomineiros, há quem as coloque no intuito de mascararem as pulsões negativas – estupidez congénita, impostura, ingratidão, inveja, ódio – ao modo de figurantes repulsivos das grandes tragédias gregas – prometeu, antígona e as bacantes – só para citar as mais referenciadas, a não significar serem mais lidas e interpretadas. Já o escrevi, o Nuno, Nuno Álvaro Vaz, sócio da Livraria Cristal concedeu-me crédito, pagava os livros de acordo com as minhas possibilidades (que eram escassas, ele conhece as causas), uma das primeiras obras adquiridas foi o romance Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas (a história regista ser o eclético autor dumas de outras). Os leitores leram a triste sorte do personagem O Homem da Máscara de Ferro, lembra que até do ferro se fazem máscaras, a significar ser possível a produção de máscaras conforme nos dá na real ou republicana gana. Neste tempo de virulenta pandemia as televisões exibem artefactos destinados a protegermos narizes mesmo os ranhosos e as bocas, até as impregnadas de aviltantes halitoses. As máscaras não são só signo/significante de luxúria, engodo, engano; aos as vislumbrarmos logo ficamos inteirados sobre o que uma mulher ou um homem estão ou deviam estar a praticar acções relativas aos seus conhecimentos e profissões, a torto e a direito verificamos incongruências tendo como elemento primacial a máscara, concedendo acuidade à sentença: bem prega frei Tomás, faz o que ele manda, não faças o que ele faz, este anexim já é conhecido antes do Professor Marcelo ser aguadeiro de António Costa, para lá das diferentes directrizes sobre o mesmo problema de Marta Temido e Graça Freitas. As duas senhoras ainda não convocaram uma conferência de imprensa a pedirem desculpa por que confundem máscara com mascarilha. Ao menos podiam ir à Interne ler as significações de máscara e mascarilha. Se as senhoras tivessem tido a sorte como eu tive de ver os filmes A mascarilha de Zorro o vingador, ou o Prisioneiro do Castelo de Zenda, verificavam as diferenças entre máscaras e mascarilhas. Bem sei, tais filmes não obedeciam ao cânone da actualidade – palavrões de fazerem corar a boca imunda de Aretino, em vez do sugestivo tapa-destapa dessa época de mulheres opulentas aparecem actrizes anorexias ambrientas e escanzeladas. Embora as comparações sejam odiosas, porém vejam as actrizes dos dois filmes nas versões de Zorro e do Prisioneiro, (a lindérrima Madeleine Carrol, espero mão me ter enganado no apelido) e depois vejam as diferenças. No que tange a mascarados volto, novamente, a Bragança não no sentido serôdio do fado coimbrão Coimbra dos meus amores, sim no referente à visão de futuro da cidade. Os leitores recordam-se de um candidato numas eleições autárquicas ter apostrofado Jorge Nunes e Hernâni Dias, o primeiro na justa e operativa medida de ter uma visão cultural da cidade apostando na criação de museus, o segundo continuou e continuará (assim espero) na mesma senda a demonstrar ao candidato a sandice do por ele pensado e proferido. O tempo dos pafós vale como recordação de um passado ancorado em tristeza, conformismo bafiento e estagnação pois no salazarismo tudo se concentrava na letra da canção é uma casa portuguesa (façam o favor de ouvir), no vinho carrascão e carapau do gato. O Museu da Máscara repleto de semióforos a perpetuarem vinculações é exemplo de antecipações do futuro escorado em sedimentações culturais capazes de contribuírem para o revigoramento da região. Os mascarados do presente são cínicos, plagiadores, logo miméticos. O Museu da Máscara ora trazido à colação pelas piores razões para lá de instrumental e separador do referido mimetismo oportunista e pescador em águas turvas a possibilitar a mantença de burocratas da cultura que não usam manguitos dado não estarem na moda, assume-se no quadro das estruturas e super-estruturas daquilo que é lícito esperar numa cidade cujo passado é (deve ser) âncora de fixação de massa crítica geradora de riqueza e emprego. A pandemia eivada de venenos civilizacionais teve o condão de motivar mobilidades que o pouco educado Secretário de Estado da dita cuja ou doença de S. Vito não conseguiu, ou por defeito de incompetência sem descurar a hipótese de raivosas ciumeiras de índole local serem a mãozinha fechada a movimentá-lo da mesma forma que xarabaneco das festas da cidade movimentava as marionetas. Lembram-se? Alguns do meu tempo sabiam fazê-lo destramente, assim soubesse o significado e substância de MORE. Hei-de saber!

O Arménio

O Arménio nasceu pobre. Para a esmola ser menor nasceu filho de pai incógnito. Raras vezes, na sua meninice usufruiu de duas refeições seguidas de tirar a tripa de misérias. Na Páscoa, na festa em honra do senhor São Pedro, quando o convidavam a participar na matança dos porcos. Pouco mais.

Ser zorro na aldeia não era novidade, o ferrete saía das aguilhadas, galhas, e palavras acintosas quando o infeliz menino, era o menino meu predilecto companheiro de infância, praticava um qualquer acto a desagradar às zelotas e ímpios das públicas virtudes e vícios privados, nessas alturas tal como as escrófulas eram exibidas pelos pobres de pedir (havia muitos) o signo sainete de ser filho de mãe solteira soava perto da casa da avó (a senhora Albina) como o sino maior da igreja lembrava a todos o ir principiar a missa dita pelo Padre Aurélio que deixava a égua rabuda numa loja de um homem de semblante terroso, lábios cortados à navalha, avantajado na estatura, por isso chamado Xico-grande. Este sebandija espancou vil e violentamente o Arménio porque aos seis anos de idade lhe cortou meia dúzia de favas com a minha cumplicidade. O bruto bateu no rapazinho como o malhador bate em centeio verde. O Arménio não viveu num palacete de brasão esquartelado a significar bastardia, viveu numa decrépita casa com um cabanal esborralhado no terreiro de Lagarelhos. Na origem do berço reside toda a diferença apesar de inúmeros zorros terem singrado na vida.

O corpo inerte do Arménio foi transportado para junto da segunda mãe, colocaram-no em cima do escano, vi a extremosa avó limpar-lhe os lanhos com vinagre, e rugia para dentro a sua revolta brotando lágrimas de revolta impotente. Os vizinhos dissuadiram a mãe da criança de apresentar queixa na guarda por que sendo pobre e tendo um filho zorro não podia pagar a demanda nem conseguia respeitos, ela mulher obscura, a Nair tratada por Naíde, ele proprietário e anfitrião do pároco da freguesia. Vi o meu querido amigo salpicado de nódoas negras sem eu nada poder fazer; salvei-me do mesmo tratamento em face de o lapuz ter receio de enfrentar o meu tio e padrinho e a mulher dele ser amiga da minha avó. Por mim continuo fremente de raiva em virtude não ter podido auxiliá-lo, no que tange ao sinistro espancador passei a desviar-me dele, a nunca lhe falar. Os anos foram correndo, os pobres continuaram a salmodiarem orações até receberem a esmola quantas vezes de comida desdenhada pelos cães, ou a remendada resposta: hoje não pode ser. O Arménio cresceu, ingénuo e confiado, quando pretendia participar nos bailes de inverno, os «bondosos» rapazes pediam às «bondosas» raparigas para o atraírem levando enterrar as socas na cama do lodaçal em redor do «tablado» da bailação.

A vida levou a espaçarmos os encontros, a necessidade levou a emigrar, primeiro foi explorado em Espanha, três ou quatro duros por dia, de ver a ver, era o horário, veio-se embora.

Encontrei-o na festa em honra do chaveiro do céu, na procissão o Senhor São Pedro vai no andor, chaves numa mão, olhar sereno de pescador de almas, cabelo canoso, barba a condizer, túnica azul debruada a ouro, vai abençoar as mulheres, os homens, as casas, ao campos. Tudo. Do meu quintal observei os padres e os fiéis a cantarem e a segurarem os andores, também vi o Arménio, não tardou a abraçar-me aos repelões batendo-me as mãos calejadas nas minhas costas. Não tardaram os seus olhos a explodirem em lágrimas, logo seguidas de explicação da causa: quis ajudar a levar um andor. Os «generosos» rapazes da mesma idade impediram-no! Nada lhe disse. Estivemos tarde fora a reviver facécias da meninice, desaconselhei-o a não se meter no baile. Passados dias, em Bragança, deu-me a novidade: vou para França. E, na terra dos gauleses mourejou durante anos, casou com uma portuguesa das bandas de Celorico da Beira, teve filhos e regressou. Acidentalmente, no dia posterior ao funeral do seu tio Cândido voltámos a abraçar-nos. O momento não propiciou grandes efusões, combinámos um encontro no nosso terrunho de infância que nos proporcionou grata alegria ensombrada ao rememorarmos aqueles atrozes episódios de falta de nome do pai, nessa altura já ele podia assinar Bernardes pois a mãe casara com o Sr. Regino pai dos seus irmãos, o Lelo e o Eugénio. A rememoração deslizou até o seu filho, moço de quinze ou dezasseis anos lembrar a hora de partida. Um abraço, desceu as escadas da casa Buiça, eu fiquei a rever a sua imagem de menino triste, de olhar receoso trespassado de inocência, que me estendeu um bocado de queijo amarelo (flamengo) cortado de uma rodela recebida pela mãe numa acção de farisaica caridade da assistência social de Vinhais. Eu estava ansioso em cravar os dentes naquela novidade destinada às pessoas de reduzidos ou nenhuns recursos.

Há quatro meses, na Feira do Fumeiro de Vinhais, a sua Tia Gracinda encontrou-me a conversar com o Teófilo, por ela soube da morte do Arménio na sequência de um cancro. No regresso até onde vivo, durante quatro horas, o menino de pele e dedos gretados a suarem dolorosas gotas de dor que se chamavam frieiras povoou a melancólica viagem. O afã temporal foi substituído pelo medo e imposição de regras consequência da pandemia. A evocação do Arménio foi sendo adiada. Tardiamente reparo a falta.

O 25 de Abril

Eu não conheço o Sr. Henrique Pedro. Conheço a sua escrita que leio aprazivelmente neste jornal. Porque neste País que maltrata a sua língua aqueles seres empenhados em a defender, o caso de Henrique Pedro, merecem atenção, entendo por bem tecer considerações acerca do seu artigo relativo ao acto restaurador da liberdade de expressão de pensamento, da assumpção de podermos votar de acordo com os ditames desse mesmo pensamento, defender opiniões e conceitos contrários aos de outrem, em suma: a possibilidade de respirarmos sem receio de um espirro suscitar perseguições e entrada, pelo menos, nos arquivos da PIDE. Ora, o acima referido não o conquistámos como conquistámos possessões em várias partes do Mundo, foram os militares de Abril que corporizo no meu antigo vizinho e estimadíssimo amigo Fernando Salgueiro Maia, e não nos militares do exército fujão, assim apelidado por Marcelo Caetano.
O Sr. Henrique Pedro no seu artigo fala em três golpes de Estado no dia em que fui de Santarém para Lisboa às seis da manhã com a finalidade de ouvir uma aula teórica do sábio Padre Manuel Antunes, duas práticas sob a égide do agora Professor Doutor José Matoso, filho do autor de um célebre manual de História Universal, livro único do terceiro ao quinto ano do ensino liceal e na esperança de poder assistir à consumação dos zuns-zuns soprados e ouvidos na Livraria Apolo situada nos rés-do-chão do prédio onde vivia, frequentada amiudadamente pelo Maia, o Palma (morreu general), que o general José Carlos Cadavez conheceu pois o Fernando Salgueiro Maia comprazia-se em levá-lo à livraria vigiada pela PIDE, por isso mesmo o nosso conterrâneo capitão José Augusto Fernandes, comandante da PSP escalabitana, pisou o risco e fez o favor de me avisar. O Comandante Carrazedo (era a sua alcunha) posteriormente à acção vitoriosa viu-se confirmado no cargo e, nessa conturbada, veio posteriormente a comandar a PSP dos distritos de Évora e Portalegre, sendo estimado na cidade do gótico enquanto nela viveu. Se o Sr. Henrique Pedro reparar os militares referidos neste texto verificará serem plurais no pensamento, até opostos, iguais na qualidade de oficiais do exército. 
O seu artigo carreia palavras a justificarem a sua asserção, não contrario a tese apesar de nas dezenas de livros lidos que possuo sobre a revolução (termo em sentido muito restrito no meu modesto entender), os depoimentos e relatos ouvidos e comentados pelos principais intervenientes no processo contrariarem o expendido pelo também colunista do Nordeste.
O golpe resultou, os desvios e entorses sofridos provocaram dor mental e sofrimento físico podem não ter logrado a plena e conveniente reparação (o Maia foi removido para os Açores pelo seu amigo Ramalho Eanes) enquanto outros foram catapultados e exerceram funções derivadas da aplicação dos conceitos – em terra de cegos…, dos enganos comem os escrivães –, são consequência de mesmo nas revoluções sem sangue e dos cravos muitos dos seus filhos são vítimas de si próprios como o genial Francisco Goya lembra pungentemente no quadro Fuzilamentos de 3 de Maio.
Admito, aceito, azedumes contra a data que se tornou universal gostem ou não os seus compungidos detractores, admito, aceito pontos de vista a colocarem em causa posições e atitudes de bazófias e arrogâncias de quem devia ser humilde, já não aceito agressividades a atingirem o calafrio da utilização de armas e ataques físicos a defensores dos ideais expressos no manifesto do MFA sem deixar de considerar um hediondo desastre: a chamada descolonização. 
O seu artigo tem o mérito de permitir-me após a menção da data colocar o advérbio SEMPRE. Por tudo, até pelas desilusões Sempre.

Cerejas

Gasto os dias a estancar desejos de escrever sobre terras e pessoas que amo. Atribuo o desejo ao facto de estar à beira de entrar na perversa designação quarta idade, um eufemismo a significar setenta e cinco anos. O dique do estancamento rebenta amiúde, esta crónica sobre cerejas o comprova, cerejas do concelho de Vinhais. Há anos referi as cerejas de Nunes aldeia cujos habitantes no dizer do meu tio José Buíça viviam gordos de vaidade, a moca vai no burro. Ele casou e foi feliz com a bonita mulher, a minha tia Rosário.

As lembranças arrastam lembranças de no mês de Maio as cerejas vindas dos lados da ponte da Ranca, no entanto, cerejas cor de cereja não muito carregada, rubicundas, como as surripiadas no cerdeiro da senhora Ângela mãe da então menina Ilda a viverem numa casa defronte da minha casa de Lagarelhos. Elas tinham estado larga temporada no Brasil, por isso mesmo conservavam o acento cantante do falar brasileiro misturado na rusticidade do português rural. Ai quem me dera ser capaz de entender os olhares e as falas com clarividência porque estou convicto de estas duas senhoras nunca perdoaram ao marido e pai o facto de terem voltado ao terrunho dos nove meses de Inverno e três de inferno, pois os horizontes eram belos como a cidade de Minas Gerais é.

Do quarto onde dormia (e durmo quando nas raras vezes estancio na velha e amada casa) via o balouçar emperrado por brisa amena dos ramos do cerdeiro de onde centenas de pássaros chilreavam no intervalo de papanças de cerejas dignas do comilão Gargântua dado a conhecer ao Mundo através do talento de Rabelais homem descrente sendo padre, para lá de médico, fico poeta na opinião de Vasco Graça Moura, criador de obras-primas de cunho popular.

As cerejas dulcíssimas ao atingirem a idade incorporarem carne, entenda-se bichinhos, na fase da carnação provocavam-me inaudito prazer palatal a justificarem suster entre o céu-da-boca e a língua um caroço até à hora de jantar (ao tempo, agora almoço) no intuito de prolongar o acre-doce sabor.

Nós (a minha avó, madrinha e padrinho) tínhamos a escassos metros derivações de cerejas, rotundas e saborosas ginjas, cerejas bravas de um cerdeiro selvagem, porém inferiores em sabor às da majestosa árvore da senhora Ângela sempre pronta a falar do Brasil e do meu avô a viver e ganhar dinheiro desde 1929 na cidade maravilhosa agora encanecida, distante da segurança antecedente como tive ocasião de constatar nas vezes em que lá estive.

Nas estradas limítrofes a Vinhais os pobres de pedir mitigavam a fome perene, nas searas a bordejarem mulheres derreadas dada a agrura física da ceifa na altura de descansarem pediam água fresca, vinda nas bilhas deitava-se nas canecas onde um pouco de doce de cereja a adoçava e amortecia a fraqueza na companhia de uma fatia de pão trigo (quem podia) ou centeio. Os pobres viandantes aproveitavam o ensejo e assim conseguiam o ansiado carolo mesmo que esfarelado.

A senhora Ângela também fazia doce (compota) das cobiçadas cerejas, tal como os folares, cada senhora defendia o seu doce, encaroçado, como deve ser, muitos anos depois uma rapariga neta de famoso e muito bem pago advogado lisboeta, dada a socialites televisivas confessava candidamente comer as cerejas sem caroço porque a criada (empregada doméstica) executava a tarefa. Os meninos das aldeias se soubessem da existência destas amostras de preguiça premiada para lá da galhofa, certamente, pensariam nas obscenas desigualdades entre os ricos e os pobres, pois para além de saborearem as cerejas e as irmãs ginjas, só lhe conheciam outra utilidade, a dos pés servirem para as mães fazerem chás e tisanas contra toda a sorte de maleitas de barriga. Não sabiam e, duvido, que agora as crianças das cidades saibam a origem destes frutos vermelhos muito empregues em recheios de pastelaria e confeitaria mormente na decoração de bolos, pudins, gelados, sorvetes e chocolates.

As meninas e os meninos das aldeias adornavam as orelhas com brincos de cerejas, a escritora Maria Lamas escreveu um livro com o título Brincos de Cerejas. Mas quem lê a escritora outrora tão conhecida e premiada? O famoso escritor russo Anton Tchekhov escreveu Jardim das Cerejeiras. Repito a pergunta: quem lê o laureado escritor?

As conversas são como as cerejas diz um qualquer senhor de La Palice, no caso vertente a crónica podia prosseguir trazendo a terreiro as mil e uma qualidades das cerejas nas artes culinárias e bebidas, até existe um «vinho de cerejas», só que as crianças apenas estão interessadas em as desfrutar plenamente por serem fruta de grande apreço no interior do País desde os primórdios de Maio ao início de Julho. A partir daí apenas na qualidade de passotas.

Agora, que temos secretárias de Estado para quem as cerejas são filhas de árvores muito conhecidas em Trás-os-Montes, pelo menos já ouviram falar de uma povoação chamada Cerejais seria interessante sabermos quais os projectos gizados por Suas Excelências cujo elemento primacial seja este fruto tão glosado e promovido em várias partes do Mundo. Não me compete dar sugestões às senhoras governantes, agora que as cerejas concitam as atenções de miúdos e graúdos lá isso concitam. Do Japão à Califórnia. Se aceitarem a sugestão faço um pedido: não imitem, o original é sempre superior à cópia. Entre uma sápida sopa de cerejas e um empadão ostentando uma cereja no meio a fazer figura prefiro a sopa!

Bruxos cartomantes

O que impressiona nestes dias ásperos, azedos, onde a escuridão do não saber se impõe à luminosidade da proficiência científica aliada à reflexão dos sages, é a proliferação de adivinhos, astrólogos, bruxos, cartomantes, leitores de buena-dicha e correlativos a lembrar o ambiente vivido pela população de Londres entre 1694-95 no decurso da peste que vitimou mais de cem mil pessoas.

Tal como venho fazendo desde há quatro semanas, abro o Diário da Peste de Londres, de Daniel Defoe segundo registo de um seu tio, leio algumas passagens vivificadoras da leitura integral da tradução Simões o crítico que nunca leu um livro de José Saramago (o leitor curioso averigúe o motivo) mas enquanto leitor de obras em línguas estrangeiras teve notáveis intuições a originarem traduções. As passagens repetidamente lidas evocam o desespero dos residentes na bela e trepidante cidade, na altura atreita a epidemias em virtude da falta de saneamento, das aglomerações de toda a espécie de pústulas que Charles Dickens tão bem descreveu nos seus livros.

As mulheres e homens de Londres atormentadas recorriam aos exploradores da crendice alheia e dos sufocados à beira da morte capazes dos maiores sacrifícios na ânsia de escaparem à senhora da gadanha. Por todos os meios os vigaristas extorquiam moedas suadas e notas novas conforme a clientela, tal como agora a praga ceifava a eito, ninguém estava seguro, daí os que podiam batiam em retirada, o mesmo fez o rei de Castela após a morte de Dom Fernando, ao levantar o cerco a Lisboa a fim de assegurar o direito ao trono para a sua mulher Beatriz filha do falecido cognominado O Inconstante.

As placas e tabuletas a anunciarem os leitores do futuro povoavam a urbe atravessada pelo Tamisa a anteciparem os mágicos televisivos a massacrarem os telespectadores, não faltando subtis mensagens de enaltecimento de personalidades a necessitarem de lustro para lá da publicidade às ofertas o termo esmola passou a ser ofensivo. Dádiva, oferta ou esmola quem era esmoler praticava o ensinamento de a mão esquerda não ver o gesto caritativo da dextra, os tempos mudaram até no universo dos bruxos e bruxas. Porque o tema gera muitas susceptibilidades, tantas quantas tangem ao espiritismo e seus praticantes, relativamente aos adivinhos e bruxas a cidade de Bragança não fugia à regra, isto é: várias mulheres e vários homens carregavam a fama de praticar o atribuído a São Cipriano cujo livro vivia escondido em várias casas do burgo bragançano. As ditas susceptibilidades impõem prudência na citação de nomes pois os herdeiros ficariam ofendidos. Mas, como dizia Miguel Cervantes: «eu não acredito em bruxas, mas que as há, há», por essa dupla razão só refiro a bruxa de Quiraz, a qual um meu familiar consultou e teve a mesma sorte dos clientes dos charlatães ingleses, ficou sem o azeite e os escudos esportulados na consulta repleta de divagações e sandices.

Na vigência da pandemia (desconhecemos fim) a verborreia irá continuar, a máquina informativa vive de rumores, boatos, notícias verdadeiras e falsas, sendo patente a amálgama a prejudicar gravemente a imprensa escorada na seriedade e competência. Desde há anos que o vetusto Diário de Notícias vive na corda bamba e as últimas referências não deixam os seus trabalhadores sossegados. Jornal durante dezenas de anos grávido de subserviência ao poder –  Alfredo da Silva, salazarista, caetanista, comunista, capitalista –, nele têm trabalhado grandes nomes do jornalismo, denodados lutadores contra as cangas de quem possui cabedais de sustentabilidade, as perspectivas são péssimas sendo de temer o pior. Ora, enquanto a comunicação social séria e respeitadora das regras gramaticais viu avolumar-se o volume das nuvens negras sobre ela, as redes sociais do despeito, do ressabiamento, da incultura ganham notoriedade, impõe-se rapidez no apoio governamental à comunicação social, porque promessas leva-as o vento, lembro o filme: E Tudo o Vento Levou, contrariado pelo brasileiro O Pagador de Promessas.

Os filmes ficam para nosso prazer intelectual os candongueiros vivendo da azucrinação pululam, façamos a separação, o nosso espírito ganha salubridade mental, a quarentena será vencida, a mensagem de Abril persiste. Apesar de todas as vicissitudes O Povo Unido…não pode nem vai ser vencido. Bom feriado na companhia de livros e música. Em casa!

Robusta irresponsabilidade

Os jornais não transmitem notícias e opiniões sempre do nosso agrado, também, tal como os mensageiros de outrora nos transmitem cousas desagradáveis, aborrecidas, quantas vezes desastrosas e alheias à nossa vontade.

Na edição de 24 de Março pp. O Nordeste cumpriu o seu deve informativo, na qualidade de leitor impressionou-me a robusta irresponsabilidade de três pessoas objecto de referência que na minha opinião calcaram grosseiramente o cânone do bom senso que deve prevalecer em situações de catástrofe como é notório e patente exemplo a pandemia, mortífera pandemia, vinda da China a qual imitando outras de igual malefício para a Humanidade está a avançar e inundar o planeta deixando atrás de si um cortejo de mortos e milhares de infectados.

A primeira pessoa a merecer referência é uma menina de vinte e dois anos, Ângela João de seu nome, natural de Vimioso, que resolveu em pleno corrimento da maleita fazer a viagem dos seus sonhos na companhia do namorado ao Peru.

Se visitar um país da América Latina, em qualquer circunstância obriga a saber o essencial (básico) inserido nos manuais de economia turística (sistemas de saúde, segurança, comunicações, seguros, bancário e costumes locais), em tempo de tripla oscilação de todos os pontos focais atrás referidos mandava a prudência pensar e repensar a realização da sonhada deslocação ao País das batatas (Neruda cantou uma ode ao tubérculo) antes de a encetar. A menina de 22 anos mandou às malvas os cuidados e colheu um montão de ásperos trabalhos. Não contente com a metida do pé… na poça, deu-se ao luxo de salmodiar queixumes contra as autoridades portuguesas e o namorado fez coro de assentimento. A menina tem idade para diferenciar o bem do mal, que já tenha regressado é o meu desejo, que os pais lhe ofereçam colorido canto não do condor, sim de recriminações é presente bem merecido.

A segunda robusta irresponsabilidade cabe a uma senhora (não identificada) emigrante em França viu-se atacada de toleima, em face da febre de laurear-se entendeu ir ao Intermachê, aí lembraram-lhe estar obrigada a cumprir quarentena. A mulher ficou notificada, certamente, irá lembrar os milhares de automobilistas a mostrarem o seu sentido de responsabilidade a inundarem a auto-estrada a caminho do Algarve, sem esquecer outros vândalos do respeito pelos seus concidadãos. O sempre professoral Presidente da República prefere aos costumes dizer nada pois a marcha do tempo em direcção às eleições presidenciais não pára. Ninguém se espante!

O Nordeste na mencionada edição destaca a espantosa opinião do presidente do núcleo da Quercus em Bragança. Num lampejo de vacuidade em face da pandemia reconhece o pesadelo, mas «valoriza os benefícios ambientais» da monstruosa calamidade. Ao modo da Ministra da agricultura exibe estridente júbilo ante os lucros ambientais conseguidos no decorrer da quarentena. Os familiares de milhares de mortes ocorridas na China, na Itália, Estados Unidos, Espanha, Portugal e outras paragens caso lessem as ignaras palavras de Folhento umas ficariam horrorizadas, outras iradas, outras desejosas de folhearem os dedos das mãos na carantonha do presidente de um núcleo defensor da nobre árvore que não tem culpa de um abstruso deste jaez falar ao modo de um animal objecto de ensaio do escritor e filósofo romano de nome abreviado Apuleio.

Sabemos, quão é molesta para o ambiente a desastrosa política de todos (todos sem escapar um) os dirigentes do poder, infelizmente, não sabemos qual a paternidade do vírus, também desconhecemos quais os factores e fautores da sua propagação e muito menos no que tange a forma de a suster. Por isso mesmo é incomensurável a diferença – poluição é praga humana – o vírus é praga sobre os humanos –, eis a diferença diria o estimado colaborador de Sherlock Holmes. O Sr Folhento mostrou a sua cultura fundamentalista estilo «com o mal dos outros posso eu bem».  

Eu não me interessa saber que combustíveis ele utiliza para aquecer a casa, viajar e cuidar de si, não concebo que recorra a oriundos da indústria, porém será interessante saber o modelo de recuperação da economia pós convulsão epidérmica no Nordeste preconizada por tão resoluto ortodoxo da causa climatérica sem mácula e sem pecado. Propostas de actuação sérias, cientificamente exequíveis, sem lugares comuns, capazes de instituírem o «mundo que nós perdemos» (Peter Lasket) longe das imperfeições de agora. O filósofo Revél ensina que não devemos discutir o erro, no caso presente a invocação do mítico Quercus remete-me para Guernica, eis a razão do gasto de energias.

As lastimáveis considerações vão para lá do direito à asneira. Acreditem!

Leonel Folhento, Presidente do núcleo em Bragança da Quercus – Reconhece o pesadelo, «mas valoriza benefícios ambientais»

Dias de nada

No meu último ano de permanência efectiva em Lagarelhos guardo gratas recordações da depois e agora minha tia Aurinda, da mãe e do pai com quem discutia alegremente as desventuras de Jean Valgean, personagem a par de Javert, de Os Miseráveis, 5 volumes, comprados pelo meu avô antes de ir à procura de libras cavalinho no Rio de Janeiro.

O pai da minha tia, o Senhor Serafim tinha estado em França onde passou as passas do Diabo, também acendrado leitor de Victor Hugo, bom jogador de sueca e melhor conversador. Eu ia fazer oito anos, as férias grandes eram grandes, visitava a torto e a direito a casa da Senhora Maria das Neves, mãe da minha bonita tia, ela dava-me fatias de centeio barradas de açúcar escuro, a vida corria-me bem. Os dias eram curtos de tardes longas.

A solidão atacava os entrevados, acima de tudo os velhos sem forças, improdutivos segundo os padrões rurais. O Dr. Borges e o Dr. “Lixa” esforçavam-se de dia e de noite em minorar o sofrimento dos doentes. Antes ficou célebre o fafense Dr. Leite pelos mesmos motivos.

Ora, entre a minha casa e a da «tia» Neves vivia o Senhor «Tio» Manuel (Manelzimnho), detentor longas barbas patriarcais pintalgadas de nicotina, avançada idade, e com um vassouro de giestas na mão direita. Na Igreja ouvia- -se a sua voz a orar no decurso da missa rezada pelo Padre Aurélio Vaz, antigo combatente durante a I Guerra Mundial.

Os seus parentes mais chegados, o Senhor Amadeu e a Senhora Engrácia alimentavam-no, penso que lhe cultivavam os bocados, e prestavam-lhe a assistência possível.

O referido Patriarca tinha o seu Outono confinado a um talhoco e outro assento cortado de um tronco de árvore colocado no cabanal defronte da sua casa chapeada com folhas de flandres. Na galeria agrupava centenas de caixas de fósforos, vazias, de cem amorfos, cujos rótulos coloridos, de letras sensuais eu cobiçava. Debalde, o dono desconfiava dos meus olhares e estava atento aos meus movimentos de mãos. Aquele património acabou numa das montrueiras existentes na aldeia, ainda hoje lastimo o insucesso nas tentativas de conseguir senão todas, pelo menos algumas dessas caixas, anos mais tarde.

Ora, o antigo negociante de cereais e castanha, andarilho a cavalo de feira em feira, das mesmas falava em termos cronológicos, de mês a mês, para quem queria ouvir, apresentava o saldo diário dos seus esforços de caçador de insectos ao principiar o quente lusco-fusco, não sem antes proclamar em tom acima do habitual: hoje foi um dia nada. Dias de nada? Ante a interrogação, respondia de imediato levantando o vassouro: apanhei tantas avésperas (vespas), tantas varejeiras, tantas moscas: Pousava o fiel vassouro e repetia, «dia de nada!».

Agora, nos prelúdios da epidemia (António Costa dixit), encerrado em casa, como um notável pensador português repete aos amigos acerca da quarentena «sinto-me preso em casa sem pulseira electrónica», penso no ancião de Lagarelhos, forçado a vassourar as muitas moscas provenientes da sujidade de todos os animais incluindo os humanos, resignado, à espera da senhora da Gadanha, confessava o óbvio – dias de nada –, de mansa paciência e sem receio da Megera.

Estamos em quarentena, as televisões massacram-nos, conseguem ser mais incomodativas do que a Mosca varejeira inserida num poema de Alexandre O’Neill. O poeta referia uma escritora portuguesa preponderante em círculos da «inteligência» ortodoxa portuguesa. Tento resistir aos efeitos da camisa-de-forças através da leitura, a disposição esvai-se, ao modo de lenitivo agarro-me ao exemplo de figuras de todos os ramos da ciência, da literatura, da política objecto da nossa admiração por terem resistido a cativeiros, exílios, deportações, estadas e travessias no e do deserto, no entanto, o arrimo é de curta duração. Que fazer? Lenine escreveu e levou à prática a doutrina defendida num livro com esse título. O sanguinário Vladimir teve um início, um meio e um fim. Nós sabemos como começou a peste dos dias de agora, não sabemos quando e o fim da mortífera infecção. Vamos vendo imagens da desgraça global pese o destrambelho de líderes políticos, vamos engrolando imprecações desabafantes, um ou outro inconformista conforma-se e murmura, pode tocar a todos, ricos e pobres, banqueiros poderosos (António Vieira Monteiro) e humildes lavradores da Arada. Façamos como Jó!