Gasto os dias a estancar desejos de escrever sobre terras e pessoas que amo. Atribuo o desejo ao facto de estar à beira de entrar na perversa designação quarta idade, um eufemismo a significar setenta e cinco anos. O dique do estancamento rebenta amiúde, esta crónica sobre cerejas o comprova, cerejas do concelho de Vinhais. Há anos referi as cerejas de Nunes aldeia cujos habitantes no dizer do meu tio José Buíça viviam gordos de vaidade, a moca vai no burro. Ele casou e foi feliz com a bonita mulher, a minha tia Rosário.
As lembranças arrastam lembranças de no mês de Maio as cerejas vindas dos lados da ponte da Ranca, no entanto, cerejas cor de cereja não muito carregada, rubicundas, como as surripiadas no cerdeiro da senhora Ângela mãe da então menina Ilda a viverem numa casa defronte da minha casa de Lagarelhos. Elas tinham estado larga temporada no Brasil, por isso mesmo conservavam o acento cantante do falar brasileiro misturado na rusticidade do português rural. Ai quem me dera ser capaz de entender os olhares e as falas com clarividência porque estou convicto de estas duas senhoras nunca perdoaram ao marido e pai o facto de terem voltado ao terrunho dos nove meses de Inverno e três de inferno, pois os horizontes eram belos como a cidade de Minas Gerais é.
Do quarto onde dormia (e durmo quando nas raras vezes estancio na velha e amada casa) via o balouçar emperrado por brisa amena dos ramos do cerdeiro de onde centenas de pássaros chilreavam no intervalo de papanças de cerejas dignas do comilão Gargântua dado a conhecer ao Mundo através do talento de Rabelais homem descrente sendo padre, para lá de médico, fico poeta na opinião de Vasco Graça Moura, criador de obras-primas de cunho popular.
As cerejas dulcíssimas ao atingirem a idade incorporarem carne, entenda-se bichinhos, na fase da carnação provocavam-me inaudito prazer palatal a justificarem suster entre o céu-da-boca e a língua um caroço até à hora de jantar (ao tempo, agora almoço) no intuito de prolongar o acre-doce sabor.
Nós (a minha avó, madrinha e padrinho) tínhamos a escassos metros derivações de cerejas, rotundas e saborosas ginjas, cerejas bravas de um cerdeiro selvagem, porém inferiores em sabor às da majestosa árvore da senhora Ângela sempre pronta a falar do Brasil e do meu avô a viver e ganhar dinheiro desde 1929 na cidade maravilhosa agora encanecida, distante da segurança antecedente como tive ocasião de constatar nas vezes em que lá estive.
Nas estradas limítrofes a Vinhais os pobres de pedir mitigavam a fome perene, nas searas a bordejarem mulheres derreadas dada a agrura física da ceifa na altura de descansarem pediam água fresca, vinda nas bilhas deitava-se nas canecas onde um pouco de doce de cereja a adoçava e amortecia a fraqueza na companhia de uma fatia de pão trigo (quem podia) ou centeio. Os pobres viandantes aproveitavam o ensejo e assim conseguiam o ansiado carolo mesmo que esfarelado.
A senhora Ângela também fazia doce (compota) das cobiçadas cerejas, tal como os folares, cada senhora defendia o seu doce, encaroçado, como deve ser, muitos anos depois uma rapariga neta de famoso e muito bem pago advogado lisboeta, dada a socialites televisivas confessava candidamente comer as cerejas sem caroço porque a criada (empregada doméstica) executava a tarefa. Os meninos das aldeias se soubessem da existência destas amostras de preguiça premiada para lá da galhofa, certamente, pensariam nas obscenas desigualdades entre os ricos e os pobres, pois para além de saborearem as cerejas e as irmãs ginjas, só lhe conheciam outra utilidade, a dos pés servirem para as mães fazerem chás e tisanas contra toda a sorte de maleitas de barriga. Não sabiam e, duvido, que agora as crianças das cidades saibam a origem destes frutos vermelhos muito empregues em recheios de pastelaria e confeitaria mormente na decoração de bolos, pudins, gelados, sorvetes e chocolates.
As meninas e os meninos das aldeias adornavam as orelhas com brincos de cerejas, a escritora Maria Lamas escreveu um livro com o título Brincos de Cerejas. Mas quem lê a escritora outrora tão conhecida e premiada? O famoso escritor russo Anton Tchekhov escreveu Jardim das Cerejeiras. Repito a pergunta: quem lê o laureado escritor?
As conversas são como as cerejas diz um qualquer senhor de La Palice, no caso vertente a crónica podia prosseguir trazendo a terreiro as mil e uma qualidades das cerejas nas artes culinárias e bebidas, até existe um «vinho de cerejas», só que as crianças apenas estão interessadas em as desfrutar plenamente por serem fruta de grande apreço no interior do País desde os primórdios de Maio ao início de Julho. A partir daí apenas na qualidade de passotas.
Agora, que temos secretárias de Estado para quem as cerejas são filhas de árvores muito conhecidas em Trás-os-Montes, pelo menos já ouviram falar de uma povoação chamada Cerejais seria interessante sabermos quais os projectos gizados por Suas Excelências cujo elemento primacial seja este fruto tão glosado e promovido em várias partes do Mundo. Não me compete dar sugestões às senhoras governantes, agora que as cerejas concitam as atenções de miúdos e graúdos lá isso concitam. Do Japão à Califórnia. Se aceitarem a sugestão faço um pedido: não imitem, o original é sempre superior à cópia. Entre uma sápida sopa de cerejas e um empadão ostentando uma cereja no meio a fazer figura prefiro a sopa!