Segundo o filósofo Lamenais, a “vida é uma espécie de mistério triste do qual apenas a Fé tem o segredo”. Rufando silenciosamente o tambor sobre o mistério escancarado, clarinho, a tentar perscrutar mistérios de existências cujas formas de vida parecem ser tão evidentes. Há uns anos escrevi um livrinho onde dedico atenção a Figuras e Figuronas de Bragança, tendo o arquitecto Manuel Ferreira, saudoso amigo, engrandecido o livro através da composição ilustrada das personalidades trazidas a terreiro. Noutro plano a sua saída só foi possível devido à vivacidade harmoniosa do Padre Calado Rodrigues e a tenacidade do Manuel Pereira.
No conjunto das figuras há uma evidente discordância entre elas, seja no foro económico, seja na sua representação social, seja na aculturação e modo de andar e pisar as calçadas e ruas. A estridência da desigualdade só não foi maior porque várias dessas figuras ou tinham falecido privando-me de as abordar de viva voz, ou me escorregaram entre os dedos quais enguias a viverem nas águas límpidas dos rios e ribeiras e não no meu vizinho Tejo a agonizar devido à incúria dos homens.
A proximidade do Natal levou-me a puxar uma a uma as figuras em fuga na procura de reparar a falta mesmo quando as famílias no seu legítimo direito não quiseram fornecer dados biográficos, casa da estimada Senhora Maria, mulher do cauteleiro Sr. Guedes, ou do procurado mas não encontrado Senhor cuja nome desconheço, mas sei qual era a sua alcunha – o traquina e esperto – Farturas o maior de um rancho de irmãos moradores na rua Direita, nas imediações da Igreja de S. Vicente. A Senhora Maria detinha um quiosque na Praça da Sé, vendia jornais, revistas, tabaco, livros, escondidos os do corrosivo José Vilhena. Dali observava o Mundo, debruçada no exíguo balcão ouvia as vozes desse mesmo Mundo circular, especialista no chiste, na manha e na resistência passiva.
O Farturas cirandava e voltava a cirandar da Praça do Mercado aos mercados estudantis, dos burocratas do regime, dos feirantes estacionados nos cafés – Chave d’Oiro, Central, Machado, menos no Moderno – na procura de «massas alimentícias», quando a procura era uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma (Irene Lisboa) a Dra. Margarida Machado reduzia a falta, bem como duas outras senhoras ainda vivas, de boa saúde. O Farturas no Inverno exibia frieiras, isso não o impedia de saltar de pouso em pouso ciente de inspirar simpatia junto da maioria das pessoas, quando enxotado (figuras ditas piedosas o praticavam) saía compungido à frente dos irmãos à procura de gasalho nos dias friorentos e Inverno. Porque na altura tinha bem viva a leitura de Os Miseráveis, o Farturas no meu entender seria (era) o Gravoche de Bragança.
Entre as figuras da Sra. Maria e o Farturas avultam outras a quem gostava de ter concedido maior atenção, um relance de olhos, uma palavra-chave, uma exclamação seguida de interrogação indagadora impediram a consumação do desejo.
A Senhora Maria Geraldes, docemente tratada por Maria Preta, a apanhadora de malhas (leitores de agora sabem como se apanhavam malhas em meias de vidro?) cujo coração cedeu às palavras maviosas do futebolista Belo vindo das pampas cantadas por Carlos Gardel, para lá levou, o Senhor Adriano «manco» os dois o alfaiate e o vendedor de toucinho e derivados também saltaram não lépidos, sim nás e nefas de braço dado com a Maria Rapaz, o eterno treinador do Bragança, sempre pronto a ocupar o buraco dos fugitivos treinadores de nome Jesus, ferviam no meu imaginário e fervilham agora por não ter conseguido evocar as suas presenças riscantes no burgo impregnado de mofo dos tempos salazaristas.
Escrevo e o abismo do esquecimento flui a acusar-me de desatento, o policia-sinaleiro Alfredo não é uma figura menor no firmamento das figuras desprovidas de vaidades e prosápias dos de manguitos lustrosos, figuras de alta craveira moral foram o Cónego Falcão patriarca dos escuteiros, e o Cónego Jerónimo Pires estrénuo e desinteressado defensor dos rapazes de Vilar-de-Ossos, Lagarelhos, Quadra e Travanca acabados de cumprirem o serviço militar e desejosos de encontrarem lugar na Polícia e Guardas em busca de melhor pousio. No dito firmamento onde os doutores e engenheiros não se sentiam atraídos eles foram estrelas luzentes ao modo da estrela que guiou os Reis-Magos. Não exaltei as suas impantes qualidades, agora pode parecer comida requentada. E, no tocante a comida deixei fugir as figuras do Padre Pires e do Padre António (Marroncho). O roubo dos perus ao bem-humorado Padre Pires por si só possibilita faceta crónica, a visão das perdizes assadas numa casa de Vale da Porca provocou no benquisto Padre António (meu vizinho) a pergunta no decorrer de almoço festivo: então as perdizes? A resposta desgostou-o, ele estava a reservar-se no fito de lhe prestar o devido preito. A criada risonha, maliciosa, informou-o: as perdizes estão reservadas para o jantar!
E, são estas figuras sem fama que lhe encontro qualidades e considero merecedoras de as reviver.
Acima de tudo as pessoas. Elas não são talhocos utilizados na falta de cadeira, bancos, mochos, tripeças e… sofás.
Boas Festas.
Armando Fernandes