GRATIDÃO

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Mesmo nas lojas de curiosidades excêntricas, raras, a gratidão não se encontra à venda. Ao contrário a ingratidão oferece-se a granel, ao copo, a todo o tempo, a todo o momento. Sendo um fragmento escasso, quando leio ou ouço notícias a darem conta de nótulas de gratidão alegro-mo ao modo de menino esfomeado de carinho a quem mão suave faz afago na sua cabeça.
Neste Verão a Câmara de Vinhais expressou o seu reconhecimento ao musicólogo Jorge Lima Barreto levando a efeito a II Bienal a ele dedicada. Terem convidado Mário Vieira de Carvalho a dissertar sobre a obra do vinhaense foi uma boa escolha, no mais interessa-me o gesto da Autarquia, o acto de gratidão.
Também o Nordeste me informou ter a Câmara de Mirandela ter homenageado o seu famoso filho que ficou conhecido pelo nome corográfico da terra onde nasceu, Doutor Mirandela, entenda-se Francisco da Fonseca Henriques. No decurso de uma investigação centrada em documentos existentes na Academia de Ciências tomei conhecimento da existência do saliente facultativo, médico do rei Magnânimo, o qual abusava dos prazeres em especial das doçuras levando-o a ficar gotoso. Para lá do alargamento dos sapatos, as reais articulações rangiam provocando-lhe dores terríveis na companhia de remorsos ante o receio de ir parar às profundezas do Inferno.
Trazer o médico pioneiro no estudo do papel dos alimentos na obtenção de corpo saudável para a ribalta, além de prazenteiro ajuste cultural, é outro registo de gratidão.
Embalado pela feliz circunstância destes dois planturosos exemplos atrevo-me a enumerar quatro personalidades, duas de Vinhais, os Barahona Fernandes, uma de Bragança, o exímio pedagogo Carlos Silva, conceituado professor de Matemática.
Sobre os Barahona Fernandes, existem várias referências de realçar o facto de terem nascido em solo transmontano porque o pai, o médico António Augusto, a residir em Lisboa, ter feito questão de os filhos nasceram em Vinhais. Bonito! Ao tempo, dealbar do século XX, as comunicações eram precárias, as estradas más, piores ainda quando as viajantes estavam em adiantado estado de gravidez.
Na Marinha, na Medicina, na Universidade não escasseiam reputados Mestres dos que sabem, à altura de lhe formularem o panegírico. Deixo a sugestão, de resto neste e noutros jornais já aludi à figura do filho Enrique João eminente psiquiatra, catedrático e Reitor da Universidade a seguir ao 25 de Abril, não por acaso.
No tocante ao Dr. Carlos Silva pode parecer excessivo sugerir a sua exaltação na aura da gratidão. O leitor distraído ou pouco informado (invejoso?) pode confiar à sua camisa o resmungo sem ponto admirativo: era um professor como tantos. Engana-se o leitor. Redondamente.
O Carlos Silva detinha e expandia um fascínio particular no ensinar a gostar-se da matemática, explicável, pela facilidade na apreensão epistemológica da matemática clássica a escorar a matemática moderna. Não vou fazer citações, mas todos quantos conviveram ou partilharam afinidades electivas com o bem-humorado Carlos, nunca poderão esquecer quão arguto era nas formulações dos raciocínios sobre o assunto em discussão ou análise.
A diáspora impediu-me de melhor e mais íntimo convívio com ele nos últimos anos do seu viver, no entanto, em qualquer parte do Mundo onde topo transmontanos antigos estudantes em Bragança, de imediato recordam Carlos Silva. No Rio de Janeiro, um médico no decurso de um almoço regionalista elogiou o contributo de Carlos para ele ultrapassar as dificuldades de acesso à Universidade, em Moçambique e em Macau ouvi louvores ao professor despido de doutorice do mesmo teor.
Não ouso acrescentar aos ilustres acima referidos que no meu entender devem ser recordados os de personalidades vivas, a causa reside na certeza de granjear resmungos de estridência de maior volume porque o despeito é pulsão virulenta a enciumar os nossos corações. Agora, que há mulheres e homens de todas as condições a justificarem pública exaltação, isso há. 

Armando Fernandes