A Casa

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No Ípsilon do Público, de 18 de Agosto, li bem desenvolvida reportagem sobre a casa onde nasceu e viveu até aos treze anos o famoso escritor americano John Updike. A autora, Isabel Lucas, teve o talento de realçar a paixão do autor de Corre Coelho pela casa situada numa cidadezinha perto da cosmopolita Filadélfia, capital do estado da Pensilvânia.
O escritor suscita-me grande admiração, possuo a maior parte da sua obra, se tudo correr como espero na próxima Primavera irei entrar na casa renovada, tactear a grande mesa debaixo da qual o impetuoso autor enquanto menino se acolhia segurando um livro, apurando o ouvido no fito de nenhuma palavra lhe fugir das saídas das bocas dos adultos sentados ao seu redor.
À medida do correr da leitura do texto começaram a surgir imagens da vetusta casa de Lagarelhos, a Casa, da minha meninice, de outras casas em que tenho vivido além, acolá, ali, aqui, nestes últimos anos, num casarão prantado junto ao rio Tejo, no entanto, a Casa prevalecente é a de Lagarelhos, antes de a ter restaurado.
Recuada relativamente ao caminho agora rua alcatroada, antecede-a ampla entrada, no passado, de um lado várias canhotas à espera de arderem no Inverno e o esqueiro, do outro o parral, uma parede baixa separava o quintal cultivado quase todo o ano de modo a abastecer a cozinha de primícias sazonais, a escada de pedra dava (e dá) acesso ao piso de cima e à varanda comprida que no ano do dito de Delgado obviamente demito-o foi amputada com a incrustação da casa de banho.
Agora diz-se rés-do-chão, nesse tempo feliz rente ao chão situava-se o lagar, as lojas dos porcos limpas e canonicamente acolchoadas com palha a fim de os laregos engordarem jubilosamente e ressonarem placidamente. A meio da primeira loja ficava o poleiro-abrigo do galo, das galinhas e descentes, frangas a preservar, os frangos a saborear nos dias nomeados. Gostava de ser mandado a verificar a existência ou não de ovos, a incumbência caso a procura fosse positiva rendia-me um estrelado em unto, guloseima de estadão, a obrigar-me a sensível desempenho no furar a gema empregando a fatia de centeio, tarefa de grande risco, de fina engenharia.
Contínua à loja era a adega dotada de tina, vasilhame diverso, esteios, a masseira e a cuscuzeira, arcas de castanho, o monte das batatas, no extremo sinais locativos de ter existido mula ou égua antes do meu avô ter emigrado no intuito de pagar dívidas abanando a árvore das patacas no Rio de Janeiro.
Entre a segunda loja e adega ficava o falso, um pequeno quadrado, criado na sequência do regicídio pois o meu bisavô recebeu a notícia de todos os familiares de Manuel Buíça até à sexta-geração, como prémio do parentesco seriam executados. Não foram, provo-o exuberantemente. O primeiro-ministro da acalmação Ferreira do Amaral não deixaria cometer tal torpeza de lhe fosse proposta. Assim o penso.
No piso elevado logo à entrada o lar, do tecto pendia grossa cadeia de ferro negra da fuligem, sustentáculo de caldeiras e do lato onde coziam os manjares dos suínos, no chão a pedra grande, lisa, sobre ela pauzinhos de cisco, urzes e giestas secas logo pegavam lume iscando guiços, ramalhos, a seguir rachos, todo aquele combustível fazia forte fogueira a na época das matanças fumar chouriços, salpicões, alheiras, palaio e reizinhos.
O lar estava envolto em colete de madeira agrilhoado a bancos largos, a banda esquerda acoplava mesa de pôr e levantar escorada em dois cavaletes. Exemplo do modelo medieval de pôr a mesa.
Na outra ala dois quartos dotados de forro tal como a despensa cofre-forte da salgadeira, dos potes contendo rojões e pingo, de duas arcas e uma mosqueira.
Sem forro o restante espaço, nos dias rudes o vento fanfava entre as telhas, no sobrado de tábuas irregulares tralha diversa, a cantareira, o lava-louças, debaixo as caldeiras, numa mesa o garfeiro, a arca do pão, o saleiro grande, os colherotos e colheres de madeira.
Na outra parte da casa um quarto, a sala só utilizada no dia da matança, grande comezaina todo o dia, à noite a luz dos candeeiros iluminava a brava suecada prenha de facécias e renúncias. Aquela sala de paredes bem caiadas, decorada com a tulha, mesa de alargar e cadeiras a condizer, só voltava a servir no dia da bênção pascal e no dia da festa. No resto do ano recebia maçãs porfirias (reinetas), amarelas e rosadas, o forro exibia numerosos camarões que na altura devida recebiam cachos de uvas a secarem até atingirem a podridão ideal para serem comidas na companhia de pão trigo.
Daquela sala desprendiam-se aromas intensos, agradáveis, dizíamos bem cheirosos a anularem os odores maliciosos vindos da rua e da loja dos dadivosos fornecedores de carnes e gorduras sápidas, capazes de levarem um eremita à tentação.
  A velha casa, não do esquecido José Régio, mas minha por herança. Lá está a resplandecer brancura, quando a ela aporto cada resquício aponta-me o passado de felicidade, de folgança, de liberdade.
Agradeço a John Updike a ideia da crónica.

Armando Fernandes