A notícia da atribuição do Prémio Nobel da Literatura deste ano a Bob Dylan atirou-me de imediato para um pequeno espaço ao modo de caveau do Rui Bento, rapazão do meu tempo prematuramente falecido no Brasil. Porque me lembrei dele? De imediato não o descortinei, rememorado o anel das afinidades electivas de entre 1964 a 1967 em Bragança, a reconstituição explicou-me a razão.
Era filho do Sr. Armando Bento (o homem que tornou conhecida a Fábrica Internacional de Automóveis de Turim – FIAT no Nordeste Transmontano) e de uma Senhora elegante, esfíngica, sempre vestida a evidenciar gosto fino, requintado sem alacridade espúria.
O Rui granjeava invejas de muitos por possuir aquilo que a maioria não tinha, sempre manteve comigo cordial relação ao ponto de merecer o seu convite para ouvir música, conversar e tomar uma bebida no tal espaço, exíguo, esconso, fora da luz solar, logo misterioso, suspeito aos olhos dos e das zelotas de serviço contínuo. Especialistas na murmuração exclamada concedendo laivos de escândalo aos seus pintados relatos.
Os gostos musicais dominantes em Bragança ao tempo mesmo no circuito Moderno, Flórida e Poças caracterizavam-se pela imitação descuidada ou então colocando a enfâse nos êxitos transmitidos do nacional cançonetismo transmitidos na televisão, acrescidos dos gorjeios ou trinados estilo Joselito. Lembram-se?
Os menos acomodados e de carteira e não porta-moedas vestiam camisolas de gola alta ao estilo do Ives Montand, todos esbugalhávamos os olhos na contemplação da Greco, sons de bacoca admiração rompiam as conversas quando um ou outro exibia roupa vinda da Loja dos Porfírios.
A cidade qual cortiço ou colmeia (Camilo José Cela) cheirava mofo burocrático, a suor de militares à espera de colocação nos palcos de guerra, as senhoras perfumavam-se aspergindo gotas de Diamante Negro ou Tabu no pescoço e nos sovacos, a fragância Dior custava caríssimo, a Chanel significava transgressão exorbitante pois o preço ultrapassava o do francês patrão de ISL.
Os jornais de Lisboa chegavam um dia depois da sua saída, às vezes três para irritação do Sr. Abel Frederico Monteiro seu estrénuo e desinteressado correspondente. Este senhor também merece reconhecimento perene por parte do poder Autárquico pois durante dezenas de anos matraqueou artigos a darem conta da existência da velha urbe. Carregava e soltava verve irónica envolvida em humor ferino sem transpor a cancela da decência.
Ora, o Rui Bento riscava as normas da vulgata em vigor no que tange ao comportamento de jovens adultos, sim detinha possibilidades, no entanto, manifestava interesses de índole cosmopolita, fora da ronceirice dos meninos bric a brac da burguesia citadina sendo patente no referente à música. A morar para lá da ponte do Loreto o Rui ficava de fora do círculo dos chás do favor mútuo.
Ele abastecia-se no decurso das saídas do casulo bragançano, daí a suspicácia gerada a envaidecer o seu ego. Tinha vinte anos. Devo-lhe a descoberta de vários letristas e compositores, como anos mais tarde o Zé Montanha Rodrigues me falou no Billy Evans. O fascinante autor de Afinidades tem-me concedido horas e horas de prazenteiro ouvir aliviando-me dores não físicas, angústias e horas de chumbo. O genial artista de jazz nunca se torna cansativo, assim o disse a Jorge Lima Barreto no decorrer de um almoço dedica à música de protesto. O musicólogo vinhaense não partilhava do meu entusiasmo pelo extraordinário executante.
A atribuição do Nobel a Dylan (apelido falso usado em homenagem a um grande poeta) provocou-me vontade de o ler e ouvir, a rememoração feita trouxe ao de cima O Rui Bento, cuja figura permanece inalterável para o entendimento do viver numa comunidade que no essencial estava presa à tríade – Deus, Pátria e Família – fosse no quotidiano, fosse nos dias nomeados.
Ouvir o Bob à partida, mesmo sem a cabal apreensão do seu dizer, significava ultrapassar a barreira hipócrita do exercício da máxima salazarista relativa à obediência cega, surda e muda. O respeitinho não era bonito, era obrigatório. Obrigado Rui José Bento, por ao tempo ousares respirar fora do reino circular.
PS. O Nordeste informou-me de nova e execranda maldade da praxe no IPL. O requinte da malvadez vai ao ponto de acoimar a acção de praxe suja. Uma vergonha. E, não se pode exterminar?
• Morreu há dias, nonagenário, o escritor Mário Braga autor de um romance intitulado Reino Circular. Esteve largos anos no índex do Estado Novo.