Bem alinhadas, reluzentes quais unhas envernizadas, as castanhas, de castanho vestidas, exibiam-se no Festival Nacional de Gastronomia, ocorrido em Santarém. Perguntei sobre a sua procedência. De Marvão, respondeu a Menina. Da memória brotaram memórias do brilho das castanhas apanhadas por meninas e mulheres nos soutos de Bragança e Vinhais, debaixo da luz clemente das manhãs frias a anunciarem o Inverno.
A evocação rebentou-me ao modo das castanhas grávidas de ar interior, puxadas à parição pelo fogo vivo, infiltrado nos assadores, aspergindo os pedaços ao modo de gotas do orvalho gelado na face das destras pesquisadoras dos frutos no emaranhado das folhas e nas rachas dos ouriços.
Naqueles soutos pisados e repisados de Lagarelhos, de Vilar de Ossos, nos soutos passeados das cercanias de Bragança, vi mãos de dedos gretados, vi dedos protegidos até ao meio por luvas grosseiras de lã fiada enquanto os meninos jogavam à arrebunhana, tais dedos laboriosos enchiam cestas e sacas dos frutos pingados a cadência marcial pelos majestáticos castanheiros. Vi!
Entrei inúmeras vezes me apeteceu no ventre da castanheira de Lagarelhos, vozes marotas acusaram-me de em sociedade com o Arménio ter acendido nessa ampla barriga um lume apagado de imediato devido à vigilância de vizinha desconfiada, conhecedora das nossas proezas traquinas. Só ouvimos ralhos e imprecações.
Atropelo recordações no aprazível esparzimento da ternura antiga dos magustos, dos caldos finos, adocicados das castanhas cerceadas, piladas, dos caldos grossos inçados de couves, batatas e chicha gorda comida em cima de pão centeio.
As cozidas com a casca, depois esmagadas por garfos de ferro, comida gulosamente no final da ceia, derivaram em criação de pastelaria fina, parideira da delicadeza baptizada em francês, marron glacé assim se chama, segundo consta os mordomos servem-na às senhoras, mesmo no interior de automóveis luxuosos.
Durante séculos as castanhas ajudaram a matar a fome interior, quase endémica, das comunidades rurais de grande parte de Portugal, a doença da tinta, qual virulenta tinha, apagou da face da terra milhares de castanheiros, ficaram os topónimos: Castanheira dali e de acolá, do Ribatejo, de Pera, Castanheiro de muitos sítios, do Norte, Souto, de fora e da Casa, Soutos, Soutelo, Soutelinho da Raia a delimitar fronteiras. Os meninos bem podiam aprender geografia e tantos saberes mais se lhe ensinassem o ciclo de vida dos castanheiros.
Nomeio Opiano por íntima obrigação, ele, Teofrasto e Ateneu ensinaram-me a ver as árvores tutelares da Terra Fria transmontana, a ficar feliz observando-as recuando o registo até às manhãs de cortinas fechadas de cenceno, até às madrugadas finas de Janeiro, chorosas, de fim de férias, no ir apanhar a careira do Sr. Jerónimo.
O exercício memorialístico é tal como o vento, invisível, intenso, longe da suavidade da brisa, as quentes e boas da canção aquecem as mãos dos turistas a gozarem o verão de S. Martinho na baixa de Lisboa, no tropel apressado bamboleiam máquinas fotográficas, quais achas de guerra dos bárbaros de Átila, a vou roufenha de uma mulher ensina-me: as castanhas são do Norte. O Norte não é Trás-os-Montes respondo a mim mesmo lembrando a ironia de Afonso Praça, do Felgar. Tenho de estar com o Rogério Rodrigues a fim de comermos castanhas e bebermos vinho tinto saudando o Afonso, saudando-nos prazenteiramente.
As castanhas são fruto cumpridor das quatro estações, os chefes de cozinha do estrelato Michelin andam a tecer hossanas e louvores aos produtos da sazão, desde Tóquio (197 estrelas) a Lisboa (vai receber mais), passando por Nova Iorque, São Paulo, Londres, Modena, Roma e Paris (o ancestral umbigo culinário), todos gritam a preferência.
Estes famosos chefes para sorte deles nunca tiveram de comer apenas aquilo que a horta dava, as frutas temporãs e do tempo, as gorduras depositadas na salgadeira e dos potes de unto, e…as providenciais castanhas.
A carta de comeres exclusivamente centrada na castanha desde tempos imemoriais documentados até aos nossos dias, incluindo as especificidades de regozijo está por fazer, não advirá mal ao Mundo se nunca for construída, a herança cultural dos nordestinos fica diminuída. Nada mais. Paciência. A verdade manda dizer: já ficou tantas vezes!
Virá o vento, trará frigidez, cairão as últimas castanhas da estação. Quem irá ao rebusco? Talvez apanhe a ignorância enlaçada no desdém pelo passado. Nunca se sabe!
As Castanhas - Para a Maria do Loreto
Armando Fernandes