Armando Fernandes

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Os lambe-botas

Uma das maiores dádivas que recebi ao longo da vida, foi a de privar e receber a amizade, apuro na análise do comportamento humano, sem esquecer os conselhos repletos de ironia, dados em filigrana ao longo de décadas pelo arguto e visionário filósofo Orlando Vitorino. Como é e foi, comentávamos o fluir do quotidiano, as subtilezas dos malabaristas dos negócios, da política, da composição e poder das famílias poderosas, dos lambe botas e manteigueiros em geral, dos existentes na Instituição na qual trabalhávamos. O autor da Refutação da Filosofia Triunfante, e da Exaltação da Filosofia Derrotada, tolerava com ironia os manteigueiros, abominava e zurzia sem piedade os rastejantes de língua de fora a salivarem baba nas botas, botins e sapatos dos decisores e adjuntos. A um adjunto chamou e escreveu que não passava de um Nulo abre portas nos corredores alcatifados. O Homem que contemplei vezes sem conta a escrever de jacto documentos de enorme densidade e doutrina, da mesma forma um livro destinado a crianças, uma peça de teatro e/ou ensaio relativo a pensadores da estirpe de Aristóteles, Maquiavel ou Nicolau de Cusa. O leitor perguntará: porque carga de água (que escasseia) trago à colação o também cineasta Orlando Vitorino, tecendo considerações referentes à praga de lambe-botas tão comum na sociedade portuguesa? Porque a Instituição das nossas vivências profissionais mudou de timoneiro há pouco tempo e, os referidos passadores de saliva nos sapatos andam numa roda-viva a escreverem loas ao Senhor em causa, tendo o cuidado de nomearem antigos dirigentes de igual estatuto não vá o Diabo ser tendeiro exercitando ciú- mes do ora na fruição da refor- ma porém, atentos ao cair das folhas do jardim das delícias e memórias vivas, discretas e secretas daquele centro de poder tão vigiado no Estado Novo, tão escrutinado e apetecido desde sempre. O filósofo declinou convi- tes de direcção, a burocracia aborrecia-o, a opacidade dos gabinetes de igual modo, amante e amigo da liberdade retirou-se abruptamente para o seu amado Alentejo quando os lambe-botas o quiseram manietar. Ele defendia a Escola Formal e a «razão animada». A mulher do ferreiro Venâncio de Lagarelhos estava sempre de acordo com as comadres e compadres, originava risos e dichotes, os lambe-botas dão asco. O saudoso Filósofo a todo o tempo lembrava o menino travesso a desmascarar o rei nu!

O MATA-BORRÃO

O dito deste verão é da autoria de Marcelo Rebelo de Sousa: «António Costa é um mata-borrão». Ora durante a primeira classe mantive luta inglória com os borrões de tinta que os chupa-nódoas acabavam por soçobrar ante a frequente invasão das mesmas a alcançarem as mãos e as roupas a causarem comentários em vivo vernáculo à minha avó materna. No dia 7 de Outubro entrei na decrépita escola de Lagarelhos, tinha seis anos de idade, envergava uma camisola de gola alta (Ives Montad pautava no círculo da moda parisiense que chegava a Bragança através dos Sehores Tozé e Queiroz), calça curta, meias brancas rendadas de canhão alto, botas engraxadas, debaixo braço um pasta, (a fotografia assim o confirma)assim penetrei na sala esburacada, carteiras e mesas compridas, na cabeceira uma secretária, no tampo a Santa Luzia, atrás a minha vizinha, a senhora Emília, viúva, professora de Posto de Ensino, vulgo posteira, ao lado a menina Lili, sua filha, numa cadeirinha e pequena carteira, apertada numa gola engomada e muito senhora de si fazendo contrastar a sua alva tez aveludada com as tisnadas pelo sol das meninas a que todas e todos chamávamos garotas. E, já lá vão setenta anos! Na parede do fundo, no centro, um crucifixo, do lado esquerdo o retrato do Marechal Carmona, do lado direito o de Oliveira Salazar. Num balcão corrido ao longo das vidraças os alunos quase todos calçando socas e socos, colocavam os trastes – roupa, sacolas, sacas, saquitas, boinas e gorros –, tudo muito pobre. Junto à porta o vassouro que as alunas o empregavam para varrer à vez as largas tábuas de castanho, quase tidas estropiadas devido à idade e constância trepidante dos socos e socas de amieiro cravejado de cardas. As pessoas viviam numa pobreza envergonhada, a alimentação baseava- -se nas batatas, castanhas, couves, centeio, e carne de porco. Quem cevava e matava os recos. A senhora Emília e a diáfana filha eram de Vale das Fontes a professora plácida, pesada, e tristonha, o rebento mimada, receosa e recatada. No final ao ano lectivo fui (contrariado) para Bragança, nunca mais soube nem novas, nem mandados, da mocinha sempre colada à Mãe. O meu «estacionamento» na última fila permitia-me ver quem passava no caminho pedregoso e lamacento nos dias chuvosos, não faltando pretextos para falar com os passantes e deixar cair gotas de tinta azul do aparo de aço enfiado na caneta com mola, roída na extremidade. O caderno das cópias estava polvilhado de marcas de tinta pois o mata-borrão dado pelo meu pai no dia anterior ao bap- tismo escolar ao fim de pouco tempo não passava de um enor- me borrão, mais a mais, a partir do momento em que o Chiquito (desapareceu para sempre pas- sados alguns anos) entornou sobre o absorvente cor-de-rosa o resto contido num tinteiro. Em Bragança comprava as fo- lhas de mata-borrão na Livraria Silva onde o Senhor Domingos da Silva com uns óculos lentes cus de garrafa que nos fixavam insistentemente, e na Livraria do Senhor Mário Péricles na qual imperava a menina Teresinha metida numa bata de cetim preto uniforme de telefonistas, cabeleireiras veteranas e outras funções similares. Na cidade do Braganção existiam grandes bebedores e co- milões, um deles comeu uma canonha assada acolitada com uma carreta de batatas, para mata-borrão bebeu cinco litros de vinho vendido na taberna do Canta. Estes mata-borrões tinham largo uso no circuito democrático do trabalho operário, do mesmo modo nos ramos do funcionalismo civil e das forças de segurança, já que a tropa despediu-se da sua categoria de praça-forte logo a seguir â eclosão da guerra colonial. Seria cavar rancores caso enunciasse célebres mata- -borrões de antanho porque, forçosamente, iria deixar no tin- teiro muitos deles, de qualquer modo, os contributos dos anó- nimos justificam registo pois há vários tipos de absorventes de nódoas por isso António Costa prefere não exercer tal função deixando Nuno Santos, Fer- nando Medina e Céu Antunes entregues a si mesmo pois as manchas são de tal ordem que só uma esfregona embebida em soda cáustica conseguiria trazer algum disfarce na carreira/acção política dos visados. A manta da maioria realiza o resto. É a vida parafraseando António Guterres! PS. O desgosto pela perda de uma caneta de tinta permanente levou-me a rabiscar apenas com esferográficas publicitárias.

ARREBITA, Arrebita…

O lapuz latagão enfiava as botas ensebadas no pó levantando-o na direcção dos pares dançantes idos da cidade à festa na aldeia (sem terem visto o filme do Sr. Hulot) porque as raparigas dançavam a precei- to ao som do conjunto António Mafra e não descriminavam os citadinos. Não havia bandas que na altura se chamavam conjuntos. A canção do momento aludia à cachopa se queres ser bonita, arrebita, arrebita, daí o estardalhaço poeirento que ofendia os sapatos a que nem o Sr. Gonçalves (sempre impecável de casaco e gravata, jovial e bem-disposto) escapava. A música desprendia-se de dois altifalantes pendurados num castanheiro centenário, certamente, testemunha de outras sonoridades derivadas de sopros, metais, madeiras e vozes.

O mês de Agosto é o mês festeiro, o Senhor Gonçalves seria um irmão mais velho no que concerne ao circuito das festas, fugia das encrencas e zaragatas como o Diabo foge (fugia das aglomerações de garotos segundo afirmava o Sr. Padre Aurélio pároco da freguesia de Vilar de Ossos) da Cruz, porque além da sua índole ser pacífica sabia quais eram os efeitos etílicos das bebidas fortes reduzidas ao vinho e à cerveja (esta muito menos), as restantes cingiam-se a pirolitos com berlinde e laranjadas.

A canção de António Mafra gozava de grande sucesso. Estávamos no dealbar da década de sessenta do século passado.

Sem saudosismo espúrio peço aos leitores (envolvendo os da minha idade) para ajuizarem sobre a transformação das festanças nos dias de hoje. Agora predominam as tais bandas a empregarem o inglês como língua primacial, os músicos e acompanhantes em palco em vez de roupa exibem tatuagens, correntes e botifarras. Desapareceram os vocalistas, as melodias (?) são gritadas, abundam os estilos copiados do universo anglo-saxão, proliferam os charros, os tiros (shots), os braços ao alto, o abanar das cabeças até à exaustão, os avultados capitais nesta influente indústria do entretinimento que a par do futebol considero enquadrar-se no conceito marxista de ópio do povo.

A brejeirice de Mafra (atente-se no carrapito da Dona Aurora de outra canção e as letras dos Mata-Ratos) não passa de eufemismo na comparação das (in)delicadezas do presente, obviamente, a soturnidade fossilizada do regime ditatorial manietava jovens e a generalidade dos lusitanos, a violência latente e quantas vezes expressa em mortes e feridos graves assusta-me.

O contraste faço-o de maneira simplista: o chapéu de feltro do Sr. Gonçalves e os bonés de pala comprida usados a esmo nas aldeias e nas cidades e, para não ser acusado pelas zelotas da igualdade de género, entre as socas abertas da Aninhas de Castrelos e as sapatilhas pisca-pisca da Joana de Porto Côvo.

A Sociedade do Espectáculo (Debord) ainda não atingiu o ponto focal na nossa sociedade mimética, Pacheco Pereira tem recebido incessantes ataques por ousar colocar o dedo na buba do sectarismo das identidades, ao que parece, nas convivialidades festivas as particularidades não têm dado azo a conflitos notórios. Ainda bem!

Tangladanças

No dia 10 de Junho, nos tempos da Bufa (entenda-se Mocidade Portuguesa), causava-me espanto as tragladanças dos rapazes e raparigas da organização, cujas fardas cor de caca nazi, em particular do estilo desengonçado, enérgico, resoluto do José Carlos Cadavez, ora a viver no Ribatejo profundo após substancial carreira militar ostenteando nos ombros as três estrelas de general da arma de cavalaria, e da filha mais velha da Dra. Maria Augusta Pires.

Há dias, recordei as passadas largas e abertas deles nos desfiles, ao ver um espectáculo no canal 2, tendo, talvez por um puxar de brasa das raízes comuns, chegado à conclusão de os artistas
observados, ficaram aquém dos meus conterrâneos no que tange à execução biomecânica (termo muito usado pelo conhecido Tanota quando vinha a Bragança já na máquina futebolística portista) dos números dançados.

As coreografias da dança (dança com lobos) que sempre me fascinaram, especialmente a partir de ter visto, observado e perscrutado notáveis artistas no Ballet Gulbenkian, no entanto, manda a verdade escrever que, fiquei rendido à exibição de uma dança descalça em S. Luís do Maranhão do Ballet local a provar quão enorme podem ser os talentos locais. A dança faz parte da condição humana em íntima união com essa linguagem universal que é a música, sendo as suas representações factor decisivo nas civilizações, assim o explicou lapidarmente o sábio Claude Lévi-Strauss, e porque é verdade, na esfera da música da nossa ancestralidade impõe-me a memória trazer a terreiro (a água está rara) o labor de Pedro Caldeira Cabral que, num País  interessado na preservação de um importante pilar do nosso património, devia usufruir de condições de maneira a consagrar toda a sua acção a tais tarefas. Nesta estação maluca apoquentada pelo larvar da pandemia, causa furioso estupor vermos e ouvirmos o rufar dos tambores da nebulosa futebolística (ópio para o povo) divulgar negociatas de milhões e milhões no mercado ou bolsados escravos da bola a trazer-nos à mente os rapazes das quadrigas romanas.

Nada tenho contra o desporto-rei, antes pelo contrário, sou patriota benfiquista, porém, se arraia-miúda derrama paixão sobre universos onde rebolam bolas, defendo a defesa de outras artes, muitas delas milenares hoje vertentes em risco de esfunamento vertiginoso. Não por acaso na memória das nações (memorial day nos USA) as heranças musicais têm tanta relevância, nós por cá esfalfamos os pulmões em toda a casta de festivais, ainda bem, mas manda a doutrina antiga observar que tudo o que é demais é moléstia, sendo assim e é, descurar pontos focais da nossa cultura para lá do desconchavo epistemológico, redunda no empobrecimento dos veios da cultura sobrando apenas a espuma dos dias, mesmo esta a desaparecer pois a seca, tal como os eucaliptos seca o discernimento, a acutilância no fazer/ fazendo a todo o tempo pela nossa felicidade. É isso que queremos?

A Guidinha e a Vanessa

Em Pleno Marcelismo, o romancista, dramaturgo, encenador e apurado gourmet da alta cozinha, Luís de Sttau Monteiro, escreve no suplemento A Mosca do Diário de Lisboa, esfuziantes e aceradas cartas da Guidinha que, num português de lei, zurze sem dó nem piedade a burguesia aperaltada, parola e política do regime a desfazer-se, como o famoso filme O Discreto Charme da Burguesia de Luís Bunhuel iconoclasticamente mostrou. As crónicas/cartas da Guidinha constituem um dos melhores exemplos do poder do humor na praxis política, daí a ira dos salazaristas contra o filho do embaixador e ministro dos negócios estrangeiros do ditador, o Professor Armindo Monteiro. O escritor bon-vivant, amigo e amante da noite, adorava carros desportivos, roupa fina, ceias bem regadas, a estúrdia dos teatros, por isso os deslizes na passagem de cheques sem manta, valendo-lhe zunidos resmungos da esquerda ortodoxa dos comeres e beberes, ataques violentos do sector situacionista do círculo do almirante cabeça de abóbora e da ANP. O estilista gastronómico Sttau, sob a capa do pseudónimo Inspector Gourmet, publicou páginas memoráveis trazendo fama e proveito ao restaurante Cobra de Vila de Rei, dado visitar a Vila na companhia de José Cardoso Pires, pois a mãe deste residente em Fundada convidava-os a irem apreciarem a sua aclamada sopa de feijoca. A Vanessa, pseudónimo estival de Ana Sá Lopes, revolvia tiques, tropeções e traquinices da classe política na chamada estação maluca, os seus graciosos chistes traziam cargas de convulsivo humor, tornando o ambiente menos pesado para lá de relatar as belezas da ilha dos Açores, onde descansava. A Vanessa recorreu à Guidinha a propósito da lorpice de Nuno Santos quando escreveu um texto a dizer da intenção de Costa o demitir, por nás-e-nefas dos gabinetes ministeriais a demissão virou chalaça crocitante, dando azo a críticas a Ana Sá Lopes. Na resposta às bicadas trouxe para a ribalta a Guidinha, calou os crocitos, recordando-me os nossos debates em Trancoso com o Carlos Andrade ao dissecarmos o nó-cego Jules Assange. A Vanessa no seu melhor a zurzir debaixo do manto diáfano da fantasia a nudez hipócrita dos bonzos encartados da nossa praça mediática. Ainda bem!

Cidadão Jorge Nunes

Nos anos de 1996 e 1997, escrevi neste jornal vários artigos, indignados artigos contra a clamorosa degradação do secular burgo brigantino a quem jornalistas, homens de letras e pessoas com Mundo acoimavam depreciativamente a Brandoa do Norte. Cansado das acídulas piadas dos saudosos Afonso Praça e Rogério Rodrigues, no fim de um almoço ocorrido em Santarém, cheguei à fala com o médico Telmo Moreno, dirigente capitular do PSD, a quem manifestei disponibilidade para integrar a lista candidata à Assembleia Municipal nas próximas eleições do quadriénio 1998/2002. Os socialistas atascados em disformidades volumétricas, disfuncionalidades e inércia perderam, fui eleito, dias depois conheci o novel Presidente da Câmara, o Engenheiro Civil António Jorge Nunes. Não tardei, a observar a sua sagaz prudência na apresentação das medidas e propostas que entendia serem ingentes para eliminar monstruosidades e aleijões a fazerem jus à classificação de Brandoa do Norte, também no que tange a equipamentos científicos, culturais e sociais. E, a Autarquia estava exaurida, como se diz na gíria não tinha dinheiro para mandar o cego rabequista tocar dolente ária das czardas de Monti Ao longo dos meses o seu entusiasmo empreendedor, o seu apurado sentido a aproveitamento das oportunidades sejam políticas, económicas, ou sociais a favor da sua Região, cidade, vilas e aldeias, naturalmente, guindaram-no a um elevado grau de confiança no seio das populações a desencadear invejas (nunca o invejoso medrou…) por um lado, ressabiamentos partidários (cristão-novo !) por outro e amplo aplauso geral expresso nas sucessivas reeleições até à finitude da observância da lei. O autarca passara à categoria de Homem do Norte quando ele é Homem transmontano. Após passagem pela (CCDRN) não correu a ocupar lugar no banco do ócio, da cogitação relativa aos esquecimentos de inúmeros manteigueiros para lá dos ensebados videirinhos trinetos da famosa Viradeira. Sem surpresa para quem lhe conhece o animo já pode apreciar o seu labor à frente da Delegação bragançana da Cruz Vermelha e, por isso, só pode considerar natural, justa e perfeita a condecoração outorgada pelo Presidente da República do grau de Comendador da Ordem do Infante no passado dia 23 de Junho. O meu júbilo expressa-se na presente crónica (ele irá justificar outras), na senda dos Homens bons que Alexandre Herculano referiu nos seus trabalhos acerca do Municipalismo, Jorge Nunes enfileira a seu lado para gáudio de quem lhe aplaude a têmpera.

Morangos Silvestres

Ao que li, na Terra Quente realizou-se um concurso de apuramento dos morangos mais doces daquele terrunho, sendo eleitos os de São Pedro Velho, uma aldeia que conheci há um taleigo de anos, pois ali vivia uma minha tia-avó a qual recebeu o apodo de a Tia Vaidosa, por isso mesmo, tendo saído de Lagarelhos, a fim de casar com um homem chamado Adão. Casaram, nasceram filhos, na altura os morangos seriam agres, daí terem emigrado para o Brasil em demanda de melhor vida pois, há 66 anos no Nordeste sobravam abrolhos, faltavam restolhos pejados de castanhas, nas vinhas bagos de uvas destinadas a alegrarem os palatos das e dos rebuscadores, passado o período das vindimas. Agora, realizam-se concursos a propósito de tudo e a propósito de nada, ao que relatam as gazetas televisivas há concursos eivados de maroscas e, por isso os descuidados gastam dias e fazenda nos tribunais, de vez em quando, são obrigados a levarem pijama, escova e pasta para lavarem os dentes na cela prisional. O júri, cujo palato reconheceu a essência deliciosa dos morangos daquela terra, cujo orago é o mesmo de Lagarelhos só que não tem o acrescento de Velho. O Santo guardião das portas do Céu em Portugal, até é titular do epíteto dos Sarracenos (esperemos que os polícias do politicamente correcto não interfiram), pois o da Cadeira, significa repousar ao finalizar longas pescarias de almas em vias de caírem nas profundezas do Inferno, embora os doutos do Vaticano tenham efectuado um acto administrativo eliminando- -o, porém basta pensarmos nas atrocidades cometidas na guerra (em todas as guerras) na Ucrânia. O extraordinário filme Morangos Silvestres ,do famoso realizador Ingmar Bergam, tem como personagem central um professor em viagem de combóio a fim de ser laureado, no decurso da deslocação a Consciência vai-o atormentando reavivando-lhe o passado trazendo ao de cima a dualidade contrastante, de um lado a ética e a moral, do outro a egoísmo, a ortodoxia, o cinismo expresso nas falsas virtudes envernizadas ao sabor das conjecturas interesseiras mesmo quando não aparentam. Os morangos explicam lapidarmente o triângulo alimentar do Homem primitivo antes da domesticação do fogo – cru, fermentado e podre – assim o teorizou e escreveu o sábio Claude Lévi-Strauss. Especialistas no degustar os frutos vermelhos de bico em forma de teto feminino de seivosos tamanhos, não tendo lido os conselhos do hortelão/ jardineiro de Luís XIV, formulam múltiplos enlaces mas áreas da confeitaria e pastelaria integrando os morangos nas suas criações, nada a criticar pois no referente a gostos nada é dogma, o sofisticado elitista Petrónio o provou, os curiosos leiam Satíricon, no entanto, champanhe acompanha bem melhor, porém manda o decoro político os membros da nomenclatura optarem pelos espumantes nacionais. Noblesse oblige! Agora temos morangos todo o ano, perdeu-se a sazonalidade, para nossa desventura.

Os médicos e a Ministra

É longa e brilhante a lista de médicos que apesar de todas as dificuldades materiais e das inclemências dos nove meses de inverno e três de inferno, dedicaram empenho, estudo, esforços, fazenda e fruição pessoal às populações em geral e às mais carentes em particular. Ainda agora quando evocamos apelidos de discípulos de Hipócrates: Abreu, Chiotte, Flores, Jota, L. Montanha, Moreira Pires, Moreno, Torres, a avalanche de imagens a recordar a sua constância na ajuda das criaturas das aldeias quais actrizes do fundamental filme de Luís Buñhel, Las Hurdes na qual a comunidade miserável da mais extrema miséria foi fixada para a posteridade embora o ditador por la gracia de Dios, tudo tivesse feito para lançar o precioso testemunho no alçapão da obscuridade. A aldeia das Hurdes tinha inúmeras réplicas nos concelhos nordestinos, contudo a maioria dos médicos ultrapassavam em dedicação ao povo patuleia (pata ao léu ou de socos) a figura de João Semana bonacheirão risonho. As coisas começaram a mudar após a inauguração do belíssimo Hospital projecto do arquitecto Viana de Lima. Surgiram mais médicos, novas valências, aumentaram-se os quadros de pessoal, no entanto, os filhos de Esculápio (Deus da Medicina) raramente conseguem atenção desinteressada, merecimento ajustado às suas responsabilidades e, mesmo no tocante a estatuto passaram à condição de operários especializados principalmente nos hospitais. Sem surpresa ou estupor de espanto a Ministra Temido adora dar ênfase ao apelido num reco-reco ora intimidatório, ora lamuriento, a gradação da voz vacila e vergasta conforme lhe favoreça o desempenho. Os dois últimos episódios estalejam como foguetório no arraial em honra do Senhor São Pedro orago da crescentemente minguada aldeia de Lagarelhos. Senão vejamos: Como quem quer apalpar o pulso aos doentes o Ministério da Saúde deixou (vomitou) a troglodita intenção dos médicos serem avaliados, e penalizados, caso as suas pacientes interrompessem a gestação das gravidezes ou as ajudassem na infertilidade. Ante o imenso clamor das descendentes de Lisístrata repudiando a voracidade selvagem da pretensão urdida no Ministério a Doutora Temido estremeceu salmodiando pedidos de desculpa com ar contristado, porém a contrição deu lugar a mandíbula cerrada como está a encarar de modo displicente o enorme aumento de infectados, internados e, óbitos, consequência do reavivar da pandemia, chamando à pedra os pacientes, exigindo-lhe o grosso dos cuidados a terem, minimizando a estatística, assegurando estar tudo controlado. A saúde e segurança são elementos estruturantes da sociedade a par da sonolenta e preguiçosa justiça, no entanto, a saúde é primacial na escala de valores de todos os cidadãos, daí o mal estar existente no sector, os sindicatos e as ordens apontam as falhas, as faltas, as fraquezas, a senhora ministra responde conforme lhe dá jeito, os vírus andam soltos quais cães perdidos sem ou com coleira a morderem crianças e demais pessoas, os micróbios assustam e matam, a DGS navega num mar encapelado, se o Troula de Vila Nova ainda estivesse entre nós acredito que dissesse de sua justiça sobre a varíola dos macacos pois no seu nariz os permanentes lampiões acolhia muitos símios que às vezes expulsava recorrendo ao lenço de cinco pontas, entenda-se os cinco dedos. O médico duriense Mário Monteiro Pereira, autor de vários livros relativos à saúde pública, aconselhou-me a seguir os preceitos dos médicos mente sã em corpo são. O médico atento observador da vida social caso volvesse neste tempo escorregadio de Tus e Mus ao sabor dos modismos não tardaria a verificar a degradação das mentes dado o caos que se vive nas urgências hospitalares não só nos dias de maior procura dos públicos, também no ram-ram diário recheado de maldições, queixumes e suspiros porque nas casas onde não hã pão… todos resmungam e todos têm razão. O livro O Médico e o Monstro, numa versão de Alfred Jarry, seria O Médico e a Monstra! PS. Para enfrentar as iras e ataques de desculpas farisaicas da Senhora da tutela sanitária aconselho vivamente a leitura de Rei- Ubu da autoria do citado Alfred Jarry.

Graça Morais

A notícia de a Universidade de Trás-os- -Montes e Alto Douro ir atribuir à pintora Graça Morais o grau de Doctor Honoris Causa provocou-me e continua a provocar-me intensa alegria não só devido ao facto de ser justo exame dada a sua obra pictórica a revolver as entranhas seculares da alma Nordestina expressa no húmus telúrico daquele território e das suas gentes, mulheres viúvas de vivos porque os homens na sua esmagadora maioria até aos alvores do 25 de Abril de 1974 moíam o corpo derramando o suor dos seus rostos nos sertões africanos, na estiva dos portos do Norte da Europa, na construção civil em França e Espanha e, para outras diásporas mais longínquas, mas também porque causa imenso júbilo aos seus amigos, não é assim Maria do Loreto? A pintora sentiu na carne as agruras da separação do pai emigrante, valendo-lhe a todo o tempo e em todos os transes a sua progenitora que é fonte de inspiração tutelar qual Mãe-Coragem figura central de muitos dos seus quadros. Neste tropel do turismo massificado os museus e Centros de Arte recebem visitantes apressados fazendo relampejar os instrumentos de fotografia dando azo a importantes obras de reflexão sobre o «miolo» escondido da criação artística, por isso relembro o pertinente ensaio do poeta, romancista e ensaísta José Régio – Em torno da expressão artística, 1940 -, na qual defende o primado da liberdade de conceber como quem concebe um filho e não atanazado por uma qualquer rede ideológica, na altura a ortodoxia de Cunhal pugnava pela doutrina inserida na vulgata de Gregory Lukacs, castradora, mais tarde dita engajada (termo em voga nos anos idos do Maio de 68, do século passado e dogmaticamente utilizada pelo transmontano nascido na raiana Moimenta, o sociólogo Alfredo Margarido). Ora, Graça Morais crente assumida e expansiva das virtudes da democracia tem demonstrado quão vital continuam a ser as considerações do poeta de Vila do Conde enamorado de Portalegre onde durante algum tempo deu/davam grandes passeios aos Domingos, com, entre outros David Mourão-Ferreira o qual foi admirador e amigo da pintora que viveu na vetusta Casa do Arco na cidade brigantina. Se a Casa do Arco motivou um grácil estudo publicado há umas boas dezenas de anos, o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais além de ter suturado uma lacuna na Região, estando consagrado à pintora é a prova/provada de os santos (a santa) da casa também fazerem milagres porque a dimensão da Artista por mérito próprio – estúdio e exercício – levaram a um decisor que entendo não nomear (deixo esse encargo aos leitores) a dedicar tempo e o modo da Autarquia honrar a ilustrada menina dos cabelos loiros a esvoaçarem nas ruas da urbe do bravo Braganção. Devemos considerar o doutoramento motivo desta crónica como coroamento da obra da Pintora, claro que sim, mas podemos e devemos pedir-lhe a continuação do seu labor, ao exemplo de larga e fecunda plêiade de Mestres e Mestras do seu timbre e escalão. Parabéns!

O Homem de Abril

No dia 3 de Abril de 1992, chegou-me a infausta notícia da morte do Homem, do meu querido amigo Fernando Salgueiro Maia, o exímio executor do plano que conduziu à tão aguardada por nós opositores, a queda da ditadura salazarista. A maldita maleita atormentava-o há muito tempo, quando a quebra física se acentuou refugiei-me no casulo qual vagem de maneira a ficar como ficou na minha memória a sua imagem radiosa, exuberante, contagiosa de alacridade a derramar-se sobre a família e os amigos. Agora, ao demoradamente contemplar a foto inserida na capa da revista do Expresso toldaram-se-me os olhos e, aquele seu olhar triste trouxe à boca o fel do remorso de não ter ido ao aeroporto quando chegou de Londres e a sua amada e devotada Mulher e dois comuns amigos o acompanharam a caminho do hospital. Iniciaram-se as comemorações dos 50 anos da restituição ao povo da expressão livre de alicates censórios, da castração mental dos espíritos, do abastardamento das consciências, daí ser natural e justo aparecer em primeiro lugar, em primeiro plano a figura do Homem cujo comportamento posterior à vitória se materializou no regresso ao quotidiano, à frequência do curso de promoção a Oficial superior na companhia dos camaradas brigantinos Moura Carneiro e Remondes em sã convívio desprovido de ademanes de vedeta estilo Patton ou do Caco leia-se Spínola apesar de vários façanhudos da «arma das rainhas» o incitarem como tantas vezes presenciei em Santarém e Santa Margarida, pois o excelso Capitão convidava-me a acompanhá-lo em várias ocasiões de júbilo e de cariz cultural. O Salgueiro Maia nutria gravidíssimo respeito ante a cultura e o engrandecimento através do estudo e investigação relativamente à génese da Humanidade e elementos contrastantes do comportamento humano assim é irrefutável logo demonstrável lendo os seus trabalhos de licenciatura em Antropologia cultural. Inimigo da táctica das arcas encoiradas pagou caro o desassombro no domínio do falar sem tibiezas, sem gorgomilos e estrias na língua suportando ágrio «exílio» em S. Miguel onde enfrentou galhardamente a turba separatista acantonada numa livraria de Ponta Delgada. Na sua Escola Prática de Cavalaria, já doente, dedicou-se a enriquecer e organizar o Museu da reputada unidade, revejo-o num almoço por ocasião do Festival Nacional de Gastronomia, o então Presidente da Câmara da sua terra natal, Castelo de Vide acompanhava-o, censurou-me brandamente pela minha fuga para a torre na qual o Homem de Abril estava como no dia em que no Terreiro do Paço disse a Ferrand de Almeida que a ditadura estava finita. E, estava! As revoluções são ingratas para as suas figuras para as suas evoluções são sinónimo de ingratidão de maior saliência ao ponto de as imolar em banhos de sangue (lembro Machado dos Santos, Carlos da Maia, o transmontano António Granjo entre outros), felizmente, no que tange ao 25 de Abril a sageza de Melo Antunes impediu a repetição da noite da infâmia onde o celerado Dente de Ouro praticou monstruosidades, pois no rescaldo do 25 de Novembro apareceram os adeptos da «limpeza» dos derrotados livrando o País da mais que possível eclosão de outra guerra civil satisfazendo os desejos dos «democratas» acoitados no cabanal franquista a conspirar e comerem tortilhas nas tabernas madrilenas. O Capitão cumpriu escrupulosamente as instruções de Eanes, retirou um subalterno do poço dos vencidos e por isso sofreu as investidas de muitos envinagrados contra o Homem de Abril, das duas datas substantivas da História contemporânea portuguesa. Apesar dos muitos erros praticados ao longo dos últimos 48 amos, ultrapassando as quatro dúzias da Ditadura, só por rancor e sulfurosa azia os ingratos desvalidos da pulsão de ver sem argueiros na vista podem negar quão importante foi a acção levada a cabo na madrugada do dia 25 do quarto mês do ano de 1974. Bem sei, sabemos, quão fácil é julgamentos (o Eclesiastes adverte: não julgarás), todavia no respeitante a Salgueiro Maia já escrevi e volto a escrever que nunca conheci e convivi com alguém tão generoso, tão amante de dar sem nenhuma espécie de interesse como ele. A pureza do ideal de se construir uma democracia dentro dos parâmetros clássicos da oriunda de Atenas de Péricles, plasmou-o O Capitão prematuramente desaparecido para prejuízo do Ser português em vez do triunfo (agora posto em causa dada a nefanda guerra da e na Ucrânia) do Ter tudo quanto cada qual possa arrecadar por nás e nefas de toda a ordem e desordenadamente. Se para mim 25 de Abril sempre, ao meu Amigo Salgueiro Maia o fico a dever, preclaro Cidadãos.