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O MATA-BORRÃO

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O dito deste verão é da autoria de Marcelo Rebelo de Sousa: «António Costa é um mata-borrão». Ora durante a primeira classe mantive luta inglória com os borrões de tinta que os chupa-nódoas acabavam por soçobrar ante a frequente invasão das mesmas a alcançarem as mãos e as roupas a causarem comentários em vivo vernáculo à minha avó materna. No dia 7 de Outubro entrei na decrépita escola de Lagarelhos, tinha seis anos de idade, envergava uma camisola de gola alta (Ives Montad pautava no círculo da moda parisiense que chegava a Bragança através dos Sehores Tozé e Queiroz), calça curta, meias brancas rendadas de canhão alto, botas engraxadas, debaixo braço um pasta, (a fotografia assim o confirma)assim penetrei na sala esburacada, carteiras e mesas compridas, na cabeceira uma secretária, no tampo a Santa Luzia, atrás a minha vizinha, a senhora Emília, viúva, professora de Posto de Ensino, vulgo posteira, ao lado a menina Lili, sua filha, numa cadeirinha e pequena carteira, apertada numa gola engomada e muito senhora de si fazendo contrastar a sua alva tez aveludada com as tisnadas pelo sol das meninas a que todas e todos chamávamos garotas. E, já lá vão setenta anos! Na parede do fundo, no centro, um crucifixo, do lado esquerdo o retrato do Marechal Carmona, do lado direito o de Oliveira Salazar. Num balcão corrido ao longo das vidraças os alunos quase todos calçando socas e socos, colocavam os trastes – roupa, sacolas, sacas, saquitas, boinas e gorros –, tudo muito pobre. Junto à porta o vassouro que as alunas o empregavam para varrer à vez as largas tábuas de castanho, quase tidas estropiadas devido à idade e constância trepidante dos socos e socas de amieiro cravejado de cardas. As pessoas viviam numa pobreza envergonhada, a alimentação baseava- -se nas batatas, castanhas, couves, centeio, e carne de porco. Quem cevava e matava os recos. A senhora Emília e a diáfana filha eram de Vale das Fontes a professora plácida, pesada, e tristonha, o rebento mimada, receosa e recatada. No final ao ano lectivo fui (contrariado) para Bragança, nunca mais soube nem novas, nem mandados, da mocinha sempre colada à Mãe. O meu «estacionamento» na última fila permitia-me ver quem passava no caminho pedregoso e lamacento nos dias chuvosos, não faltando pretextos para falar com os passantes e deixar cair gotas de tinta azul do aparo de aço enfiado na caneta com mola, roída na extremidade. O caderno das cópias estava polvilhado de marcas de tinta pois o mata-borrão dado pelo meu pai no dia anterior ao bap- tismo escolar ao fim de pouco tempo não passava de um enor- me borrão, mais a mais, a partir do momento em que o Chiquito (desapareceu para sempre pas- sados alguns anos) entornou sobre o absorvente cor-de-rosa o resto contido num tinteiro. Em Bragança comprava as fo- lhas de mata-borrão na Livraria Silva onde o Senhor Domingos da Silva com uns óculos lentes cus de garrafa que nos fixavam insistentemente, e na Livraria do Senhor Mário Péricles na qual imperava a menina Teresinha metida numa bata de cetim preto uniforme de telefonistas, cabeleireiras veteranas e outras funções similares. Na cidade do Braganção existiam grandes bebedores e co- milões, um deles comeu uma canonha assada acolitada com uma carreta de batatas, para mata-borrão bebeu cinco litros de vinho vendido na taberna do Canta. Estes mata-borrões tinham largo uso no circuito democrático do trabalho operário, do mesmo modo nos ramos do funcionalismo civil e das forças de segurança, já que a tropa despediu-se da sua categoria de praça-forte logo a seguir â eclosão da guerra colonial. Seria cavar rancores caso enunciasse célebres mata- -borrões de antanho porque, forçosamente, iria deixar no tin- teiro muitos deles, de qualquer modo, os contributos dos anó- nimos justificam registo pois há vários tipos de absorventes de nódoas por isso António Costa prefere não exercer tal função deixando Nuno Santos, Fer- nando Medina e Céu Antunes entregues a si mesmo pois as manchas são de tal ordem que só uma esfregona embebida em soda cáustica conseguiria trazer algum disfarce na carreira/acção política dos visados. A manta da maioria realiza o resto. É a vida parafraseando António Guterres! PS. O desgosto pela perda de uma caneta de tinta permanente levou-me a rabiscar apenas com esferográficas publicitárias.

Armando Fernandes