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Os lambe-botas

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Uma das maiores dádivas que recebi ao longo da vida, foi a de privar e receber a amizade, apuro na análise do comportamento humano, sem esquecer os conselhos repletos de ironia, dados em filigrana ao longo de décadas pelo arguto e visionário filósofo Orlando Vitorino. Como é e foi, comentávamos o fluir do quotidiano, as subtilezas dos malabaristas dos negócios, da política, da composição e poder das famílias poderosas, dos lambe botas e manteigueiros em geral, dos existentes na Instituição na qual trabalhávamos. O autor da Refutação da Filosofia Triunfante, e da Exaltação da Filosofia Derrotada, tolerava com ironia os manteigueiros, abominava e zurzia sem piedade os rastejantes de língua de fora a salivarem baba nas botas, botins e sapatos dos decisores e adjuntos. A um adjunto chamou e escreveu que não passava de um Nulo abre portas nos corredores alcatifados. O Homem que contemplei vezes sem conta a escrever de jacto documentos de enorme densidade e doutrina, da mesma forma um livro destinado a crianças, uma peça de teatro e/ou ensaio relativo a pensadores da estirpe de Aristóteles, Maquiavel ou Nicolau de Cusa. O leitor perguntará: porque carga de água (que escasseia) trago à colação o também cineasta Orlando Vitorino, tecendo considerações referentes à praga de lambe-botas tão comum na sociedade portuguesa? Porque a Instituição das nossas vivências profissionais mudou de timoneiro há pouco tempo e, os referidos passadores de saliva nos sapatos andam numa roda-viva a escreverem loas ao Senhor em causa, tendo o cuidado de nomearem antigos dirigentes de igual estatuto não vá o Diabo ser tendeiro exercitando ciú- mes do ora na fruição da refor- ma porém, atentos ao cair das folhas do jardim das delícias e memórias vivas, discretas e secretas daquele centro de poder tão vigiado no Estado Novo, tão escrutinado e apetecido desde sempre. O filósofo declinou convi- tes de direcção, a burocracia aborrecia-o, a opacidade dos gabinetes de igual modo, amante e amigo da liberdade retirou-se abruptamente para o seu amado Alentejo quando os lambe-botas o quiseram manietar. Ele defendia a Escola Formal e a «razão animada». A mulher do ferreiro Venâncio de Lagarelhos estava sempre de acordo com as comadres e compadres, originava risos e dichotes, os lambe-botas dão asco. O saudoso Filósofo a todo o tempo lembrava o menino travesso a desmascarar o rei nu!

Armando Fernandes