Adriano Valadar

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Melancolia das rotundas

Gostava - e gosto ainda - de passear de carro sozinho, pequenas felicidades surgiam através das nossas terras, dos campos e florestas. E uma conversa com um cantoneiro? Emergiam os passeios secretos e aventurosos da minha infância. Cada um tem as aventuras que pode, mas recordo-me duma espécie de êxtase que me invadia quando, à saída duma aldeia, vila ou cidade, investia numa dessas estradas sinuosas ou direitas com as bermas cheias de flores, giestas, estevas e árvores bem perfumadas e vivas que me conduziam a um mundo novo, desconhecido e desejado, como uma espécie de linha de fuga, uma bela escapada e misteriosa. Há já alguns anos, e tudo mudou. Não há um concelho que não tenha a sua zona artesanal ou industrial como tantos tentáculos dum polvo monstruoso que o fecharia na sua fealdade. Não há um que não tenha as suas rotundas. Ah, as rotundas! No conselho de Bragança, conheço poucas aglomerações, até à mais pequena aldeia, que tenham conseguido fugir a uma pequena rotunda. Quantas rotundas existem em Portugal? Centenas, milhares? Ninguém sabe bem ao certo e não encontrei nenhuma referência ao tema! Mais do que um princípio, é uma mania, uma moda sombria, uma obsessão. Uma espécie de delirium tremens de alcoólico mal arrependido. Somos o país das rotundas. E pagámos certamente o preço, milhares de euros pelas mais modestas e milhões pelas mais imponentes e majestosas. Que importa que estejamos sobre- endividados. Dir-me-ão, isso faz funcionar os serviços das administrações territoriais, sem falar das empresas de trabalhos públicos. Os presidentes da câmara e outros presidentes de tudo (concelhos, regiões, comissões de urbanismo, enfim todas os vereadores locais), que no entanto passam a vida a dar lições de economia ao Estado, amam- -nas apaixonadamente como amariam o filho dos seus amores ilegítimos. É que a rotunda deu-lhes a ocasião única e inesperada de exprimir o seu génio artístico, toda esta criatividade reprimida que o mundo inteiro deveria invejar-lhes. Se, pelo menos, ficássemos pelas rotundas bucólicas plantadas com ervas, flores e árvores, contudo a maior parte transportam literalmente os fantasmas artísticos – ou a sua vacuidade como queiramos – dos seus vereadores. Há de tudo nas rotundas, há as literárias com bustos de grandes nomes ou mais imponentes no seu cavalo, há as futuristas, como a dos anzóis em Torres Vedras ou a das minhocas em Albufeira, ou tantas outras em ferro oxidado por esse Portugal fora, há sobretudo muitas etnográficas e são as mais engraçadas. Já não é preciso o guia Michelin. No caso de não saber qual é a atividade da terra onde se entra, é-nos anunciada a cor pelas esculturas das rotundas: sacos de batatas ou cantarias de Vila Pouca, cantarinhas de Bragança, barcas em Almada que anunciam o mar próximo, alegorias do mundo dos bombeiros, vacas como a lembrar que aí há leite e queijo, e passo pelas melhores. Estamos de alguma forma em Alice no país das maravilhas, ou na feira popular. Tudo isso respira a melancolia do vazio e da futilidade. Além do mais, as rotundas são no man’s land constrangedores onde só passamos. Abreviando, as rotundas por si sós, tema tão recorrente nas conversas, não passam dum sintoma da nossa esquizofrenia. Ficam muito caras, descaraterizam a paisagem e o país, podemos ver nelas a metáfora dum país que anda completam à roda.

Depois das máscaras

Azuis, brancas, pretas. Aí estão elas no chão, jazendo no seu pequeno espaço urbano tendo caído no passeio. Negligenciadas ao serem tiradas duma carteira ou dum bolso demasiado cheio, lançadas dum automóvel colado ao passeio. As máscaras de todo o tipo de tecido e de forma. Bicudas ou lisas, para serem cravadas na parte inferior do rosto que aspira a respirar o ar puro das cidades e dos campos. As máscaras virão a cair muito em breve, o verão tendo passado por aí, tudo não passará duma má recordação. Péssima recordação tendo emoldurado por mais ou menos dois anos a memória dos portugueses. Recordação de polémicas maiores e indignadas no início, quando escasseavam, quando, tendo compreendido que os enormes stocks tinham impunemente desaparecido, demo- -nos conta que seria preciso adquirir mais máscaras, e não em pequena quantidade: dezenas de biliões à China promovida imperatriz do Centro dos nossos rostos. As nossas caras furiosas e vergonhosas então a amaldiçoar a “nulidade” das autoridades incapazes de no- -las fornecer em pequenos pedaços de tecido com uma utilidade discutida. Depois foram vertidas sobre todo o país, como sobre o Egito das pragas, nuvens de grilos peregrinos de todas as cores. Foi preciso trazê-las em todo o lado. Tornava-se a arma mágica essencial, obrigatória contra o maldito vírus. Uma arma substituída por fim na preocupação de uns e de outros pela imperiosa necessidade de vacinação. Os diatribes mudaram de objeto mas em nada de intensidade. Houve, depois da penúria das máscaras, penúria das doses, das doses boas, eficazes e seguras. O debate durou longas semanas. Toda a gente, tendo- -se posto a usar máscaras para cobrir a boca não percebíamos nada sobre o que diziam os peritos nas televisões. Não percebíamos nada tampouco das injunções contraditórias nem das afirmações opostas. Ao acreditar que alguns defendiam tal marca e outros defendiam a sua concorrente preferida. Foi assim que, saltando de pedra em pedra por cima dum riacho de montanha acabámos por nos encontrar perante este novo debate embaraçoso, neste último início de verão: até quando perdurarão este raio de máscaras nos nossos rostos doentios? O facto de se ver sem elas significaria o fim da pandemia. Deste modo foi lançada a última polémica opondo os avisados, os prudentes aos impacientes que não se viam bronzear somente a metade do rosto. Assistimos às últimas bufadas delirantes à volta destas máscaras cuja ausência insuportável e o desaparecimento desejado enquadram a vida do nosso país desde há muito tempo. Figuravam, retrospetivamente, estas máscaras cariátides como dois prensa livros numa cheminé, mantendo em pé livros de horas, das memórias de confinamento, de trabalho à distância, dos (re)confinamentos. O primeiro capítulo tinha como título o “ Negócio das máscaras”. O último poderia ter tido exatamente o mesmo título. De pedra em pedra e destas duas sequências iniciais finalmente só recordaremos as máscaras. Não somente máscaras, mas máscaras sem fim como se chovessem máscaras por todo o lado. Qualquer dia, sem máscaras por fim, sem a preocupação de colocar a máscara no rosto, por fim! Entretanto, dezenas de agonias invisíveis de humanos que nós teremos deixado morrer sozinhos cheios de tubos, sem máscaras auto-portáteis. Mortos que nos terão deixado completamente à beira do poço fatal onde as nossas ambições terminam sem recuperação. Só nos resta o murmúrio lancinante e as lamentações dos defuntos que terão partido antes de nós. Terão eles até ao fim, atrás do acrílico de proteção das suas câmaras fúnebres e brancas, ouvido o zunzum das nossas querelas, o bombardeamento mediático recorrente das nossas maldades, dos nossos insultos e golpes baixos?

Bom regresso letivo para todos!

O céu de porcelana reflete ondas de luz que ficaram demasiado tempo prisioneiras. Pela manhã, tudo é inundado de azul; a transparência do ar peroliza as ervas que cintilam. Ao cair da tarde, o ouro derrama-se e escorre sobre as colinas e os vales. A ceifa dos campos parece ter cansado as fouces, e os frutos superam a promessa das flores, os verdes- -violetas dos cachos de uva sob as borlas das ramadas, os figos roliços sob as suas folhas de bronze e o incomparável perfume das primeiras maçãs na sua queda ou no descanso da fruteira plácida da linda dona de casa. Tudo parece um pouco mais pesado, lento, lânguido neste verão que quase não o foi, que tenta recuperar e se atarda. Pela cidade, nalguns jardins, canteiros e vasos, os jardineiros compuseram para o regalo dos nossos olhos algumas paletes impressionistas, alguns jogos florais. Os bancos convidam-nos cordialmente a parar alguns instantes, só o tempo de dar graças à delicada educação dos espaços -alguns espaços novos na cidade - e sobretudo a escutar. Ouvem-se as polifonias da cidade voltar como sempre neste tempo de regresso às aulas – os gritos das crianças nos recreios das escolas e o piar dos enxames de estorninhos nas piedosas tílias. “ Meu Deus meu Deus, a vida está aí, simples e tranquila” ensina-nos o poeta, tranquila pela presença do céu, pela da árvore que balança os seus ramos. Simples ser vivo que participa por sua vez e com todas as suas forças no canto da criação em toda a sua evidência. A vida está bem presente, podemos louvá-la no oásis das igrejas abertas, no seu silêncio ou nos arbustos de velas, a oração sempre prestes a jorrar, em nós, em direção a Deus, para nós. E talvez a oração nunca tenha sido tão necessária e vital como hoje, nestas férias algo ao inverso, neste verão algo atípico em que os acontecimentos do mundo e os sobressaltos da terra reverteram, no sentido acima abaixo, e parecendo laborar, subtraindo dia após dia todos os símbolos destas férias tão esperados e cujas memórias embelezam as recordações – a despreocupação, os risos, a deliciosa leveza, os passeios, a pausa sobre a partição dos meses que passam. Certamente, os motivos das lágrimas, dos alarmes e da aflição não faltam, urbi et orbi, e talvez a nossa sobrecarga crónica os faça parecer mais pesados, mais temerosos ainda do que o rochedo de Sísifo que agora nos sentimos incapazes de empurrar, exceto a nossa contínua lamentação. É certo, temos muitas vezes o sentimento de ficar presos no tempo estático da infelicidade. E a nossa alma? O Espírito maravilhoso e móbil que a bafeja, se soubermos guardá-la porosa em relação à esperança e aos sinais dos quais o céu e os céus abundam? Sinais, coincidências, lições de coisas e de sabedoria. Os céus, vemos a sua suavidade voltar nos apaziguamentos do verão indiano. Quanto aos Céus, têm a sua agenda e as suas festas, e quem amuaria perante as mesmas. Mais afastados do profano desta vez, a Sra da Serra ou do Naso tão perto de nós. A do S. Gregório, mais longe, S. Jerónimo e sua amiga Santa Paula a quem devemos a Vulgata latina. Nenhuma resignação nestes ídolos festivos. Firmes no desmoronamento do seu século e ardentes no reverdejar da fé, e até outubro as festas das duas Santas Teresas, lutadoras cada uma à sua maneira, fortes contra as derrelições do seu tempo, abandonadas ao amor de Deus mas nunca resignadas, nada de capitulação com elas. A Castelhana e a Normanda. E a festa de Francisco de Assis e a sua lição de alegria perfeita (meus tempos de Cernache do Bonjardim!) – “ a força de vencer-se”. Vencer a nossa inclinação para a morosidade. Tantas vidas legadas por nós, cujos modelos purificam os nossos olhares, curam as nossas tentações de se afundar na acédia e convidando-nos, que digo eu, obrigando-nos a erguer-nos, a tomar na nossa vez o nosso tempo, custe o que custar, a fim de tentar, aguerridamente, prodigar um pouco dessa luz que revigora e ilumina, para que esta faça brotar sobre os nossos e mais longe ainda talvez a insubstituível fé naquilo que o homem tem de melhor - o amor, a alegria, a coragem da esperança. Recordemos estas palavras de Sta Teresa: “ Basta-me colocar os olhos no santo Evangelho, logo respiro os perfumes da vida de Jesus e sei para onde correr”. Corramos, corramos, mais admirativos e determinados sabendo ainda que esta frase da “pequena” Teresa foi escrita algumas horas antes de morrer, o corpo mortificado por dores terríveis, depois de pensar que Deus a havia abandonado. Teria ouvido nesse momento a profunda resposta que lhe lançava, através da noite dos tempos, posto no horizonte com todos os outros santos, santo Inácio que continua a lembrar-nos: “ Quem possui a palavra de Jesus pode ouvir mesmo o seu silêncio.”

Lavrar o silêncio

Recentemente, tive o privilégio de fazer uma pequena visita a um familiar muito próximo lá fora e visitar uma cidade com polifonias diferentes, ancorada num passado longínquo e muito rico a todos os níveis. Coincidência ou não, o meu amigo Manuel teve no domingo passado esta bela fórmula: “ O luxo, é o espaço, o tempo e o silêncio.” Encontrei a ideia fantástica e justa; nós que passamos a vida a correr atrás do terrível fantasma do sucesso material, esta definição de luxo é suscetível de nos fazer refletir sobre o sentido que damos às nossas vidas. Pensei logo também nas catedrais e ruinas de abadias e mosteiros, dois que visitara no meu recente périplo. Longe do tumulto do mundo, constelam tantos lugares, no nosso país também; um mosteiro trapista muito novo em Palaçoulo, concelho de Miranda do Douro. Barcas de pedra consagradas na mais completa solidão, são um refúgio de paz para quem pretender dar um sentido à sua vida. Seriamente, e se o luxo fosse simplesmente a contemplação serena duma paisagem, tomando o tempo necessário para se inscrever nos minutos que passam, num relicário de silêncio? E se o verdadeiro luxo, para toda a humanidade, fosse retirar-se do mundo para, por fim, viver? Os anacoretas não pensavam doutra forma, estes que fugiram da desordem para construir uma existência de oração no deserto. Na penúria e na indigência mais completa, pararam o curso do tempo e elevaram-se para o Altíssimo, com toda a humildade, com a visão dos enormes espaços, o tempo e um silêncio imposto. Sonho também com essas pequenas capelas cercadas por grutas, colocadas no cimo das colinas, onde grupos de ermitas se instalavam no princípio da Idade Média, edificante num estilo românico privado de artifícios, santuários para praticar as suas devoções à Virgem, a Cristo Jesus ou a um santo. Ainda hoje, atingir a capela requere alguns esforços, e se uma estrada alcatroada nos conduz a ela, a estreiteza e o declive da via exigem uma certa coragem para chegar lá. Retiradas do mundo, pessoas muitas vezes simples praticaram nesses lugares uma vida dedicada aquilo em que acreditavam, no meio das estridulações das cigarras sussurrando num oceano de pinhos. Tenho uma profunda admiração por quem têm a audácia de renunciar à agitação contemporânea a fim de escutar somente o seu coração e dar graças a Deus. Sou incapaz de o fazer e lamento muito. Penso que todos temos a experiência nem que seja mínima da meditação ou de algum retiro espiritual. Nem que seja passar alguns momentos isolado na natureza no silêncio da noite, quando cessa o último pio de uma ave noturna, experiência arrepiante e enriquecedora ao mesmo tempo. Contudo nada me levou a mudar a minha relação com o tempo, com a minha vida e com o sentido que lhe quero dar. Porém as palavras do meu amigo fazem eco em mim como um mantra, como uma oração, e agradeço-lhe por ter tornado mais claros os meus pensamentos da semana. Boas resoluções e decisões, eis o que nos faz falta. Iluminar as nossas vidas de espaço, darmo-nos o tempo de ser, saboreando o silêncio, em nós e à nossa volta. Como isso nos parece simples, mas como é difícil pô-lo em prática, reconheçamo- -lo. Talvez possamos vestir a interrupção voluntária das nossas existências com algumas notas de música, talvez tomar o tempo para si, caminhar, passear. Alguns de nós acreditaram, pobres de espírito é o que somos, que o confinamento nos levaria a um mundo do Depois, no qual a experiência da pandemia nos permitiria ser mais sábios e mais serenos. Sonho ilusório não passou disso. De qualquer forma, podemos ainda, individualmente, cultivar o silêncio e a paixão dos grandes espaços, e darmo- -nos ao luxo de existir para nós, em plena consciência, no amor dos outros, dos que nos são próximos e daqueles que nos são queridos. O verdadeiro cristão é talvez aquele que consegue encontrar a calma e a serenidade em si-próprio, acalmar as suas tempestades mais íntimas para praticar o bem nos preceitos de Cristo. E praticar o luxo, o verdadeiro, o essencial: espaço, tempo, silêncio. Deste tríptico primordial nascem a benevolência e a ternura, virtudes cardinais para quem se diz humano, para quem se afirma cristão. À imagem de todos aqueles que optaram por fugir do mundo, podemos também encontrar o indispensável, e fazer das nossas existências um caminho luminoso em direção ao Céu. Praticando simplesmente o culto que escolhemos, mas decididamente, ligando-nos ao próximo, estendendo a mão; religio, em latim, ligar, prender-se. Em suma, ter o luxo de estar e viver plenamente, no respeito pelos outros e por si-mesmo, ancorado no tempo, cultivando o silêncio, percorrendo o espaço em total liberdade.

Será possível deixar de duvidar de si?

Conheces as palavras que gostarias de dizer mas não as dirás. Preferes guardar uma certa reserva. Sabes o que se passa. É uma situação banal para já. A noite cai. Queres ir rapidamente para casa, esconder-te em suma. Leste recentemente o que um personagem do romancista americano Herman Melville dizia aos quinze anos ao irmão, quando acabava de deixar o lar da família para ir trabalhar com um tio numa quinta: « De todos estes projetos magníficos que fiz para a minha vida, não resta nada. Gostaria de afrontar um grande perigo e cessar por fim de duvidar de mim-mesmo.» Mas já não tens quinze anos há muito tempo. E nunca te habituaste verdadeiramente a escrever aos teus irmãos. Será que só um “grande perigo” poderia conduzir-te a uma espécie de adequação contigo mesmo? Os perigos que atravessaste, na maior parte, não os procuraste. Duvidar de si- -mesmo, é-te familiar. E nunca encontraste verdadeiramente que relação clara fundar entre ti e os outros. Geralmente, dizes aos outros aquilo que imaginas que eles querem ouvir de ti. Estás bem convicto de que é preciso ceder a uma forma de comédia social. Mas experimentas também uma forma dolorosa de rutura. Vês, como num sonho mau, Aquiles virar-se contra ti e repetir-te como o faz na Ilíada: “ É-me odioso como as portas do inferno, aquele que esconde uma coisa nas entranhas e diz outra” (canto  IX, 312-313). Ficas com um enorme nó no ventre. Quem ousa confessar que sofre muito da imagem que se fez dele próprio? Ou que ele pensa que os outros têm dele. Gostarias de confiar ao teu filho ou filha, a tua adolescência, eles que vivem com alguma angústia também na híper-confiança das redes sociais. Eles também acham que o que são, o que eles valem não corresponde aquilo que os outros lhes reconhecem. Também sofrem do fosso entre o ser verdadeiro e o seu ser social, as imagens veiculadas nas redes sociais, por exemplo. Quantas vezes, perante pequenas discussões, não ouvimos: “ não sou forçosamente a pessoa que tu imaginas.” Pedimos perdão. Todos passamos por certas máscaras, fabulações e superficialidades. Que necessidade, que carência nos leva a dissimular ou a escondermo-nos? Será possível agir de outra forma? Sofremos do desejo de coincidir connosco mesmos e da dificuldade de o conseguir, sofremos de autenticidade (fantasmagórica muitas vezes) e de duplicação ou multiplicação. Que imagem de nós-mesmos nos provoca tanto medo? Porquê querer a toda a força tirar a máscara? Não dormes. As insónias são muitas vezes ligadas às perturbações da personalidade, às incertezas da identidade, à perda de confiança em si-mesmo. As máscaras pertencem à noite. Incomoda-te a altivez dos outros, a convicção quando falam deles mesmos. Apesar de saberes pertinentemente que também se trata dum artifício, duma ilusão. Uma forma de fugir ao confronto com o duplo, de se esquivar à perda de si-mesmo. Não nos possuímos a nós-mesmos, só possuímos a perda daquele ou daquela que pensamos ser. Somos feitos de diversos rostos. Apagam-se e reaparecem por vezes. Não ouves verdadeiramente os que fazem ofício de condenar as aparências. Atrás de tantos chamamentos à sinceridade e à transparência, há muitas vezes abismos que gostaríamos de esconder. Criança, não suportavas que os adultos opusessem as seguintes palavras às tuas fraquezas: “ é muito fechado, muito calado, introvertido…”. Não, efetivamente nunca me entendi muito bem comigo- -mesmo. Talvez fosse necessário preservar a possibilidade de não ser o que somos. Saber humildemente que se trata duma eventualidade. Gostaríamos de ser inteiros, plenos, seguros de nós-mesmos. Não passamos de vazio e tremor. A tua adolescência confia- -te que gostaria que fosses feliz. Que precisa de saber que estás bem. Gostarias de lhe responder que preferes sentir a felicidade dos outros em vez da tua própria felicidade. Calas-te. Sorris-lhe. Percebes que vos pareceis muito um ao outro.

O poder e os abusos

O poder corrompe mesmo? É uma questão que emerge recorrentemente e que alimenta diariamente as nossas conversas. Mas o que é esta alegre potencialidade de ser capaz de impor a sua vontade aos outros ou aos acontecimentos, diz-nos muito sobre a nossa humanidade? E quando falo de “poder”, não aludo ao exercício dessa forma brutal do forte sobre o fraco. Refiro-me mais a esta forma de obrigar pelo cargo que se recebeu, duma autoridade superior ou dum escrutínio, duma delegação de poder que permite decidir. Esta forma moderna, democrática e assumida do exercício do poder dá asas ou sobe sistematicamente à cabeça? Se nos limitarmos aos factos, forçosamente constataremos que sem o exercício do poder, as nossas realizações coletivas seriam bastante pobres. Quando é erigida a ponte 25 de abril, o Burj Khalifa, ou uma nave espacial quando se faz o túnel no Marão, trata-se efetivamente duma série de decisões impostas, delegando, numa cascada hierárquica, uma vontade em múltiplas formas de poder. Neste sentido, o poder é libertador, emancipador dos constrangimentos naturais, físicos e humanos. Quando, inversamente, o mesmo não passa da expressão de opções arbitrárias, é limitador, comprime, restringe, apesar da aspiração geral para a liberdade, que suporta mal esta imposição discricionária da ambição individual. E neste momento coloca-se a questão de saber se o poder é corruptível, se muda, transforma o que o exerce num tirano com pés curtos. Conhecemos todos estes indivíduos que, a pretexto de deter uma onça de poder, usam e abusam sem complexo, muitas vezes para seu proveito, ou para o proveito do grupo a que pertencem. Nenhuma fatia da sociedade é poupada, a empresa, o mundo político, as associações e fundações, as igrejas, todas e todos se encontram implicados neste fenómeno, o poder sobe à cabeça e o que o assume converte-se em déspota, sem temer atingir ou ferir. E não lhes falo das figuras nacionais ou internacionais, dos Staline, dos Hitler, da descendência dos Kim na Coreia do Norte, e de todos estes tiranos sanguinários que esfrangalham o curso dos séculos. Não, sejamos modestos, e olhemos à nossa volta. O nosso chefe de serviço, o nosso eleito local, o presidente da nossa associação, que, a pretexto de que são eles que decidem, impõem uma vontade individual no desdém do bem comum ou da concertação. Perdem a passada, deslizam, prendendo-se à satisfação do seu ego sobredimensionado em detrimento do interesse geral. Então, como pavões, ouvem- -se falar, rebolam-se, e geram à sua volta pequenos motivos de gracejo e troça, mas em murmúrio, o poder que têm sobre nós convida à maior circunspeção. O nosso mundo vibra com tantas palavras detestáveis: “abusos”, «assédio moral», “ riscos psicossociais”, que são a parte imersa dum iceberg cuja imensidão provoca arrepios por todo o corpo. É preciso portanto coletivamente interrogar esta noção, é preciso pôr em causa o poder quando o mesmo é funesto, e instaurar os limites que o contêm no enquadramento justo e íntegro do interesse geral. Não se trata somente duma avaliação, dum desejo piedoso, ou de injunções vazias de sentido, é um projeto de sociedade, duma sociedade democrática e adulta, ou então o verdadeiro poder permanece com aqueles que o confiam de forma temporária e institucionalizada. O direito- direito do trabalho, Constituição, doutrinas- está bem presente para ser aplicado a todos os que, duma forma ou outra, ultrapassam esta delegação para sacar do exercício do poder um interesse pessoal, nem que seja simplesmente egótico. Desta forma sim, o poder corrompe e a este título é preciso encerrá-lo num tecido de regras que permitam ultrapassar os possíveis abusos. Resta a cada um de nós interrogar-se sobre a sua atitude face ao poder, porque todos, somos alvejados por este fenómeno. Em família, no trabalho, nas nossas relações sociais, representamos, cena após cena, uma comédia do poder em que somos os atores implicados. Que nós sejamos vítimas ou déspotas – e podemos ser sucessivamente os dois- devemos questionar- -nos sobre a melhor das formas de usar o nosso poder, poder sobre os outros, poder sobre os acontecimentos, para tirarmos daí partido para crescer e não para nos rebaixarmos num exercício abusivo do mesmo. Há a nossa parte de humanidade, do nosso ser e da nossa vida espiritual.

O poder da vida

Durante muito tempo mantive-me distante desta questão. E nunca fui capaz de responder, talvez um pouquinho, nem sei bem. Mas hoje, persigo, com esta questão da ressurreição, a minha pequena meditação pessoal sobre a possibilidade de acreditar. Tinha- -me parado em tempos sobre a noção do impossível, pensando ser possível pensar o impossível (perdão), e que esta via seria a saída escarpada para um senão e conseguir pelo menos antecipá-la. Mas chego ao ponto de me interrogar: seremos nós capazes de suportar o nosso pensamento? Não será isso mesmo o que chamámos fé? Esta tenacidade no combate de ter de pensar o impossível. Sei que a palavra combate em grego (mais exatamente, o lugar do combate) é agôn, “agonia” em português. A agonia do Cristo é, para mim, este lugar onde devo lutar para suportar o meu pensamento sobre o que é o amor, a morte e a esperança. Pode parecer abstrato mas penso que é o que vivi, como tantas outras pessoas confrontadas com a perda, com o desaparecimento. Havia estes sonhos, meus amigos, estes sonhos recorrentes durante meses, em que se vê a pessoa de quem gostamos e desaparecida toda na sua carne e luz terrestres, com detalhes duma precisão assassina, destes pequenos pormenores que teríamos imaginado indiscerníveis na noite absoluta. O sonho não ressuscita nada nem ninguém contudo, pela queimadura da falta, faz reaparecer o outro de forma exorbitante, impossível. Neste mesmo sonho, o outro perguntou-me o que fazia ali. Era o desaparecido para sempre que se preocupava pelo meu desertar, pela minha errância. Porquê que que não tinha ficado lá em baixo com os outros, com o resto da família e amigos? O que fazia ali, naquele não-lugar? Acordei alagado em suor quando a agonia, a luta, se tornava insuportável. Creio que pelo meu sonho pretendia encurralar a vida na prisão do meu pesar, encontrava-me eu mesmo prisioneiro aos olhos da pessoa que procurava em vão. Muitas vezes, transformamos a vida, mergulhados no nosso desespero, num pequeno prisioneiro. E fixava-me unicamente na ideia de que aquilo que tinha sido possível já não o era, ter- -se-ia tornado impossível. Mas a ressurreição, o seu trabalho em nós, se posso pronunciar- -me deste modo, começa quando cessam os sonhos e as aparições. Crer na ressurreição prende-se com esta reviravolta, aquela que vejo no torpor e deslumbramento das mulheres do Evangelho perante o túmulo vazio. Esta ekstasis (S. Marcos 16, 8) que em grego designava uma perturbação do espírito, um desregulamento e uma inspiração sagrada. Uma revolução do pensamento; já nada é impossível. O impossível já não nos prende. Percebo muito bem que prender-se ao impossível não passava da nossa imperfeição. Das nossas falhas, no sentido original da palavra “pecado” (falhar o alvo). Não nos era pedido acreditar no impossível, mas sim pensar que a vida era, perdurava inteiramente no possível do mundo. O que é radicalmente diferente da perversão do sonho que me fazia crer que o que era impossível se tornava possível. Oh, sei que é muito difícil de apreender, mas direi as coisas desta forma: na fé na ressurreição, não tenho que procurar salvar o ser, um ser amado que perdi. Além disso o sonho indicava-me que, acreditando nisso na minha pena, eu é que pedia desesperadamente para ser salvo pela pessoa que eu pretendia salvar da morte e do esquecimento. Acreditar na ressurreição liberta-me do impossível e entrega-me à vida, ao seu infinito possível. Para falar como S. Paulo na primeira epístola aos Coríntios, é uma questão de poder, que se revela na escuta do outro. Quando percebemos o que nos mostra a fé (na esperança) - são as palavras de Paulo. Como os dois amigos amedrontados após a morte de Cristo e que no caminho de Emaús vão ter a experiência de que Cristo está ainda bem presente possivelmente entre nós. Basta ler, orar, caminhar juntos, descansar juntos, amar- -se, e pôr-se ao serviço dos outros como Ele-mesmo se pôs definitivamente ao nosso serviço. E nada conservar do que foi vivido, mas acreditar no poder que nos faz avançar e viver. Sim, a fé na ressurreição destrói todos os nossos conservantismos. Os do medo, do ressentimento, da angústia e do luto. A ressurreição confia-nos aos possíveis do mundo. O que aconteceu está bem vivo. Não tenho nada a conservar, tudo está aí com a Vida. Oh, não tenho qualquer certeza de perceber muito. Contudo guardo agora esta compreensão da ressurreição: o túmulo está vazio, o que acontece está na vida que se vive. Eu é que tive que me erguer, que me levantar, no possível da vida. E manter assim qualquer coisa do objeto da minha esperança. É a condição necessária para estarmos libertos do impossível.

Obrigado aves do céu

Quando nos aproxima - mos dos pássaros, estes afastam-se. Alguns saltam, outros põem-se a correr, muitos tomam o seu voo. Gostaria de dizer algumas palavras sobre eles, mas com medo de que fujam, falemos baixinho. Recentemente, os especialistas do mundo inteiro publicaram um relatório sobre a diversidade: “ um mundo sem aves, seria…” Este título deixou-me numa tristeza tão profunda que me pareceu mesmo excessiva. Mais triste me senti ainda quando vi que o meu país também fazia parte do estudo. Sobretudo que na minha infância vivi íntima e harmoniosamente com o meio rural onde abundava a passarada. Desde há décadas que se fala do desaparecimento das espécies, do empobrecimento da natureza, da ameaça sobre os recursos naturais; constata-se uma destruição com peso e medida, a das florestas, dos solos, dos mares, do ar, do mundo animal… Como há também esta invisível destruição do nosso equilíbrio íntimo que pretende que, para suportar o destino, necessitamos de tudo o que vive e particularmente dos animais. Confidentes sem o saber, aliviam o nosso fardo e apoiam a nossa marcha, até a encantam. Não sei de nada, mas abrigam qualquer coisa de nós mesmos. Não os deixemos fugir. A tristeza habita todos os países e todo o género humano. E o fenómeno parece agravar-se a um ritmo muito acelerado. A estimativa é que de ano para ano esta aumenta um por cento; da tristeza e do ódio juntamente com a ausência de alegria. A esta velocidade de propagação, não vai demorar que nos atiremos todos pela janela do céu, à procura dum buraco negro que nos acolha para nos libertar dos problemas que nos desassossegam e que resume a palavra: existência. No palmarés mundial, os países mais pobres parecem ser os países ivadidos pela Guerra, o sorridente continente latino-americano sabe levar a vida apesar de todos os defeitos dos regimes que sofre, da fome que perdura e da violência permanente. Ao lado do pequeno monstro omnipresente e invisível que invade os nossos dias, a perda da biodiversidade é também uma das causas maiores do nosso blues atual. A crise das espécies, que faz com que um milhão de entre elas esteja ameaçada a curto prazo (antes do fim da nossa própria vida!), assusta toda a humanidade. Quando se fala da ausência da alegria humana, não podemos impedir-nos de invejar os pássaros sobreviventes do desastre que saúdam cada aurora nascente com os seus chilreares alegres. Acreditam no dia que começa, acham que o que se segue será bonito, que terão grãos caídos para apanhar e que os congéneres que, de longe, os saúdam serão simpáticos e companheiros. Com o aproximar da bela estação, lembro-me, com saudade, duma tardinha e dum longo passeio pelo campo, um pouco fastidiosa, com o tempo algo húmido. Mas chegou a hora em que certos pássaros, que até ali se mantinham em silêncio, se puseram a cantar. Será que se preparavam para anunciar o anoitecer? Ter-seiam apercebido da noite iminente? O vento tinha caído, até ali fazia tremer a copa das árvores, sentiriam que o seu canto tinha ecos longínquos e que era o momento de dizer o que haviam que declarar? Ou estavam a prevenir os seus semelhantes do lugar em que se encontravam, estariam a avisá-los da nossa passagem, informariam a colónia sobre um lugar identificado de nova pescaria? O cortejo sonoro dava ao campo a sua densidade, às árvores a sua altura, aos caminhos a sua razão de ser. Apeteceu-me dizer-lhes “obrigado, aves do céu”. Porquê que não somos como as aves do céu, disponíveis para esta alegria nativa, para esta despreocupação evangélica, em suma! Porém, temos de ser invadidos pela inquietude do nosso futuro comum, desta “ sexta extinção” que nos anunciam para o fim da nossa caminhada quando, todas as espécies tendo já desaparecido, só nos restará descampar quando chegar a nossa vez piedosamente em direção à saída definitiva, deixando o palco livre para os seguintes – mas que seguintes? A morte individual não é nenhuma novidade na terra. Estamos prevenidos desde a origem, contudo o que ignorávamos, é a hipótese da morte coletiva, universal, o desaparecimento de todos juntos. A nossa nave de loucos vai certamente afundar-se, teríamos estado prevenidos. Difícil, à espera, de assobiar como um pintassilgo feliz ou viravoltear como um latino a dançar.

Não o reconheci!

“Este rosto éme completamente desconhecido.” Eis a fórmula, que agora pode substitui a inversa, a de antigamente quando encontrávamos uma pessoa raramente vista mas algo familiar, arriscamos a fórmula que funciona sempre, hoje inusitada desde que o Covid a impediu, e aboliu mesmo as nossas capacidades de visão e reconhecimento facial: “Esta cara não me é desconhecida”. Por pouco que os fulanos encontrados na rua consintam em equipar a parte inferior do rosto com a famosa “máscara” que se tornou o tema central das nossas conversas e o centro das nossas preocupações, ninguém vê ninguém quando nos cruzamos. Não passam de testas mais ou menos cheias, rugas sem significado, têmporas estriadas pelos elásticos de diversas cores, orelhas contidas, óculos embaciados que deslizam pelo nariz. Bochechas ausentes, nem cheias, nem magras. Cabelos ao vento como se procurassem o caminho. Por conseguinte, os nossos contemporâneos, através do rosto, perderam uma grande parte da sua personalidade e, poder-se-ia dizer, o essencial do envelope corporal. Diógenes que procurava um homem ter-se-ia talvez perdido completamente no meio da multidão e só teria encontrado silhuetas sem asperezas. Com a dissimulação dos traços que nos destinguem, só vemos zombis similares. Nos tempos felizes anteriores ao Covid e da invenção dos “ gestos -barreiras”, cada encontro era a ocasião duma nova descoberta dos nossos semelhantes através do olhar. Parecia-nos ter a ilusão de ver desde logo de quem se tratava. Rostos abertos joviais e simpáticos, semblantes fechados, caras bonitas, boa pinta, rostos bondosos, caras lisas, peles de pêssego, marcas de antigas borbulhas, artifícios à base de UV, peles envelhecidas, tudo era rosto. Os rostos tinham um carisma; e que belos rostos por vezes! Assim, sem forçosamente gostarmos de toda a gente gostávamos de nos ver uns aos outros, nas nossas semelhanças. Hoje escondemo-nos uns dos outros como ladrões que procuravam fazer-se perdoar pelos delitos cometidos. O que procuramos dissimular com esta invisibilidade organizada e universal dos nossos rostos? Restam os olhares alcançados pelos únicos sobreviventes deste imenso jogo nacional de esconde-esconde. Confirmam ao mesmo tempo a sua utilidade, por vezes o factício do que aparentam revelar. Cruzam-se todo o tipo de olhares. Os das crianças, estupefactas, nos seus carrinhos, por cima do tecido, qualquer coisa de humano. Há olhares acolhedores e amáveis, encorajadores nos piscares da pálpebra em forma de convidados. Outros completamente bloqueados, como se proibissem a passagem a uma qualquer intimidade. Há olhares duma indiferença granítica e duma frieza de ciclope. Estes olhos, única parte visível do iceberg dos rostos, transportam todos os sentimentos de que ainda somos capazes. Por vezes distinguimo-los húmidos ou orvalhados, marcas do drama duma vida. Cruzamos olhares brilhantes, traços de intensos momentos de felicidade. A verdade da observação é que a maior parte parecem apagados duravelmente, como desligados. Nem nos fixam um momento que seja. Deslizam como a água nas penas dum pato e passam a outra coisa. Já não se troca qualquer tipo de amabilidade através dos olhos, apenas sentimentos pesados que traduzem mais o desespero do que a alegria do encontro. Olhares mauzinhos abatem-se sobre os que não trazem máscara. Olhares enfurecidos quando por inadvertência uma pequena falha lhes molha o vestido ou o casaco. Contudo sejamos objetivos e não tenhamos um olhar unicamente negativo sobre as pessoas que cruzamos nestes tempos de pandemia. Vemos também muitos olhares simpáticos e mesmo divertidos, alguns que só esperam a possibilidade duma pequena conversa como no balcão dum bar. Não, o que mais falta faz ainda, na impossibilidade de mostrar o rosto completo, são sobretudo os sorrisos. A qualidade do olhar nunca poderia compensar a força e pertinência dum sorriso acompanhando os lábios na sua manifestação de contentamento. O sorriso é o que mais falta faz à nossa sociedade, aos nossos contemporâneos mascarados, fantasmáticos. Poder-se- -ia imaginar um mundo privado do sorriso até ao fim dos tempos? Seria um inferno de glaciação relacional. Uma ausência total de intercâmbio de sentimentos positivos nas relações interpessoais. O universo sem sorriso seria inabitável, mal-humorado. Sufocante. Como é que as crianças poderiam adivinhar que a vida tem o seu peso grande de alegria quando não poderiam nunca mais ver desenhados os sorrisos dos pais?

À procura do abraço perdido

No passado dia 21 de janeiro, dever-se-ia ter festejado o dia internacional dos abraços. Não instaurado este ano o que, tendo em conta as distanciações sociais de rigor, trairia para os seus inventores um lamentável humor negro. Teve origem nos Estados Unidos há trinta e cinco anos pelo reverendo Kevin Zaborney. Este religioso sonhava ver a população inteira dos Estados Unidos a abraçar-se, convicto pelas recentes descobertas científicas de que um abraço durante vinte segundos desencadearia nos abraçados uma segregação de ocitocina, hormona do bem- -estar. O reverendo foi confrontado na sua escolha com revelações meteorológicas que previam que no dia vinte e um de janeiro seria atingido o pico das depressões invernais. Era preferível, conclui ele, apertar um desconhecido nos braços a tomar um Xanax num copo de whisky. Ele mesmo beneficiaria da euforia da nova instituição mais recente do feriado de vinte de Janeiro, em honra do pastor Martin Luther King e da sua pastoral que se estribava na não-violência. Rapidamente, a iniciativa deste movimento público de ternura geral seduziu outros países. A Austrália, o Reino-Unido, a Alemanha, a França, a Polónia… Em Portugal temos o dia do abraço a 22 de maio. A verdade é que o reverendo americano não foi o único pioneiro na matéria. Mais ou menos na mesma época, uma Indiana, Mata Amritanandamayi, “Mãe da Plenitude imortal” sentiu a mesma intuição e criou a ONG ETW. Pôs-se a curar e pacificar ela-mesma o espírito humano, abraçando incondicionalmente e por todo o mundo. Terá abraçado, só no ano de 2017, 37 milhões de pessoas pelo mundo fora, todas elas se teriam encontrado algo “ perturbadas”. É claro que teria de haver controvérsia à volta deste guru e das suas ações caritativas. Porém, as críticas e acusações nunca infirmaram o poder reparador das embaixadas do coração e das almas dos homens, sejam quais forem as suas origens. E não é neste momento, em que nos sentimos cruelmente privados desse afeto, que vamos contestar o poder deste contacto que nos parecia, ainda ontem, tão banal e por vezes mesmo constrangedor. Talvez nunca mesmo, se tenha sentido uma necessidade tão forte, tão urgente. Ah! Estar de novo pertinho do fôlego de outra pessoa, agarrá- -la, apertá-la contra si em intermináveis efusões de amizade e afeto! Ah! Um pouco de ternura por fim! Um pouco de calor e ternura, de corpo inteiro, sem medo do outro. Porque não é na ternura que encontramos nesta calorosa manifestação física do abraço amigo? Uma inclinação para a delicadeza, e por conseguinte uma disposição de espírito infinitamente superior à da retribuição e da violência, que é anulada com um simples sorriso. Há na ternura a expressão suprema da inteligência – a lucidez. Esta manifesta um autodomínio, a contenção dos nossos mais baixos instintos; a violência e os seus inúmeros avatares- o ressentimento, o ódio, a maledicência, a inveja. Inspira-nos a doutrina de Jesus “porque Eu sou manso e humilde de coração”. Na verdade, estas são duas virtudes inseparáveis. Econtra-se entre as bem-aventuranças:  “Bem- -aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra” (Mt 5,4). Como é simples imaginar a estupefação das multidões perante este anúncio, a insolente revolução dos corações que esta não deixa de suscitar desde há séculos! Na idade média, inspirou o amor cortês erigindo-o como qualidade de vida, uma arte da delicadeza e de respeito pelo outro. Algo inspirado pelo amor confundido com a nobreza da alma. Uma serenidade que não tem nada de adocicado, mas toda uma firmeza, de humildade, de caridade, «a amabilidade própria à verdadeira sabedoria que vem do alto” dizia S.Tiago ( Tg. 3,13). Este dia mundial dos abraços convida-nos a esta serenidade, e a meditar sobre ela, sobre as suas virtudes, neste período de violência extrema e crescente, e de grande solidão. A deixar-se converter por ela, a rogar-lhe que nos torne mais lúcidos, li ou ouvi: “ Fecham- -se os olhos dos mortos com ternura, é também com esta ternura que é preciso abrir os olhos dos vivos”.