Depois das máscaras

PUB.

Azuis, brancas, pretas. Aí estão elas no chão, jazendo no seu pequeno espaço urbano tendo caído no passeio. Negligenciadas ao serem tiradas duma carteira ou dum bolso demasiado cheio, lançadas dum automóvel colado ao passeio. As máscaras de todo o tipo de tecido e de forma. Bicudas ou lisas, para serem cravadas na parte inferior do rosto que aspira a respirar o ar puro das cidades e dos campos. As máscaras virão a cair muito em breve, o verão tendo passado por aí, tudo não passará duma má recordação. Péssima recordação tendo emoldurado por mais ou menos dois anos a memória dos portugueses. Recordação de polémicas maiores e indignadas no início, quando escasseavam, quando, tendo compreendido que os enormes stocks tinham impunemente desaparecido, demo- -nos conta que seria preciso adquirir mais máscaras, e não em pequena quantidade: dezenas de biliões à China promovida imperatriz do Centro dos nossos rostos. As nossas caras furiosas e vergonhosas então a amaldiçoar a “nulidade” das autoridades incapazes de no- -las fornecer em pequenos pedaços de tecido com uma utilidade discutida. Depois foram vertidas sobre todo o país, como sobre o Egito das pragas, nuvens de grilos peregrinos de todas as cores. Foi preciso trazê-las em todo o lado. Tornava-se a arma mágica essencial, obrigatória contra o maldito vírus. Uma arma substituída por fim na preocupação de uns e de outros pela imperiosa necessidade de vacinação. Os diatribes mudaram de objeto mas em nada de intensidade. Houve, depois da penúria das máscaras, penúria das doses, das doses boas, eficazes e seguras. O debate durou longas semanas. Toda a gente, tendo- -se posto a usar máscaras para cobrir a boca não percebíamos nada sobre o que diziam os peritos nas televisões. Não percebíamos nada tampouco das injunções contraditórias nem das afirmações opostas. Ao acreditar que alguns defendiam tal marca e outros defendiam a sua concorrente preferida. Foi assim que, saltando de pedra em pedra por cima dum riacho de montanha acabámos por nos encontrar perante este novo debate embaraçoso, neste último início de verão: até quando perdurarão este raio de máscaras nos nossos rostos doentios? O facto de se ver sem elas significaria o fim da pandemia. Deste modo foi lançada a última polémica opondo os avisados, os prudentes aos impacientes que não se viam bronzear somente a metade do rosto. Assistimos às últimas bufadas delirantes à volta destas máscaras cuja ausência insuportável e o desaparecimento desejado enquadram a vida do nosso país desde há muito tempo. Figuravam, retrospetivamente, estas máscaras cariátides como dois prensa livros numa cheminé, mantendo em pé livros de horas, das memórias de confinamento, de trabalho à distância, dos (re)confinamentos. O primeiro capítulo tinha como título o “ Negócio das máscaras”. O último poderia ter tido exatamente o mesmo título. De pedra em pedra e destas duas sequências iniciais finalmente só recordaremos as máscaras. Não somente máscaras, mas máscaras sem fim como se chovessem máscaras por todo o lado. Qualquer dia, sem máscaras por fim, sem a preocupação de colocar a máscara no rosto, por fim! Entretanto, dezenas de agonias invisíveis de humanos que nós teremos deixado morrer sozinhos cheios de tubos, sem máscaras auto-portáteis. Mortos que nos terão deixado completamente à beira do poço fatal onde as nossas ambições terminam sem recuperação. Só nos resta o murmúrio lancinante e as lamentações dos defuntos que terão partido antes de nós. Terão eles até ao fim, atrás do acrílico de proteção das suas câmaras fúnebres e brancas, ouvido o zunzum das nossas querelas, o bombardeamento mediático recorrente das nossas maldades, dos nossos insultos e golpes baixos?

Adriano Valadar