class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-taxonomy page-taxonomy-term page-taxonomy-term- page-taxonomy-term-95">

            

Adriano Valadar

PUB.

Uma carta!

Há trinta anos, não tinha endereço email, nem caixa do correio tampouco, nem computador; tinha uma morada onde podia receber cartas. Para escrever uma carta, pegava numa folha que comprara numa livraria, às vezes folhas de diferentes cores, com a minha parker oferecida num aniversário, e que carregava com tinta preta ou azul, mais tarde com as recargas pelikan que são estandardizadas. Seguidamente escrevia, querido tio, estimado amigo, queridos pais, estimado vizinho … Era preciso um certo tempo para escrever uma carta. Não era uma obra, era menos do que isso e era mais do que isso, porque colocava no papel algo de sentimental, num gesto ao mesmo tempo íntimo e universal, importante ou superficial, fosse ela curta ou longa. Através duma mensagem, contava uma história. Por vezes apagava, por vezes reescrevia a fim de melhorar um pouco o estilo, tornar o pensamento mais preciso, formular de forma mais concisa. E também para evitar demasiadas rasuras, rasgava e recomeçava. Depois pegava num envelope, colocava a morada, colava um selo que havia tido o cuidado de comprar antes. E levava- -a aos correios, a uma caixa de correio onde estava inscrita a última hora de levantamento, ou a um marco no exterior. A carta partia, chegava, mais ou menos depressa, para um país estrangeiro, podia levar algumas semanas. Ah. no seminário, em Cucujães, tínhamos todos um amigo virtual em Moçambique ou Angola com quem corrrespondíamos, o meu correspondente tinha uma caligrafia perfeita e invejável. Talvez por essa razão ainda tenha hoje uma pequena paixão pela caligrafia. Não sabíamos quando é que o destinatário a recebia. O processo completo (compra, escrita, envio) levava algumas horas. Nessas cartas, falava da minha vida, dava notícias, talvez banais, também as solicitava, falava dos meus sentimentos, era capaz de descrever as minhas atividades dum dia completo, quando os dias ainda eram longos, contar tudo o que fazia. Escrevia a amigos que tinham emigrado, a alguns que se mantinham na aldeia. Escrevia ao meu pai em França, à família ou timidamente a alguma rapariga que me despertava interesse. E lembro-me da alegria de receber uma carta, quando ela é assim bem pesada, inchada dentro do envelope e onde há leitura. A excitação no momento de a abrir, sem a rasgar, e lê-la, e relê-la, dobrá-la, desdobrá- -la, guardá-la, olhar para ela ou queimá-la. Algumas cartas dizem o amor. É um prazer lê- -las e relê-las. Há este tipo de cartas que só se recebe uma vez na vida. Há-as que são sinceras, apaixonadas e sedutoras. Outras recheadas de repreensões e azedume. Outras ainda, anunciadoras de algo novo. Há- -as visionárias e algo loucas. Há aquelas que nos derretem. Através duma carta, duas pessoas singularizam-se numa forma de introspeção, para manter uma relação, para se manter em contacto, para dizer que pensam uma na outra, que precisam uma da outra, e esta ausência materializa-se pela carta. Quantas cartas eram lidas às esposas dos emigrantes, quantos casamentos aconteciam a partir dessa correspondência epistolar. Isto é muito forte. O papel estala, e ao abri-la, é como se se espreguiçasse, feliz pela felicidade de ser desdobrada. Alguns anos mais tarde, quando as relemos continuamos intrigados, surpreendidos e emocionados. O papel, espesso, resistiu, a escrita da caneta permanente com as letras bem ligadas e um pouco inclinadas mantem-se legível; denunciam o tempo que passa, a tinta que se apaga, as letras rodadas soltas e desvanecidas. Adivinham- -se certas palavras que se vão tornando quase invisíveis e se tornarão pouco a pouco uma espécie de palimpsesto só meu. Acaricio o papel já algo amarelado, vejo-o de forma transparente, cheiro-o, respiro-o, e é toda uma vida que regressa; à imagem da madalena de Proust. Uma carta é verdadeira, é autêntica, é real. Agora, a minha caneta dorme no seu estojo, e espera que lhe pegue e a acaricie novamente. Mas, para quê enviar cartas? Nem sei já muito bem o que contava nelas: passo bocados a responder aos emails. Não tenho muito tempo, nem vontade de escrever uma carta, não sei a quem escrever, não tenho força para ir buscar um selo, um envelope, nem ficar na fila nos correios. Até estes se fazem raros e distantes. Para quê sair à rua para enviar a minha missiva, quando posso escrever um email, e num pequeno clique enviar a mensagem para outro endereço email, instantaneamente? Hoje, não vou escrever nenhuma carta, contudo, gostaria tanto de as receber.

Aí estão as férias, não me esqueço de nada?

Cadeiras de praia e biquínis nas montras, publicidades sobre mares e praias mais do que azuis e longínquos, embarcações para Cítara, librarias ornadas para as leituras de verão. As férias estão aí novamente. Cuidado com a partida, com o voo! Há já umas semanas que o comércio organiza, com o seu habitual e incurável cinismo, a nossa amnésia sazonal, fazendo da areia das praias o assunto da atualidade. Ocultando a guerra, esquecidos do estado da crise iminente, das derivas políticas, das vociferações da ágora, dos desastres ecológicos. Por alguns instantes pelo menos. Concordamos evidentemente. Ignorantes para a ciência, seduzidos pelo conforto. Acontece comigo e com os outros. Desejamos todos esta subscrição periódica à leveza, esta atração por uma pausa tranquila e lúdica. Como é possível resistir às delícias da ilusão oferecidas por este ciclo de juventude – as férias grandes, essa viagem sazonal que traz sempre recordações, ao entusiasmo picado pela nostalgia? Não aparece sempre, no momento da partida, alguém que embarca connosco, a criança que fomos e as suas palpitações? E depois, será possível agir doutra forma? Podemos imaginar mergulhar nas ondas e sonhar que outros se encontram mergulhados sob as bombas e permanecer inocentes?

Para acalmar os remorsos que sentimos, sem nos privarmos dos nossos passatempos claro, é-nos oferecida a possibilidade de aprender a ser resilientes como o metal que dobra com a força dos golpes, mas que não parte, até se apruma. É para ver a ausência de lucidez da natureza humana e a pouca consideração pela sua casualidade angustiante e necessária desenvoltura, o que Kundera chamava a insustentável leveza do ser, a que, no fundo, nos couraça e nos permite sobreviver a tudo. Alguns recusam-no, e vão salvando a nossa honra. Os santos, os heróis. Seríamos iguais se decidíssemos fazer greve às férias? Despirmo-nos desse peso, entrar em ascese, cobrirmo-nos das cinzas? Porque não há um meio-termo, o pior de tudo é a lição de moral dada aos outros para nos libertarmos do peso da consciência, a um preço mais baixo.

Não farei isso tampouco. Não entrarei em ascese. Não rasgarei o peito para oferecer o meu coração sangrento e sinto-me impotente e infeliz por essa razão.Vou, portanto, abster-me de me dar lições de moral a mim mesmo partindo do princípio, é claro, que me encontro do lado da virtude. Vou de férias eu também, à sombra, ao calor do meu casulo familiar, atento a que seja preservado o sorriso dos meus filhos e netos, e tentando afastar para longe deles e de mim, os horrores da atualidade. Alguém dizia: “o santo intercede com a sua oração, o pecador com o seu pecado”.

E eu que tinha vontade de vos contar quais as leituras que mais me embalaram, que espetáculo me havia entusiasmado, tomado pela euforia da partida, lembrar aos apaixonados pela música alguns espetáculos ou exposições a não peder, e dizer-vos que os passeios a pé ou bicicleta são uma forma interessante de melhor usufruir dos espaços e lugares a visitar. Que as costas marítimas oferecem a embriaguez do abandono à pulsação do cosmos. Apetecia-me contar algumas anedotas das minhas transumâncias passadas, de carro e autocarro, o prazer dos encontros com os amigos e com a família, porque também são iguais às vossas e que há qualquer coisa da ordem da comunhão quando, juntos, desfolhamos as recordações à maneira dos malmequeres. Perguntei-me a mim mesmo se tinha esse direito, tendo em conta tantos acontecimentos e dramas.

Seguidamente dei-me conta que era preferível falar do mar, do verão, das colheitas, dos prados e das horas de serenidade. Que lembrasse tudo isso com este espírito de criança, a fim de o alimentar, e lembrar o porquê de nos levantarmos cada manhã - tentar destilar um pedacinho de felicidade e imaginar poder transformar o mundo num lindo jardim. Que tenha entusiasmo e razões para falar desse assunto. Para que essas horas de deliciosa despreocupação que esperamos exatamente das férias, iluminem as encostas do nosso vale de lágrimas. Mas necessitava de algum tempo de recolhimento.

Fica para o regresso.

Homenagem ao Dr. Eduardo Santos, Diretor do AE Emídio Garcia

A “A tua família, os teus amigos, os teus colegas, todos os que te conheceram e apreciaram, todos estamos presentes para te prestar esta última homenagem. Partes antes de nós, muito cedo, demasiado depressa … e o teu desaparecimento lembra-nos o quanto somos bem pouca coisa e que é preciso usufruir de cada segundo, de cada minuto enquanto estamos aqui por baixo. Por mim, fiquei muito feliz por me teres concedido alguns pedaços de vida. Tu, sabias fazer muito com pouca coisa, sabias cultivar a amizade. Como esquecer o amigo fiel e generoso, o colega apreciado, sempre fiel ao seu lugar, sempre positivo, otimista, e que trabalhador! Ser-nos-á necessário muito tempo antes de realizar que partiste, que não refaremos o mundo, nem a escola que era o teu “locus amoenus” e por quem deste tanto. Os nossos encontros mais banais, mas tão saborosos guardarão o ruído dos teus passos. Alguns testemunhos escolhidos arbitrariamente: “ Até sempre Eduardo…Não tenho palavras para expressar o pesar e a tristeza por esta súbita partida. Ficam as saudades do que passámos, do trabalho e da segurança que sentíamos, da confiança que transmitia, da superior humanidade e amizade que nunca regateava. Partiu um homem bom…”; “ Excelente diretor, grandíssimo amigo. Fica uma dor imensa. Mas há-de ser lembrado pelo seu companheirismo, disponibilidade, e alegria”; “ O Eduardo sem ser perfeito, era um ser humano bom. Muito humano, com uma capacidade de trabalho extraordinária, inteligente, disponível para ouvir, bom companheiro e amigo do seu amigo. Paz à sua alma” . Eu, como não tenho palavras, deixo uma citação da pequena bíblia que tenho na mesinha de cabeceira e que dispensa apresentação tal é a sua relevância e tantas são as suas polifonias: “ … As pessoas têm estrelas que não são as mesmas, Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Tu porém, terás estrelas como ninguém… quero dizer: quando olhares para o céu de noite (porque habitarei uma delas e estarei a rir), então será como se todas as estrelas se rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! Assim, sentir-te-ás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá). Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa. Por gosto… e os teus amigos ficarão espantados ao ouvir-te rir olhando para o céu. Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!” Deixas um vazio enorme atrás de ti Eduardo. E é com muita tristeza e compaixão que apresentamos os nossos mais sinceros pêsames à tua esposa e colega Céu, aos teus filhos e familiares para lhes testemunhar o nosso apoio neste momento tão doloroso. Sem esquecer toda a comunidade educativa do Agrupamento de Escolas Emídio Garcia que ficam órfãos dum bom homem e dum excelente Diretor. Até sempre Dr. Eduardo.”

Falai com os vossos filhos!

Conversando com as pessoas mais velhas, não é difícil descobrir que alguém, um parente direto mesmo; um avô, tio, tia, tiveram um passado perturbado, ou de órfão, ou que fora mais ou menos abandonado, e consigo hoje medir e sentir o peso do segredo, por vezes o poder da vergonha, as repercussões desta infelicidade sobre toda uma genealogia, quando tudo isso é silenciado. E digo para mim mesmo que se somente … essas crianças, esses adolescentes “assistidos”, esses jovens adultos tivessem tentado falar, ousado contar de donde vinham, o seu percurso, tudo aquilo que atravessaram, teria sido uma confissão, um diálogo aberto e um alívio para todos. E hoje sinto a vontade de dizer, a cada um de entre nós e quaisquer que sejam os passados, a família, o percurso, a cada um de entre nós apetece-me dizer: falai com os vossos filhos. Falai com os vossos filhos, dizei-lhes donde vêm, dizei-lhes que cada destino carrega a sua coragem, as suas feridas e a sua nobreza. Dizei-lhes que todos somos mais ou menos corcundas, que ninguém é verdadeiramente campeão, nem mesmo aquele que recebe medalhas, prémios, votos, não há ninguém sem as suas lutas nem derivas, toda a gente têm dúvidas e vacila, toda a gente um dia ou outro dança num só pé, perde o equilíbrio, toda a gente num momento da vida levanta os olhos para o céu e fica com vertigens, e treme e se agarra aos ramos, às convicções, ao apelo das sereias por vezes, aos falsos profetas e aos verdadeiros sábios. E seguidamente de tempos a tempos, também se escuta com alguma confiança, ouve os seus próprios murmúrios, as suas intuições e os seus desejos mais inesperados. E lança-se de corpo e alma na aventura duma vida. Falai com os vossos filhos, dizei-lhes que eles vêm de algures. Que desde sempre o homem viaja e passa e ultrapassa fronteiras, na alegria e na pena, legal ou ilegalmente, o homem procura sempre fugir para salvar a pele, reencontrar os seus ou descobrir o mundo, percorrer, escapar-se, evadir-se, quer-se e por vezes crê-se livre, e por vezes num instante de resplandecência e luz, é-o. Dizei-lhes que é o direito inalienável de cada ser humano de ser deste lugar e doutro mais, do mais distante dos traçados oficiais, das montanhas e dos mares, das pontes e das barragens, dizei- -lhes que somos todos de sangues misturados, todos o resultado de cruzamentos sucessivos e selvagens, incontroláveis, surpreendentes nesse aspecto, magníficos. Dizei-lhes que nenhum de entre nós nasce por acaso, mas sim pela surpresa, e que se alguns não foram desejados, a revolta é possível. Dizei-lhes que cada ser humano nasceu para nos surpreender, para nos mostrar algo diferente, e que com eles, construímos a fabulosa aposta da diferença. Dizei- -lhes que nasceram de relações apaixonadas ou aventurosas ou fugazes, ou brutais, arranjadas ou pouco razoáveis, mas que estão bem presentes, e que o mundo esperava por eles. Dizei-lhes que têm todo o direito de dançar nos passeios, de cantar à chuva, de seguir a sua própria melodia, a sua comédia musical mais íntima. Ensinai-lhes os contos, as fábulas, os mitos, e as lendas familiares também, contai-lhes, não são mentiras, são a trama do tecido duma família, dum grupo, dum casal, duma aliança. Sede generosos! Contai-lhes as epopeias, histórias de coragem e valentia. Contai-lhes os livros que vos transformaram, cantai-lhes as canções que ouvistes aos vossos pais, e antes aos pais deles, fazei- -os ouvir música, as narrações das quais são feitos os vossos sonhos, as utopias que nunca abandonastes, tudo o que vos embalava na vossa infância e adolescência, todos os possíveis, lembrai-o, encontrai o poder da exaltação. E depois dizei-lhes que são bonitos. Que não esperáveis tanto, que não esperáveis nada, mas que os esperáveis a eles. Dizei-lhes para não ter medo. Dizei-lhes que as contradições e reviravoltas da vida não são erros, que as hesitações não são fracassos, e que é preciso de tudo um pouco para fazer um mundo; solitários e chefes de fila, líderes e sonhadores, desertores e entusiastas, derrotistas e perfeccionistas, contemplativos, hipersensíveis, homens e mulheres de acção, maratonistas e apaixonados pelo vagar. Dizei-lhes que os amais. 

Desejos de primavera

Chegou desta vez no meio da chuva a que anuncia a epifania das cores; amarelas em primeiro lugar nas flores de forsítia, os pompons da mimosa e a trompete dos narcisos. Há já alguns dias, a primavera pinta de cor- -de-rosa as bochechas envergonhadas dos transeuntes. Agudiza o grito das crianças, assim como o passo mais largo dos que passeiam e acalma o passo dos namorados. A primavera, finalmente! A primavera, como uma embriaguez. Este ano mais do que nunca, sentimos subir em nós a jovem seiva, pretendemos ficar aturdidos. Eis-nos objetos consentidores duma metamorfose que toca tudo o que vive, tudo o que cresce, tudo o que vibra. A primavera, deleita-nos vê-la em ação, no poder arrebatador das tonalidades verdes por todo o lado em fusão, e a explosão vegetal dos rebentos. Respira- -se o seu perfume de violeta. Ouve-se no bico dourado dos melros, e no canto de tantos passarinhos irrequietos e velozes. A brisa larga da primavera arremanga-nos a alma. A transparência dos céus de abril dá- -nos uma leveza, parecidos às bolas de praia. Eis-nos ligados a uma realidade mais alta – o renascimento para o qual nos sentimos todos convidados, e ao qual condescendemos todos a partir dum novo fôlego. É que tudo se torna noutra coisa que aquilo é – uma promessa, uma subida, um regenerar completo. A primavera lembra-nos que a beleza da vida renascente duplica-se sempre de outra beleza, a que cria o jogo profundo das correspondências com a natureza, com toda a criação. Sente-se mais profundamente a oposição entre a noite e o dia, a relva e o gelo, as brumas e o sol, a vida e a morte. Ah, a primavera! Quanta felicidade na sua celebração por fim, deixar-se intoxicar pelo seu vigor. A primavera, esperamo-la contagiante. Pedimos para que dê aos que partiram para o combate em guerras absurdas o desejo bem mais vivo de se alegrar perante a vida que lhes foi concedida. Sonhamos que toque, pela sua juventude, tão tenra, dos soldados russos e que abandonem então, como quem deixa os sapatos à beira mar, as armas, os uniformes, que desobedeçam às ordens que recebem. Que a primavera lhes traga com a sua brisa leve algo da sua força, que perturbe os suspiros das namoradas tão longe no seu país. Que os contamine com a doçura dos sonhos, com as agitações da longa espera e do fogo do desejo de serem livres e felizes. Alguns de entre eles, pretende-se que já teriam sido atingidos, que se demarcaram da solidariedade com Putine. Apelam ao fim da guerra. Segundo um responsável da defesa, dois ou três batalhões “ teriam deliberadamente furado” os reservatórios dos veículos para evitar ir combater. Outros teriam sabotado os tanques. Outros teriam fugido das suas unidades para não disparar contra as melícias, prontas a defender até à morte a proximidade das maiores cidades da Ucrânia. Satisfaz-me dizer que no ressurgimento da primavera, na carícia dos seus mornos raios de sol, perante o trigo em erva ainda, outros soldados serão tentados a desertar e correr para a vida. Penso para mim próprio que foi por esta razão – convencer os soldados de que a primavera só pode ser a estação em que tudo é amor – que se apresentou este ano um dia mais cedo. O equinócio não aconteceu dia 21 de março como o anunciam os nossos calendários, mas sim dia 20 de março, às 16 h 33 exatamente. Foi nesse dia, a essa hora precisa, que o Sol se alinhou com o equador, com a perfeição que exige o equinócio. Mas porquê este desvio no calendário? A Terra gira à volta do Sol como um aro colorido à volta da cintura duma menina. E como acontece com o aro, a Terra escorrega por vezes um pouco mais e desvia-se da elipse perfeita do seu eixo. Estas fantasias giratórias perturbam as estações. “Temos de nos habituar. O fenómeno deverá durar muito tempo; a próxima vez que a primavera cairá dia 21de março, será em 2102, e tendo sido inventados os anos bissextos para corrigir estas diferenças horárias astronómicas, estes não poderão fazer nada”, dizem os astrónomos. 2102 ! Dentro de noventa anos! Terão ouvido bem os soldados que vivem e lutam hoje, a injunção de Vladimir Jankélévitch : « Não percais a vossa única manhã de primavera”.

Avô

O que é isso, um avô, uma avó? É um simples facto. Alguém teve um filho que teve um filho. Lógico, Biológico, em francês diz-se “ Grand- père”, grande, que não tem nada de grandioso. Porém, este acontecimento não tem nada de anedótico. Porquê que o Pai Natal, ou o S. Nicolau, e Deus mesmo no teto da capela Sistina, têm traços de avós? O quê é que nos tranquiliza tanto na figura dos avós? A Heidi teria sido tão popular sem ter ao seu lado, a presença ao mesmo tempo rude e doce do avô? Se, para viver a sua vida ano após ano, basta amá-la tanto para não a interromper, consentir a tornar-se pai supõe um amor mais profundo: ama-se a vida ao ponto de, não somente a conservar, mas de a dar a alguém. O avô foi mais longe, sem mesmo se dar conta: amou tanto a vida a ponto de a conservar até aos velhos ossos. Seguidamente para a dar, enfim, ô milagre, para gerar no filho a vontade de a dar por sua vez. O avô, somente pela sua presença, deu a bênção à vida três vezes. A minha esposa conta que passava horas com o seu avô materno, no campo, ou somente a olhar para ele. A sua avó, diferente, nas suas tarefas domésticas e a cozinhar os pratos que ainda continuam a ser as suas/nossas madalenas. A sua presença, a sua existência, bastavam para recordar que a vida é boa. Deus o Pai, quando cria o homem e a mulher, e através deles todas as gerações, não diz somente que isso é bom, mas sim “muito bom”, “ Deus o Avô” portanto, que se apraz a viver e a dar a vida, a criar filhos que farão filhos! Vitor Hugo teve ao seu encargo os netos, cujo pai acabara de morrer. Retirou desse acontecimento uma coletânia de poesia: A arte de ser avô. É a arte de ceder face à inocência infantil, encantar-se pelo seu encanto. Esta arte não é uma técnica da qual qualquer pessoa poderia apropriar-se. Se há por vezes avós de substituição, não existe avô profissional. O seu lugar é indicado pela história familiar. Mas é um lugar que deve ser tomado. Do mesmo modo que não basta ter um filho para ser pai, pode-se passar ao lado da vocação de avô. Lugar a ser conquistado, portanto, mas também a deixar. Lugar para sustentar … e com que força! Tendo educado um filho que se tornou pai ou mãe, os avós já representaram o seu papel. A sua parte está feita. Não servem para mais nada, a não ser amar. Efectivamente, acolher os netos supõe que se ergam limites e isso ocasionará, aqui ou ali, alguns alertas ou avisos. Porém a educação depende sobretudo dos pais e da avó, apesar de esta constatar dolorosamente a inexperiência da sua nora ou filha; contem-se muitas vezes e não intervém … Quando o pai se torna avô, o que cresce é a sua aptidão para diminuir. Estar presente nas suas leituras, tricotar, jardinar, e basta. Isso vale por todas as lições de vida. Mas isso não é dado. Supõe que os pais confiem o filho aos avôs e que os mesmos tenham com ele tempo a perder, a tomar, a dar. Ser, e simplesmente ser, usufruir tranquilamente da vida sob o olhar atento dum neto, como sob o olhar de Deus benevolente, é por vezes o mais difícil.

A queda e o riso são indispensáveis e humanos

É uma questão infantil, os joelhos esfolados, as palmas das mãos arranhadas. Uma questão que me surgiu estranhamente duma grande atualidade. Acaba de cair e despois dos choros, quer saber. Porquê que te ris? Sim, sim, riste-te - percebo eu na sua expressão- por me ver cair. É verdade e lamento-o desde logo por tê-lo feito, mas é uma situação irresistível. Como as quedas de Charlot no cinema. Cair, é a talvez a prova mais simples, mais nua, da nossa humanidade. Na mais pequena infância quando ainda mal nos mantínhamos em pé. Na plena noite do Princípio quando o dia cai. Na imensa noite do universo. Antes da gravidade. Antes das maçãs e das pedras que nos caiem em cima. Em qualquer queda, ao mínimo falso passo, é um pedacinho do nosso fim que se desenha, que nos lembra algo. Digo à criança que também eu, caio muitas vezes, e que todos nós, caímos. E se me rio quando vejo alguém cair é porque a pessoa atingiu um limite, o meu, o nosso. Junta-se brutalmente a qualquer coisa que tem a ver com a nossa fragilidade, com a nossa mortalidade. Quando caio, aproximo-me, nem que seja por alguns segundos, do nosso próprio fim, do fim de todos nós: cair no túmulo. Cair é aproximar- -se do solo, da terra, do pó. É recordar-se de repente que somos feitos para cair. A terra torna-se o lugar donde levantamos o olhar para o céu imaginando que caímos aqui, entre tantos outros. E porque te riste? Repete-me a criança. Quando vejo alguém cair vejo a sua pequena sombra desajeitada atrás do seu elã de homem direito. Respondo-lhe: não tenhas medo de rir. A maior parte dos corpos caiem quando os largamos! Mas responde a criança, o fumo que sobe a partir do fogo não cai! Nem o pedaço de madeira que flutua na ribeira. Respondo: imagina o mundo em que as pessoas nunca caíssem. Parecer-nos-íamos todos com estranhos cosmonautas flutuantes, largados no espaço negro e estrelado. E nada seria igual, sem graça nenhuma. Nunca mais a vida seria um lugar onde cair. Uma vez a criança consolada, reconheço voluntariamente: preferíamos levantar-nos, erguer-nos, pelo menos ficar direitos, mas a verdade é que caímos! O riso nasce a partir desta angústia. Alguém afirmava que o riso é essencialmente contraditório, ou seja, que é ao mesmo tempo duma grandeza infinita e duma miséria infinita. Ser humano é aprender a conjugar os dois: grandeza e miséria. Só no céu angélico é que os seres estão seguros de não cair. Há assim para nós a necessidade de cair para nos podermos levantar ou levantarmo-nos novamente. É o que se designa empirismo, ou a experiência. Fazer a experiência do nosso equilíbrio na terra, é a nossa tarefa humana, a nossa condição. Daí a indispensável presença entre nós dessas figuras trémulas, vacilantes e únicas. Para aprender a tornar-se alguém benevolente perante o que resta do fardo na ligeireza geral, como se a gravidade fosse uma graça, um dom, como se a graça tivesse de repente a densidade específica duma criança que tropeça. E o nosso riso faz a experiência dos nossos limites, entre o céu e a terra. A terra torna-se então o lugar a partir do qual podemos contemplar o céu mas na condição também de saber rir da nossa falta de jeito. Através do riso conseguimos libertar-nos das forças do medo que nos habitam e que estão sempre prontas para acordar os nossos moinhos, os nossos fantasmas. O riso torna- -se dessa forma a única expressão aprazível da nossa soberania.

 

Geração baralhada

Se conhecem alguns, certamente não lhes escapou despercebida esta situação inquietante: os nossos jovens não estão bem. Todos os estudos mostram que os jovens com menos de 30 anos, pelo menos uma grande parte deles, são as primeiras vítimas da agravação das desigualdades a partir da pandemia de ovid. No ensino superior essencialmente, torna-se cada vez mais difícil fazer um percurso coerente, com aulas e seminários que saltam, com intermináveis túneis de aulas em videoconferência, com exames mais ou menos assegurados e a ausência de qualquer
atividade coletiva. Stress, ansiedade, depressão, solidão: há mais dum ano que o ensino superior vem alertando para a saúde psíquica dos estudantes. No que diz respeito aos que estão no mercado de trabalho, a situação não para de se degradar; entre a dificuldade de inserção profissional, precarização dos empregos e disparidade das desigualdades. Nas empresas, se contratar era difícil, é-o agora ainda mais.

Os estágios e os contratos a termo, que permitiam adquirir uma primeira experiência tornaram-se raros, as empresas cada vez menos inclinadas a aumentar os seus efetivos pois a pandemia
de covid complica especialmente a gestão dos recursos humanos … Além do desaparecimento dos pequenos empregos na restauração, entre outros, algo que foi desastroso para estes jovens.
Salários muito baixos, contratos precários e altas taxas de desemprego: hoje, mais dum jovem em dez encontra-se em situação de pobreza… As consequências são inúmeras: mal alojados,
isolamento social e, também aqui, repercussão na saúde psíquica. Safam-se alguns que podem contar com uma família sólida, presente, unida. E os outros?

Os sociólogos falam duma “geração covid”, baralhada e inquieta, para caraterizar estes estudantes ou estes jovens ativos cujos projetos foram claramente imobilizados pelas restrições ligadas
à crise sanitária.

Por fim, temos também o teletrabalho. Não é intenção contestar aqui as medidas tomadas ainda hoje que visam travar a circulação do vírus, mas, mesmo neste campo as principais vítimas
são os jovens trabalhadores. Isolados muitas vezes, porque são solteiros na sua grande parte, têm de passar oito horas sozinhos frente ao ecrã, e por vezes só lhes resta regressar a casa
dos pais para não se encontrarem esmagados pela solidão. As empresas não deveriam apressar-se a este ponto no desejo de querer generalizar o famoso teletrabalho,
com o pretexto de favorecer a flexibilidade - suave eufemismo para poderem  ganhar as despesas fixas - de superfície afixada e de produtividade. Porque, que geração de novos
assalariados estamos nós a fabricar? Que espírito de empresa pretendemos favorecer quando se toma o hábito de ziguezaguear nos open-spaces meio cheios?
Com é possível formar uma comunidade de indivíduos a partir dum projeto quando se ignora tudo a partir daqueles com quem é suposto trabalhar?
Gostaríamos de lhes mostrar o significado de tudo isto, que a única coisa que interessa, é a sua força de trabalho, que a relação e a colaboração com o outro
não passam duma perda de tempo, que tudo não pode ser visto doutra forma.
Nada espanta em relação ao que estamos a assistir, com muitos dos jovens em questão, seja pondo em causa a sua orientação profissional, seja as suas opções de
vida remetidas para a sua satisfação individual, o trabalho não passando assim duma variável de ajustamento.
Fala-se de esforços do governo em relação a estes jovens em grandes dificuldades. Mas não deve ser unicamente o governo.
Neste momento em que se fala de “empresa cidadã”, não podemos esquecer que o trabalho, a empresa é um lugar de socialização. E que também é seu dever preparar as novas gerações para
os compromissos do futuro.

Por que vieste incomodar-nos?

Nestes tempos de campanha eleitoral verdadeiramente, ando com a cabeça à roda. Até me dói o coração. Sim, sinto-me como enjoado com a propaganda das pessoas e viaturas que passam. De todo este clima estranho acordo assim todas as manhãs. Alguns títulos de jornais como exemplo também não ajudam, com frases já deslavadas: o Expresso: “ Rui Rio espera ter vitória na humanidade”; “ António Costa: acredito pela primeira vez na maioria absoluta”. DN: “Jerónimo fora pode acelerar mudança, mas não tira votos ao PCP”; “ Deus, pátria, família e trabalho” (André Ventura no estado novo): “André Ventura chama “cobardolas” a Ricardo Araújo”; Expresso “ BE assusta-se com sondagens e quer nova geringonça”; “ Rui Rio não tem medo das sondagens”; “ Comandante Ventura vestido de camuflado e de mão ao peito”; “ Cotrim diz que André ventura lhe faz lembrar Catarina Martins”; (e ainda, deixo o Karcher na garagem …) Então, como sempre quando não estou bem e me sinto algo desorientado, tento respirar um pouco mais alto e volto-me para a literatura. Acabo de reler, no livro de Dostoievski Os irmãos Karamazov, a lenda do grande inquisidor. É um conto filosófico, um poema, uma parábola … uma obra-prima que é difícil de reduzir a uma pequena apresentação. Trata-se do diálogo entre dois dos três irmãos Karamazov: Aliócha, um jovem monge, e o seu irmão mais velho, Ivan, poeta niilista, que lhe vai ler o poema que escrevera (a famosa Lenda …, portanto). Estamos em Sevilha, no século XVI, em plena Inquisição. Jesus decide descer à terra , “ visitar os seus filhos”, que o reconhecem de imediato: “ Deus aparece; não fala, só está de passagem. (…) atraído por uma força irresistível, o povo apressa-se a segui-lo.” Estende-lhes os braços, bendi-los e ressuscita uma criança. “No mesmo momento passa o cardeal grande inquisidor. (…) e pede aos guardas para o apanhar. (…) O povo está tão habituado a submeter-se, a obedecer, que a multidão afasta-se para permitir aos guardas prendê- -lo.”te O inquisidor vai visitar Cristo à prisão, e pergunta- -lhe: “ por que vieste incomodar-nos?” Porque enquanto Cristo propusera aos homens: “ Uma liberdade que, segundo o grande inquisidor, lhes metia medo”, ele, anulou essa liberdade, para que fossem felizes, porque, perguntou ele: “ Será que as pessoas revoltadas podem ser felizes?” Mais tarde, e quando Cristo o fixa em silêncio “ com o seu olhar meigo e penetrante”, acrescenta: “ será que te esqueceste de que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio, mas também não há nada mais doloroso. (…) há três forças (…): o milagre, o mistério e a autoridade! (…) e o homem inclinar-se-á perante os prodígios dum mágico, os sortilégios duma bruxa (…) provar-lhes-emos que são loucos, que não passam de míseras crianças.” Para Ivan Karamazov, os ensinamentos de Jesus são demasiado subversivos. Tentado três vezes por satanás no deserto, não recusou também transformar a pedra em pão, lançar-se da montanha e ajoelhar-se frente ao demónio? Estas tentações de Cristo no deserto são as tentações da humanidade, mas para resistir, o que exige como coragem moral é impossível ao homem normal. O grande inquisidor procura portanto substituir a crença pela liberdade, uma crença pelo constrangimento, e à liberdade da fé, uma fé imposta pelo medo. Hoje os políticos agitam essas bandeiras, as deste medo, lançam-nos a ameaça à cara para nos forçar, num reflexo defensivo, a fechar os olhos, e a segui-los como cegos. Tentar pensar livremente por si-mesmo é uma exigência esgotante e que a preguiça pode claramente substituir. Mas recusar o nosso livrearbítrio, é fazer parte do grande rebanho medroso, e ter, como quando éramos crianças, angústias irracionais, colocadas aos pés dos nossos pais, figuras de autoridade, do saber absoluto e da segurança encontrada. Esperando encontrar alguma paz, entramos na submissão, condenámo-nos à ignorância e passamos ao lado da nossa própria transcendência. Não abdicar, preferir as questões às respostas, acreditar na nossa força moral, na dos outros também, pode ajudar-nos a ignorar os títulos e frases medonhas duma campanha eleitoral que oferece, aliás, tão pouca esperança ao cidadão.

Amor pelos livros

“ É possível que o livro seja o último refúgio do homem livre” escreveu André Suarès. Que profecia nestes tempos de confinamento! Neste momento em que muitos de nós nos encontramos fechados em casa, o livro mantém a porta escancarada para o mundo. Oferece-nos a chave para nos evadirmos em direção a outros lugares, empreender verdadeiras viagens, contar aos filhos e netos deliciosas histórias e inocular-lhes o único vírus do qual esperamos nunca curar – a leitura. “ Ler, é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como o corpo que não come”, proclamou Vítor Hugo. Além dum alimento, nunca como hoje em dia o livro se revelou como um tão poderoso ato de liberdade. É já uma aquela que oferecemos às livrarias quando compramos um livro. Confortam-se assim estes aventureiros na sua paixãoporque é sempre por paixão que eles investem na criação duma livraria, que procuram dar-lhe a atmosfera dum lar e um tom inimitável na escolha do fundo e dos conselhos aos leitores. É- -lhes deste modo oferecida a possibilidade não somente de poder viver do livro, mas também de comunicar esta paixão aos curiosos que, um dia, atraídos por uma capa, exposta na montra, um título, um excerto dum poema que eles terão escolhido, empurrarão a porta da sua caverna de Ali Baba. Há também a liberdade oferecida aos autores, nos quais pensamos raramente. É que estes não desfilam quando as reformas do seu estatuto mordiscam um pouco mais os seus direitos de autor ou quando, por causa da pandemia, os ofícios vão passando de mão em mão sem que as suas obras sejam publicadas. Solitários no seu trabalho, cada vez menos protegidos como artistas, e pouco escutados na extrema singularidade das suas vozes, é de liberdade que os escritores precisam eles também – daquela, única, que lhe promete o círculo dos seus leitores fiéis e atentos, e generosos. No marasmo geral, continuam a erguer a sua pena bem alta e direita, esperando que o seu livro belisque o curioso que, um dia, vai empurrar a porta da livraria, pedirá conselho, e ver-se-á designado por este cúmplice de sempre como o autor capaz de comover ou reconfortar este desconhecido tão só, tão tristemente confinado, que entrou por acaso naquele “ comércio” de extrema necessidade, que não se compara a nenhum outro pois aí está em jogo o futuro da cultura. Hoje, temos mais do que nunca o privilégio de oferecer esta liberdade aos escritores comprando os seus livros e, evidentemente, falar deles à nossa volta. E depois, que felicidade poder partilhar com os amigos o entusiasmo dum texto, dum romance, de receber assim esta prenda rara e inesgotável dum autor que, por sua vez, sem que ele mesmo o saiba ou que nós o saibamos ainda, se tornará o nosso amigo íntimo. Conheço poucas expressões tão ricas em promessas como a que evoca os “livros de cabeceira”. Sugere as presenças tácitas e amadas de autores, de histórias. Estende-se a mão a partir do travesseiro, e eis que um poeta nos murmura ao ouvido, ou um versículo qualquer sempre luminoso do evangelho, ou um excerto daqueles escritores que nos fazem voltar sempre atrás – segundo as suas afinidades, as suas espectativas. Pegamos no livro, folheamo-lo, que perfume, que regalo, poder retomar o fio do romance começado alguns dias antes. As paredes do quarto caiem. A noite desaparece, sentimos olhares, conversas que retemos, que nos falam e nos protegem contra as tentativas de desmoralização aguda que a atualidade prazerosa planeia contra nós. Por fim, há a liberdade que lendo oferecemos à criança que permanece em nós, e que não queremos desmerecer. A criança que sonhava com mundos maravilhosos e forçosamente melhores, devorando este alimento vital - a leitura. Temos todos um livro que a desperta, e que traz ao adulto que nos tornámos a deliciosa inocência, o Supercalifragilisticexpialidocious que, em qualquer circunstância, nos devolve a admirável leveza dos nevões de antigamente. Recordemo-nos: “ Era uma vez …” Que fórmula, que sésamo! Que momentos cheios de tremores deliciosos para quem alcançou ou pretende encontrar talvez -como eu- através deste incipit, sem dúvida o mais conhecido de toda a literatura, um vigor mesmo para - ler, escrever, ler mais ainda. O mesmo que dizer ser livre, como exige de nós o livro, e o nosso destino.