Aí estão as férias, não me esqueço de nada?

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Cadeiras de praia e biquínis nas montras, publicidades sobre mares e praias mais do que azuis e longínquos, embarcações para Cítara, librarias ornadas para as leituras de verão. As férias estão aí novamente. Cuidado com a partida, com o voo! Há já umas semanas que o comércio organiza, com o seu habitual e incurável cinismo, a nossa amnésia sazonal, fazendo da areia das praias o assunto da atualidade. Ocultando a guerra, esquecidos do estado da crise iminente, das derivas políticas, das vociferações da ágora, dos desastres ecológicos. Por alguns instantes pelo menos. Concordamos evidentemente. Ignorantes para a ciência, seduzidos pelo conforto. Acontece comigo e com os outros. Desejamos todos esta subscrição periódica à leveza, esta atração por uma pausa tranquila e lúdica. Como é possível resistir às delícias da ilusão oferecidas por este ciclo de juventude – as férias grandes, essa viagem sazonal que traz sempre recordações, ao entusiasmo picado pela nostalgia? Não aparece sempre, no momento da partida, alguém que embarca connosco, a criança que fomos e as suas palpitações? E depois, será possível agir doutra forma? Podemos imaginar mergulhar nas ondas e sonhar que outros se encontram mergulhados sob as bombas e permanecer inocentes?

Para acalmar os remorsos que sentimos, sem nos privarmos dos nossos passatempos claro, é-nos oferecida a possibilidade de aprender a ser resilientes como o metal que dobra com a força dos golpes, mas que não parte, até se apruma. É para ver a ausência de lucidez da natureza humana e a pouca consideração pela sua casualidade angustiante e necessária desenvoltura, o que Kundera chamava a insustentável leveza do ser, a que, no fundo, nos couraça e nos permite sobreviver a tudo. Alguns recusam-no, e vão salvando a nossa honra. Os santos, os heróis. Seríamos iguais se decidíssemos fazer greve às férias? Despirmo-nos desse peso, entrar em ascese, cobrirmo-nos das cinzas? Porque não há um meio-termo, o pior de tudo é a lição de moral dada aos outros para nos libertarmos do peso da consciência, a um preço mais baixo.

Não farei isso tampouco. Não entrarei em ascese. Não rasgarei o peito para oferecer o meu coração sangrento e sinto-me impotente e infeliz por essa razão.Vou, portanto, abster-me de me dar lições de moral a mim mesmo partindo do princípio, é claro, que me encontro do lado da virtude. Vou de férias eu também, à sombra, ao calor do meu casulo familiar, atento a que seja preservado o sorriso dos meus filhos e netos, e tentando afastar para longe deles e de mim, os horrores da atualidade. Alguém dizia: “o santo intercede com a sua oração, o pecador com o seu pecado”.

E eu que tinha vontade de vos contar quais as leituras que mais me embalaram, que espetáculo me havia entusiasmado, tomado pela euforia da partida, lembrar aos apaixonados pela música alguns espetáculos ou exposições a não peder, e dizer-vos que os passeios a pé ou bicicleta são uma forma interessante de melhor usufruir dos espaços e lugares a visitar. Que as costas marítimas oferecem a embriaguez do abandono à pulsação do cosmos. Apetecia-me contar algumas anedotas das minhas transumâncias passadas, de carro e autocarro, o prazer dos encontros com os amigos e com a família, porque também são iguais às vossas e que há qualquer coisa da ordem da comunhão quando, juntos, desfolhamos as recordações à maneira dos malmequeres. Perguntei-me a mim mesmo se tinha esse direito, tendo em conta tantos acontecimentos e dramas.

Seguidamente dei-me conta que era preferível falar do mar, do verão, das colheitas, dos prados e das horas de serenidade. Que lembrasse tudo isso com este espírito de criança, a fim de o alimentar, e lembrar o porquê de nos levantarmos cada manhã - tentar destilar um pedacinho de felicidade e imaginar poder transformar o mundo num lindo jardim. Que tenha entusiasmo e razões para falar desse assunto. Para que essas horas de deliciosa despreocupação que esperamos exatamente das férias, iluminem as encostas do nosso vale de lágrimas. Mas necessitava de algum tempo de recolhimento.

Fica para o regresso.

Adriano Valadar