Nestes tempos de campanha eleitoral verdadeiramente, ando com a cabeça à roda. Até me dói o coração. Sim, sinto-me como enjoado com a propaganda das pessoas e viaturas que passam. De todo este clima estranho acordo assim todas as manhãs. Alguns títulos de jornais como exemplo também não ajudam, com frases já deslavadas: o Expresso: “ Rui Rio espera ter vitória na humanidade”; “ António Costa: acredito pela primeira vez na maioria absoluta”. DN: “Jerónimo fora pode acelerar mudança, mas não tira votos ao PCP”; “ Deus, pátria, família e trabalho” (André Ventura no estado novo): “André Ventura chama “cobardolas” a Ricardo Araújo”; Expresso “ BE assusta-se com sondagens e quer nova geringonça”; “ Rui Rio não tem medo das sondagens”; “ Comandante Ventura vestido de camuflado e de mão ao peito”; “ Cotrim diz que André ventura lhe faz lembrar Catarina Martins”; (e ainda, deixo o Karcher na garagem …) Então, como sempre quando não estou bem e me sinto algo desorientado, tento respirar um pouco mais alto e volto-me para a literatura. Acabo de reler, no livro de Dostoievski Os irmãos Karamazov, a lenda do grande inquisidor. É um conto filosófico, um poema, uma parábola … uma obra-prima que é difícil de reduzir a uma pequena apresentação. Trata-se do diálogo entre dois dos três irmãos Karamazov: Aliócha, um jovem monge, e o seu irmão mais velho, Ivan, poeta niilista, que lhe vai ler o poema que escrevera (a famosa Lenda …, portanto). Estamos em Sevilha, no século XVI, em plena Inquisição. Jesus decide descer à terra , “ visitar os seus filhos”, que o reconhecem de imediato: “ Deus aparece; não fala, só está de passagem. (…) atraído por uma força irresistível, o povo apressa-se a segui-lo.” Estende-lhes os braços, bendi-los e ressuscita uma criança. “No mesmo momento passa o cardeal grande inquisidor. (…) e pede aos guardas para o apanhar. (…) O povo está tão habituado a submeter-se, a obedecer, que a multidão afasta-se para permitir aos guardas prendê- -lo.”te O inquisidor vai visitar Cristo à prisão, e pergunta- -lhe: “ por que vieste incomodar-nos?” Porque enquanto Cristo propusera aos homens: “ Uma liberdade que, segundo o grande inquisidor, lhes metia medo”, ele, anulou essa liberdade, para que fossem felizes, porque, perguntou ele: “ Será que as pessoas revoltadas podem ser felizes?” Mais tarde, e quando Cristo o fixa em silêncio “ com o seu olhar meigo e penetrante”, acrescenta: “ será que te esqueceste de que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio, mas também não há nada mais doloroso. (…) há três forças (…): o milagre, o mistério e a autoridade! (…) e o homem inclinar-se-á perante os prodígios dum mágico, os sortilégios duma bruxa (…) provar-lhes-emos que são loucos, que não passam de míseras crianças.” Para Ivan Karamazov, os ensinamentos de Jesus são demasiado subversivos. Tentado três vezes por satanás no deserto, não recusou também transformar a pedra em pão, lançar-se da montanha e ajoelhar-se frente ao demónio? Estas tentações de Cristo no deserto são as tentações da humanidade, mas para resistir, o que exige como coragem moral é impossível ao homem normal. O grande inquisidor procura portanto substituir a crença pela liberdade, uma crença pelo constrangimento, e à liberdade da fé, uma fé imposta pelo medo. Hoje os políticos agitam essas bandeiras, as deste medo, lançam-nos a ameaça à cara para nos forçar, num reflexo defensivo, a fechar os olhos, e a segui-los como cegos. Tentar pensar livremente por si-mesmo é uma exigência esgotante e que a preguiça pode claramente substituir. Mas recusar o nosso livrearbítrio, é fazer parte do grande rebanho medroso, e ter, como quando éramos crianças, angústias irracionais, colocadas aos pés dos nossos pais, figuras de autoridade, do saber absoluto e da segurança encontrada. Esperando encontrar alguma paz, entramos na submissão, condenámo-nos à ignorância e passamos ao lado da nossa própria transcendência. Não abdicar, preferir as questões às respostas, acreditar na nossa força moral, na dos outros também, pode ajudar-nos a ignorar os títulos e frases medonhas duma campanha eleitoral que oferece, aliás, tão pouca esperança ao cidadão.