Adriano Valadar

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A mais bonita metade do céu

A sabedoria chinesa ensina-nos desde há séculos: “As mulheres carregam a metade do céu.” Contudo esta homenagem é algo ambígua se se deixar perceber que os homens carregam a outra metade e que as mulheres só transportam o céu e em nada a terra. Cada dia, sábio ou não, mostra-nos que as mulheres carregam o fardo do mundo e das civilizações, na totalidade, a começar pela espécie masculina que se distingue pela sua violência, pela sua cobardia, pelo desprezo por tudo o que não é macho, e pela sua fundamental brutalidade. As mulheres ao aceitar carregar a metade do céu consentem, efectivamente, em transportar a totalidade da humanidade e a sua condição, que não é ela tão famosa por vezes.

Estas encontram-se na primeira fila de todas as infelicidades porque elas sabem chorar, algo que os homens já não fazem há centenas de anos, desde o fim das guerras antigas. Os heróis de Homero são os últimos na história universal a ter derramado lágrimas de tristeza, de pena e de luto. As mulheres, elas, nunca cessaram de o fazer. Nas filas de populações famintas de refugiados que se arrastam por caminhos de lama dirigindo-se para os inúmeros campos de refugiados, elas carregam claramente aos ombros e às costas a metade da terra. A mais rude, a mais pesada, aquela que os homens deixaram atrás deles. Eles confiaram-lhes a carga toda e ficaram nos terrenos de combate para continuar o massacre e poder alimentar os ódios.

Frente às tendas onde se reúnem com as suas crias com olhos grandes e tristes, continuam a fazer boa figura, esboçando pobres sorrisos sem alegria perante a evidência da fatalidade. Elas ficam aliviadas por serem salvas, contudo infelizes. Perderam toda a liberdade de ir e voltar, toda a autonomia, que já não tinham antes quando, reclusas e pioneiras dos maridos com quem tinham sido obrigadas a casar, não tinham qualquer margem de manobra para a sua liberdade. Só existiam para servir. Como se fossem objetos domésticos.  

E aí estão elas a chorar os maridos.

Quando se fala no nosso país da “ condição feminina” e da sujeição da mulher e da sua dependência, esquecemo-nos de que, na terra, uma imensa maioria de mulheres vive praticamente em escravatura sob o jugo masculino. É apenas exagerado afirmá-lo desta forma. As nossas preocupações nas carreiras e igualdade homens-mulheres são, duma certa forma, preocupações de ricos, de pessoas mais ou menos bem inseridas na sociedade. Pensemos no que vivem milhões de mulheres indianas, chinesas, árabes, indonésias, africanas ou da América latina relegadas para segundo plano da humanidade, negadas na sua identidade própria, na sua dignidade e nobreza de mulher, de mãe e de esposa. Manipuladas como se fossem mercadoria pelos guerreiros ébrios que, por todo o lado, fazem sangrar o género humano. Violadas e abandonadas como farrapos depois da batalha.

O cansaço da esperança

Recentemente, o papa Francisco dirigindo-se às pessoas consagradas, lembrou os danos para a sua igreja, falando de “cansaço da esperança”. A espantosa associação destes dois termos, na boca dum papa que sempre rejubila de alegria faz mergulhar qualquer pessoa que se esforça por manter a esperança a partir das duas extremidades que são a evidência da tristeza do ser humano que sofre o peso da tragédia na história, na sua história. Tudo isso afirmando o ponto Ómega da fé cristã que permanece na ideia de que tudo isso tem um sentido e que no fim de tudo haverá para cada um uma luz acolhedora e pacificadora num paraíso com a cor das nossas esperanças e onde Deus guarda o nosso lugar bem ao quentinho. Ao lado daqueles que nos precederam.

Mesmo assim. Há razões para desesperar por vezes quando nos encontramos confrontados, direta ou indiretamente, com a morte de alguém. Sobretudo se era jovem, bonito, e se tinha tudo para ser feliz hoje e amanhã, realidade e promessa. De donde lhe veio a ideia de acabar com a relação humana, de cortar as pontes com os outros? Onde nasceu essa necessidade interior que o levou a destruir brutalmente, duma só vez, o diálogo com os seus? A levar-nos todos para o universo do insondável silêncio racional e do aparente vazio duma doce conversa interrompida?

A morte não se explica. Não se julga. Deixa depois da sua passagem um sulco de incompreensão e de culpabilidade. Não releva duma mecânica explicativa do tipo causa/efeito. É mistério, escuridão, infelicidade espessa simplesmente. Fugidia. «Não percebo». Ligar este tipo de acontecimentos ao conceito de esperança como tentam fazer os mais valentes, nestes casos, não basta para convencer ou tranquilizar os que sobrevivem a estas provas.

Vive-se o luto.

Não, os mortos não estão connosco, nós é que queremos - custe o que custar – acreditar e permanecer perto deles. Quem já teve a experiência da morte duma pessoa mais próxima, esta injustiça muito frequente – e estamos todos nesse caso – sabe muito bem que o voluntarismo da esperança é uma arma com uma eficácia limitada, que não funciona porque o seu gume perde rapidamente o fio. Qualquer experiência do luto é a da vontade de tentar manter um contacto com a pessoa amada apesar da evidência e da distância que foi posta entre ela e nós.

A morte separa, arranca, e é preciso muita fé ou amor para se convencer de que não passa da primeira etapa dum percurso que leva em direção a uma reunião futura. A morte está efetivamente no centro do que provoca este cansaço de que fala o papa. Cansámo-nos de exercer continuamente a virtude cristã que consiste em dizer-se a propósito de toda a infelicidade que aparece que não passa duma etapa em direção à nossa felicidade futura, um mau momento a passar se tentarmos considerar o resto do caminho. Há também esta insuportável ideia repetida em certas épocas não assim tão distantes de que estas “provas nos são enviadas por Deus” para alimentar a nossa fé e testar a nossa capacidade de esperança. Compreende-se menos o (“ Deus mo deu, Deus mo levou …”) e ainda bem. A esperança cristã, à força de ser levada a contribuição, usa-se e cansa-se se a utilizamos muito. Seria preciso reinventá-la cada manhã.

Há revolta no absurdo? Há, mas também há absurdo na revolta. Aconteça o que acontecer há muitas auroras. Frescas, cinzentas ou radiosas, pálidas ou coloridas. O fundo de tristeza que dá o cansaço da esperança não pode ser combatido por outros sentimentos nascidos do prazer de existir, da paixão de estar no mundo, consigo mesmo, com os outros? Apesar da solidão profunda que deixa a morte dum ser querido continua, na atualidade das nossas existências de rescapados provisórios elementos de felicidade possível. Luzes nas nossas noites.

Há pessoas que nos rodeiam e que apertamos nos braços, seja por ternura, amor, seja por uma amizade tenaz, forte. Há músicas celestiais, Bach, Mozart, Schubert, Chopin, óperas admiráveis que fazem palpitar o coração.

Os filmes magníficos donde saímos perturbados nos nossos afetos e onde as inteligências procuram seguidamente os alimentos, pelo tempo que que teremos para resistir nesta terra, nesta vida. Há livros que nos impedem de morrer estúpido e que nos prendem pelo que há de mais nobre no homem; o espírito e a cultura. Há a beleza duma paisagem, a beleza duma mulher, a ternura, dada ou recebida, a oportunidade duma carícia, o azar dos encontros entre milhares de células humanas que se cruzam e se entrecruzam nas nossas terras, nas nossas cidades. Há um lindo gesto de solidariedade dos outros em relação a nós mesmos, ou o contrário, que aquece o coração tanto do que recebe como do que dá. Há o sorriso dum bebe que descobre após alguns meses neste planeta que a vida, segundo parece, vale a pena ser vivida. Há a ternura duma mão que se aperta do velhinho à velhinha esposa na noite dum mundo cada vez mais difícil. Há a ternura desordenada da mão duma mãe velhinha que acaricia no regaço o seu filho cansado. Existe a beleza dum êxito desportivo, como nós seríamos incapazes de o fazer, deixando aos mais fortes o cuidado de nos maravilhar. Há tudo isso e muitas mais coisas que valem por preencherem as nossas vidas, por revigorar as nossas esperanças terrestres.

Tudo isso não impede em nada de considerar com lucidez e por vezes raiva a estupidez humana presa ao choque de interesses e ao gosto pelo poder. Tudo isso não impede de tomar partido com firmeza pelo partido da justiça e da verdade contra a generalização da falsidade e da maldade. De denunciar os impostores que, pelo que parece, nos nossos dias, são cada vez mais numerosos entre os dirigentes do mundo. Há isso e muito mais coisas que valem a pena por preencherem as nossas vidas, por alimentar as nossas esperanças terrestres.

Depois de tudo isto pode haver, entre os prazeres da existência o de considerar a batalha planetária que vivem, cada um na sua especialidade, os imbecis e os escroques na sua competição pela estupidez recorde e a idiotice máxima. Pode ser um prazer estético, denunciar tudo isso porque, apesar de tudo é preciso, duma forma ou de outra, denunciando as travessuras do tempo, reforçar as nossas defesas para melhor vingar o cansaço da esperança, rebaixando-o ao estatuto de tentação.

As “pelotas” do desespero

Os inícios de cada ano são sempre difíceis. Persiste tudo aquilo que o ano anterior não conseguiu “desembaranhar”, e todas as dificuldades, segredos, enigmas, desafios, que colocou na paisagem das nossas existências enroladas agora em cachecóis de nevoeiro. A minha mãe repete isto com alguma regularidade, a vida é complicada (eufemismo). No entanto, a sua vida está reduzida agora a uma infinidade de nadas que se repetem, quase transparentes como as suas mãos que ainda vão fazendo meias coloridas com pelotas da Rua Nova. Mas as nossas vidas são, até ao fim, o lugar frágil e precário destas lutas obstinadas, por vezes grandes mas a maior parte das vezes sombrias, e sem que tenhamos verdadeiramente a certeza nem de vencer nem de ter totalmente fracassado. Será que vamos sempre saber amar os outros? E dizê-lo? E nós mesmos, poderemos contar sempre com o seu amor? Como é que é possível conciliar os desejos, os deveres, as obrigações, as vontades? E onde encontrar a força para cada dia avançar alguns passos mais?

Guardei da minha infância a recordação de muitos serões densos, envencilhados como pelotas de fios, onde nenhum de nós – com um pai muito ausente – sabia como alegrar um pouco os outros nem desfazer os cordéis desta existência confusa que formava uma infinidade de minúsculos nós embaralhados.

Na pequena lojinha de cada vida humana, todos gostaríamos de ter tudo arrumado de forma impecável, todas as cores da alegria e da tristeza bem distintas, as dos sucessos e dos fracassos. Gostaríamos de encontrar, sem ter de procurar muito, uma solução para cada um dos nossos problemas, uma resposta simples para as nossas perguntas. Mas ficamos quase sempre confusos, embaralhados numa confusão de fios. Somos então obrigados a mergulhar nas traseiras da loja, mal iluminada, e na desordem, sem sabermos muito bem se isso nos irrita, nos assusta ou nos comove.

Espaços sentimentais, bazares da existência, mercearias desertas mantidas pelas mesmas velhas pessoas, as últimas que sabem onde se encontra o quê, em que gavetas sombrias e desordenadas. Ninguém, a menos de ser obrigado, pretende entrar nesses escuros e íntimos armazéns dos nossos corações e das nossas almas. Estas lojinhas de humanidade onde cada um tenta, desajeitadamente, puxar uma ponta do fio da sua vida e das suas inúmeras pelotas que se chamam desespero, desencorajamento, inveja, discussão, rancor ou tristeza… A ideia finalmente não é tanto encontrar o fim, mas sim conseguir a paciência de desfazer uma pouco mais cada dia estas temíveis pelotas. E ter a curiosidade de visitar o claro-escuro da nossa loja, procurar os sentimentos mal arrumados, as nossas emoções, os projectos perdidos, os nossos desejos vazios mas tenazes.

Aí pode-se cruzar uma senhora idosa e cansada, que se parece estranhamente com a minha mãe hoje. Deixa cair silenciosamente as suas mãos usadas, cansadas pelo insucesso dos seus esforços. Ou então uma filha que acaba de adquirir um belo vestido com o tecido e as cores do amor. Ou ainda uma amiga perdida nos seus pensamentos, com a sua pelota de lã escura que aperta contra o peito. Por vezes cruzam-se pessoas tranquilas e benevolentes que passam algum do seu tempo connosco, a desembaralhar todas as nossas desordens bem vivas. Muitas vezes desconhecidos. Alguém mais afável. Soldados anónimos na frente tenebrosa das nossas vidas. Alguns com aquelas tesouras enormes e bem afiadas. Assustam-nos. E compreendemos deste modo que algumas feridas são necessárias. Vamos descobrindo que o fio da vida é assim feito de nós, de cortes, de emendas, mal feitas e pouco sólidas. Dura o que durar, diz a minha mãe ao coser um botão ou tricotando o calcanhar das meias ou das roupas rotas ou rasgadas. Tantas coisas que estão presas por um fio, um fio usado em certos sítios, refeito com mil e um fios multicolores.

E o mais espantoso, é que continuemos a ter ainda a força e o desejo de continuar a remendar ou a redecorar tudo isto, a procurar todos os dias na parte mais recuada da loja para encontrar o fio que nos salvará. E nos desenrascará mais algum tempo. Na escuridão, na desordem, o mais reconfortante é fazer parte de toda essa gente, com os nossos fatos de arlequim, cosidos com diferentes pedaços de humanidade, com pedaços recuperados. Cuidado com as lojas demasiado iluminadas e ricamente decoradas, bem ordenadas, com as etiquetas bem visíveis sobre tantas coisas desejáveis. Continuemos a procurar nas traseiras das nossas lojas. Aí não encontraremos o segredo da felicidade nem as receitas do sucesso, mas enfrentaremos a possibilidade de continuar a coser os nossos segredos mais difíceis com doçura e indulgência.

É aqui, bem no fundo desta loja de humanidade que vimos encontrar o silêncio, a presença, sonhar, tentar, reparar as nossas vidas. Uma forma de ecologia, finalmente. Preservar o que deve ser preservado, nem que seja um bocadinho de fio sem pés nem cabeça. Ajudará a viver melhor mais um ano.

 

O Inverno e sua utilidade

Quem terá inventado o Inverno e para que serve? Quando fomos expulsos do paraíso terrestre, nesse local, o que se sabe é que era sempre Primavera e Verão: uma sucessão de dias magníficos, luminosos, cheios de sol, amenos e tépidos, até mesmo algo quentes por volta do meio-dia. Todos os cantos de pássaros e vastidões de verduras, coloridas de florzinhas, suavizavam a austeridade mineral do big bang que precedera a Criação propriamente dita seguida de todos os equipamentos e acompanhantes animais de todas as espécies. 
O Génesis não fala em nenhum momento das estações frias e intermediárias. Nem do Outono fresco em que começam a murchar as belezas do mundo nem dos Invernos rugosos que beliscam e endurecem tudo aquilo em que tocam. O programa de Adão e Eva não compreendia nada disto. Ficou claro portanto, desde o início, que a mais bonita das estações, na terra, não poderia durar muito.  
Os arrepios da carne e os calafrios não enganam sob o efeito maléfico do Inverno com os seus ventos escorregadios, as suas trombas de água gelada ou de neve que tarda a fundir.
Não passa duma fuga permanente o Inverno. Nunca deixa ninguém sossegado nem o espírito descansado através do suave ar purificado. Bate forte, martiriza, vergasta as portas das nossas casas, fustiga as nossas janelas geladas, espalha por todo o lado um cinzento radicalmente triste e sem perspectivas e vai reinando através do barulho que vai espalhando. É perverso o Inverno. E teimoso. Para que serve então? Acentua as desigualdades e torna-as aos pobres ainda mais insuportáveis. A sua única vantagem é, nesta ótica, conduzir o nosso olhar na sua direcção e estimular pequenos reflexos solidários com os nossos semelhantes mal alojados, pouco aquecidos, mal alimentados. Fiquemos por aqui. Não é alegre o Inverno quando os cortejos gelados circulam pelas ruas da aldeia, pelos nossos cemitérios. Mais uma tia, mais um amigo, mais um…“mais velho”, “muito novo”.    
A sua única utilidade, pelo que parece: é ensinar-nos, pela sua imposição, a virtude da paciência e a sabedoria da espera. Sabemos pertinentemente que o Inverno não pode durar mais do que uma estação, com os seus longos e escuros dias nas duas extremidades, entrada e saída.
Pela experiência, sabemos que se trata dum túnel com duas saídas e que a recompensa das nossas esperas, são praias de luz acrescida, da aurora ao pôr-do-sol. Ninguém o ignora; enquanto ele nos castiga, as plantas e os animais aproveitam para se preparar – com um ar de quem dorme – para um renascimento primaveril, para uma ressurreição dos ramos e das folhas, asas de verdura e de cor, alegrias renovadas. 
Basta esperar. Com toda a confiança, por bem encostados que estejamos num cantinho do mundo, pequeno e recuado. Esperar é uma arma que não engana nunca aqueles que sabem utilizá-la. Os impacientes acabam sempre por tropeçar no tapete, escorregam no chão vidrado, constipam-se com a mínima corrente de ar. Apanham todo o tipo de vírus. Os que têm paciência, estes, insensíveis à dor das manhãs frias e das noites trespassadas de humidade, esperam pela saída com a calma lentidão dos produtos que saem do frigorífico para serem descongelados. Estes sábios entre os sábios são os melhor colocados para acolher antes dos outros a chegada muito previsível do momento climático mais extraordinário do nosso planeta: a Primavera!
A primavera bendita em que o frio nos impediria por pouco de acreditar ainda, na permanência provada desta perspectiva, na ideia de que em confiança, a Primavera triunfará atrás do cinzento, do nevoeiro cerrado e do vento gelado, no momento escolhido pelos planos misteriosos da natureza: as flores, a suavidade, as nuvens brancas, as doçuras do mel e do azul do céu tal é o primeiro ensinamento do Inverno, este mestre é a esperança.

As folhas e a sua linguagem colorida

As folhas secas apanham-se com pás e outras máquinas mais imponentes hoje em dia. Com a preocupação da competitividade, nestes dias, vemos trabalhar inúmeros funcionários das câmaras, apetrechados até à cabeça, varrer e transportar montões e montões de folhas secas. Despejam-nas depois nos contentores do lixo. Como deve ser prático desembaraçar-se rapidamente ad patres, em grandes quantidades, das invasoras e incomodantes chuvas de folhas deste outono avançado.  

Nada de aditamento, nenhuma piedade, pouca consideração por estas infelizes que, mal se desprendem das árvores sobre as quais viveram o seu tempinho de folhas, são transportadas em direcção à saída, ao exílio.

E mesmo assim ! Fixemo-las um momento, estas folhas ditas “mortas”, antes da sua colheita. Mortas? Que impostura! Não é porque mudaram de cor que deixaram de viver. Não é porque caíram da árvore que renunciaram a toda a sua vida interior. Ou cessaram de nos interpelar, na sua própria linguagem. Se falamos da “linguagem das flores”, porque não da linguagem das folhas?

Vede as folhas amareladas como mil sóis que correm ainda sobre o alcatrão com o mínimo sopro de vento. Vede como estas anunciadoras das primaveras vindouras se alegram (sem razão) querendo despertar os nossos olhares. Vede rodopiar as outras, mais pequenas, como asas de borboletas brancas. Têm um ar feliz e parecem dizer que embelezam o chão negro das nossas ruas e passeios. E como nos devem deixar alegres. Vede os tapetes de folhas ainda verdes juntar-se ao pé das árvores ou nos cantos dos jardins, ou nas valetas, bem vivas, persuadidas da sua imortalidade. O mais pequeno raio de luz fá-las brilhar. Que belo otimismo!

Vede os ramos cujas folhas caiem no chão em família, juntinhas. Parecem passar-se a palavra: “ upa, vamos? Mantenhamo-nos unidas, hein, meninas ». E atingir o solo, confiantes. Ignoram ainda, enquanto cobrem o chão, que não passarão o inverno e que o homem cujos pés indiferentes as esmagam, têm uma única preocupação: vê-las desaparecer para sempre. E as mais resistentes, alaranjadas, acastanhadas, secas, largas, que fazem mais barulho quando deslizam ou quando são empurradas com os pés, será por já não serem verdes que podem ser consideradas defuntas?

Escutemos as mensagens das folhas, por mais alguns dias ainda, depositadas diante dos nossos olhos como testemunhas das lindas estações de antigamente. Escutemos o seu otimismo inato, natural, estas luzes que deixam no chão como para nos dizer que o sol voltará, que o ciclo das estações é a única certeza que temos, que a forte ligação entre os ramos resiste a tudo. Vejamos como estas se movem em grupos bem organizados, em multidão percorrer os paralelos. Lá em cima moviam-se com o vento, aqui em baixo movem-se em espaços maiores, como numa liberdade reencontrada. 

Porquê que não as deixamos, no seu louco otimismo, correr pelos caminhos fora ou dormir em montes serenos, longe do ruído dos homens? Porquê essa necessidade de as amontoar, de as colher em sacos negros ou verdes e transparentes para as levar onde? Para que cemitério de folhas, em que incinerador, em que morgue administrativa? Onde é que as folhas ditas mortas podem viver tranquilamente (digamos: na natureza), não poderão permanecer onde caíram? Estas fabricam o húmus. Na cidade, nada de húmus, é o grande problema das cidades. A sua limpeza (relativa…) é um sinal do seu desprendimento. E talvez da sua desumanidade.

O murmúrio dos Nossos

As flores que depositámos, piedosamente, sobre as pedras tumbais dos que nos precederam, no carreirão dos vivos, não vão certamente passar o Inverno que começa a mostrar-se de forma séria. Nós sabíamo-lo quando as levámos, que não teriam mais sorte do que um contrato de curta duração concluído à pressa, já adivinhávamos que os raminhos orgulhosos dos crisântemos com generosas flores brilhantes cairiam rapidamente sob o efeito da lei da gravidade húmida e que as pontas das flores se endureceriam para as fazer cair antes da nossa próxima visita.

É sem dúvida uma bonita tradição a que vê afluir, todos os anos, com data fixa, montões de flores ao nosso mercado, às nossas floristas de passagem, para serem depositadas nos cemitérios das nossas aldeias e cidades. Uma tradição que não cede apesar do triunfo do hedonismo e da erupção suposta da pós-modernidade e da revolução dos meios de comunicação. Os vivos ainda têm um coração que recorda. Este hábito, nada o desencoraja, nem o trava, exceto as distâncias que a vida moderna, cruel, colocou entre nós os vivos e os nossos mortos.

Mas esta distância só tem explicação pelo silêncio de uns e dos outros. Não ousamos suficientemente falar aos defuntos e, além disso, não sabemos escutar os seus murmúrios. O que os mortos sussurram ao ouvido dos vivos. Não é preciso ser medium para o ouvir. Basta, por exemplo, que nas alas dum cemitério se preste o ouvido, com humildade, calando os ruídos, o alvoroço das nossas atividades e dos nossos pensamentos, o ronronar das nossas preocupações. Falemos com os que partiram, pelo menos uma vez por ano. Digamos-lhes mais uma vez que os amávamos mais do que conseguíamos por vezes dizer-lho. Em compensação, eles saberão perfeitamente falar-nos com a doçura dos seus pensamentos de após-vida.

Que nos ensinam estas dezenas de milhares de defuntos que jazem em baixo do cascalho onde lamuriam os nossos prudentes passos? Por vezes ouve-se isto: “ Parai com essa agitação, acalmai-vos … Ouvi as lições das nossas vidas amputadas de uma parte dos nossos projetos e das nossas ambições. Também nós tínhamos apostado no futuro risonho e rentável, nós também acreditávamos na virtude do dinheiro, nas facilidades do poder, e depois, um triste dia, catrapum, foi necessário desistir e deixar o palco em que parecíamos acreditar no papel que representávamos. Perdemos tudo nesse dia porque, como é sabido, os lençóis não têm bolsos. Nem para as carteiras nem para os revólveres. A não ser para a nudez lisa das roupas de aparato onde foram endomingados os nossos corpos enfraquecidos para nos tornar apresentáveis perante o túmulo”. 

E continuam: “ Ouvi o silêncio que é o nosso. A nossa imensa multidão não faz nenhum barulho. Nunca nos alinhamos em cortejos vingadores. Não há manifestações entre nós, nas alamedas sombrias dos subterrâneos que ocupamos, apertados uns contra os outros, como uma grande fraternidade post-mortem. Somos por fim iguais perante o destino, frente ao tempo, e tudo isso para a eternidade; pensai, quanta paciência e abnegação para chegar a esta sabedoria final dos enterrados, dos desaparecidos, nós os vossos queridos desaparecidos.“ Inspirai-vos, nossos queridos vivos, nas lições desta constatação simples que ilustramos através do nosso recolhimento e através do que, sentimo-lo bem, vós mesmos observais diante das nossas campas floridas.

E concluem: «Obrigado por estas flores que cobrem as nossas tristes lápides onde fizestes gravar as nossas identidades. Como vós, nós adivinhamos que o vento, o gelo, a chuva, a CO, acabarão por apagar mesmo estes traços das nossas identidades terrestres e dos dois milésimos que resumem o todo das nossas vidas. A este perverso trabalho do tempo, devemos antes de mais aceitá-lo, porque todos já o compreendemos enquanto vivos, quando nós mesmos vínhamos visitar os nossos antepassados nos velhos cemitérios meio negligenciados das nossas aldeias. Interrogávamo-nos sobre as pedras abandonadas, sobre as datas não compatíveis, sobre as datas já invisíveis… Tende piedade, ó vivos, pensai em nós antes de vos juntardes a nós, sede vigilantes sobre o estado das nossas últimas moradas que também serão as vossas e, pensai sobretudo em viver cada dia na dignidade e no sério que manifestais quando fazeis esta visita anual e da qual vos agradecemos”.

Ler para viver

Estas três palavras são de um autor francês, Flaubert, que escreveu entre outros Madame Bovary – romance delicioso – e este título bem podia ser escolhido para um club de leitura onde cada um pudesse dizer o seu amor por esta atividade tão importante. Ou para, neste período de férias para muitos, responder à letra aqueles que dizem: Ah! Leria muito mais se tivesse tempo. 
Porquê que se coloca a questão: efetivamente, porquê que é preciso ler? Para nos divertirmos? Para nos distrairmos? Para nos formarmos? Sim, tudo isso ao mesmo tempo, além disso são essas mesmas as palavras de Flaubert: lede para viver, cito: “edificai à alma uma atmosfera intelectual que seja composta da emanação de todos os grandes espíritos. Estudai, a fundo, Shakespeare e Goethe. Lede traduções dos autores gregos e romanos, Homero, Petrónio, Plauto, Apuleio, etc… quado alguma algo vos aborrece, não desistais e insisti. Rapidamente compreendereis, e ganhareis uma grande satisfação. Trata-se de trabalho, faço-me entender?”
Esta carta encontra-se no segundo volume da sua correspondência, com a data de 6 de junho de 1857. Como toda a correspondência de Flaubert, é extraordinária do princípio ao fim. Além do mais, as cartas de Flaubert estão cheias de conselhos, não somente exortações à leitura, mas conselhos mesmo de leitura. Quer se dirija aos jovens escritores: “lede os clássicos. Vós lestes muitos livros modernos e vê-se o reflexo na vossa obra”, carta de 1879. Ou que isso se aplique a si-mesmo: “É preciso adquirir o hábito de ler todos os dias (como um breviário) algo de bom. Isso vai-se impregnando com o tempo. Eu atulhei-me excessivamente de La Bruyère, de Voltaire (os contos) e de Montaigne».  
O conselho de ler «para viver» dirige-se a uma mulher cujo nome sobreviveu graças à sua correspondência com Flaubert, e vai prolongar-se durante 19 anos, a Menina Leroyer de Chantepie. É uma senhora com cerca de cinquenta anos então, que vive em Angers. Não é casada, consagra a sua fortuna a ajudar os mais necessitados, como se dizia na época, é católica mas muitas vezes invadida pela dúvida. E frequenta em Angers os meios republicanos.
Sobretudo, sofre da estreiteza e privações da sua vida e da vida da província. Escreve nos jornais, publica um ou dois romances, vai ver o oceano e alguns espectáculos de ópera. Mas a sua vida surge cheia de tédio. “Se a menina fosse um homem, escreve-lhe Flaubert, dir-lhe-ia: embarque, dê a volta ao mundo!” Mas como não é possível, então “dê a volta ao mundo no seu quarto, leia!” mas leia calmamente, pausadamente, leia e releia, por exemplo Montaigne. “Ele acalmá-la-á”. “Leia-o de uma ponta à outra, e quando terminar, recomece a leitura”. Ler, na realidade é reler.
E então abrir-se-á para si aquilo que “a menina nem imagina: a Terra”. E Flaubert escreve Terra, com maiúscula.
Com efeito, nem podemos imaginar aquilo que se abre para nós quando abrimos um livro. Algo em nós, tão vasto como o universo.

Uma nota que representa … a vida

Que grande infelicidade constatar que certos professores e direcções de escolas secundárias permitam a certos alunos passar de ano tentando que por vezes as notas subam alguns pontos. Imaginem, fazer com que um aluno passe com 60%, enquanto na realidade só tinha obtido 58%? A fraude do século, muito longe à frente da dos paraísos fiscais ou da dos arranjos políticos. Por conseguinte, concentremos os nossos esforços neste problema endémico criando uma nova comissão de estudo honrada pelos professores mais experientes e sábios de cada escola.     

 

Srs. Professores, esqueçam as grandes expressões deslavadas “estamos a nivelar por baixo”, “ e a excelência?!”, claro que é importante, até porque com esses alunos é fácil trabalhar. Trata-se doutra realidade, vamos aos factos, sabem o que representam estes 2%? A vida.

A destes jovens adolescentes que, apesar das dificuldades maiores no plano da aprendizagem, perseveram bem ou mal, insistem para não desligar ou abandonar, com falta de apoios apropriados a todos os níveis. E nem todos os professores sabem do que falo. Uma vida que, sem o diploma de 12º ano, ficará condenada às maiores dificuldades; inexistência de possibilidade de emprego ou empregos muito precários e mal remunerados, uma estima de si próprio ou autoconfiança cada vez mais débil ligada ao profundo sentimento de não poder concretizar os seus mais pequenos sonhos, os da infância. Eis o que representam estes 2%, um diploma que possa, aqui ou lá longe, assegurar um certo patamar de decência na sociedade. 

 

Vamos ser justos e empáticos em relação a estes alunos que já sofrem bastante para além do mais lhes mostrarmos que continuamos insensíveis à sua situação. Esses jovens que obtêm 58% têm por vezes dificuldades diversas para não dizer problemas de aprendizagem, concentração etc. etc. que explicam o seu fraco rendimento. Em vez de os castigar em vez de os fazer reprovar por 2%, deveríamos valorizá-los e agradecer-lhes por ainda estar presentes, ligados aos estudos, habitados pela dor de aprender.

Sair da caverna é um exercício difícil, Srs. Professores! …

 

Conhecem muita gente que continua presa a uma tarefa dolorosa, e que continua mesmo assim a bater-se ano após ano? Felicitemo-los e paremos de adotar unicamente regras contabilísticas, frias e austeras.

 

Estes 2% devem ser abordados de forma quantitativa, e não qualitativa. Não cortemos as asas a estes jovens corajosos e perseverantes – não são todos sei! – com os nossos princípios racionais de adulto que incita unicamente à performance. Estes comités de pais da performance que se lamentam do Nível que “voa baixinho” e que já viram os filhos voar mas se esqueceram rapidamente de que também estes passaram por dificuldades e deixaram para sempre algumas penas na sua ascensão. Aqueles que inculcam aos seus filhos não a importância de ir além das suas forças, da entrega, do sacrifício, mas da importância de ultrapassar os outros seja qual for o método.

A NOSSA CULTURA OCA E VÃ

Na lógica, compreensão e extensão são racionalmente o inverso uma da outra, o que quer dizer, em linguagem corrente, que quanto mais uma categoria é definida de forma precisa, menos chances tem de se alargar a um grande número de casos. Inversamente, quando a sua definição é vaga e geral, esta pode compreender um grande número de finalidades. 

Mario Vargas Llosa não é o primeiro a deplorar no seu ensaio de 2012, A civilização do Espetáculo, que a palavra cultura tenha perdido em compreensão à medida que ganhava em extensão. Se tudo é “cultura” – não somente as produções do pensamento, mas também os mitos e os ritos duma comunidade, os seus hábitos alimentares ou vestimenteiros - então a palavra “cultura” já não significa grande coisa. Remete para as crenças e comportamentos colectivos dum grupo particular. É o uso que impôs a antropologia, numa preocupação louvável para dar a conhecer uma legitimidade aos usos e costumes das sociedades ditas outrora primitivas, que os antropólogos e sociólogos estudavam.   

Em sociologia, Alain Finkielkraut, em A Derrota do pensamento (1987) já tinha mostrado – tema recorrente nos seus programas de France Culture - de que forma esta diluição da cultura estava em parte ligada à comunitarização. A cultura no sentido antigo de “humanidades” ou de património intelectual e artístico, tinha uma vocação universal. Enquanto as “culturas” no sentido antropológico ligam entre eles os membros das comunidades particulares.   

A cultura banalizou-se, escreve Vargas Llosa, vulgarizou-se tornando-se vazia e vã.

Em causa, a sociedade do espectáculo, que substitui a vida autêntica pelo representação e os criadores por bufos. Em causa igualmente, a sociedade de massas (civilização), que recusa toda a cultura herdada como um constrangimento, qualquer hierarquização dos valores e dos saberes, aspira à distracção, convida ao divertimento. As indústrias do divertimento mergulham e afundam-se nesta brecha. Alguns veem nisso uma forma de democratização, tratar-se-ia de fazer aceder o maior número de indivíduos ao maior número de obras, e não de substituir o livro pela imagem e a procura da verdade pela distracção. Mas a grande cultura, acusada de elitista e retrógrada, esconde-se e desaparece.

Tudo isto não é nem verdadeiramente falso, nem muito original. Estas ideias foram agitadas desde o séc. XIX pelas correntes alemãs. Mais perto de nós, o universitário americano Allan Bloom, declinou, com A Alma Desarmada, em 1987, um “ ensaio sobre o declínio da cultura geral” nos campus universitários, que ele atribuía ao crescimento da cultura pop. Muitos ensaios recentes denunciaram a diluição da cultura no “tudo é cultura”.

Mais original, parece ser o papel nefasto que atribui Mario Vargas Llosa à teoria da Desconstrução (J. Derrida) neste desmoronamento cultural. Levando qualquer tentativa de elucidação da realidade a discursos equivalentes e sem objecto.

Presa entre as indústrias do divertimento, por um lado, e os vários sofismas, por outro, a cultura autêntica estaria a passar um mau bocado. Contudo, enquanto os romances de Mario Vargas Llosa encontrarem leitores, a cultura não se portará muito mal…

Isto começa a chatear…

Pobres rebentos! Sofreram tanto, alarmes, falsas alegrias, hipocrisias de um céu traidor. Por diversas vezes quiseram acreditar. Estava ganha a partida, a Primavera chegara, o sol mostrava-se generoso quando saía do seu edredom de nuvens. Cansado! Teve de recuar. Um bocado de neve, numa manhã cinzenta, cobria os montes e trazia uma brisa fria. Um bocadinho mais outro dia. E assim, por diversas vezes este Inverno esquisito provocou os arbustos, as árvores e as flores e castigou a imprudência dos rebentos que tinham saído demasiado cedo do seu esconderijo. Ventos fortes e gelados, certos dias, dobraram e queimaram os seus frágeis ramos. No meio do povo dos rebentos imaginavam que era tempo de sair e depois, pumba, as desilusões desencantaram-nos, em Janeiro, em Fevereiro, em Março…Não, a Primavera retomará mais tarde. Vão para dentro pobres rebentos. Princípio de precaução.

O que é que se passa na mente de um rebento para que, apesar da dureza dos tempos e do rigor do clima, queira, custe que custe, acreditar? Para que persista no ser, no projeto de crescer, de se desenvolver, de reviver? Muitos ter-se-iam desencorajado, voltado para a sua concha, e dizer-se: “inútil, este ano nem vai haver Primavera, nem sequer ponho o nariz à janela.” Contudo, os rebentos não pertencem à raça dos fracos. Estes últimos dias, continuavam a engordar, a colorir-se e a abrir-se, a sair do colarinho. Os rebentos tinham guardado a fé no futuro. A sua crença no facto de que, depois da morte hibernal, a vida devia continuar intacta. No fundo, nunca deixaram de acreditar. Fé ingénua e arriscada? Aposta insensata ? Cegueira recreada por algum ilusionista populista do povo dos rebentos ? Não era a primeira estação dos rebentos? Não, já tinham conhecido invernos rigorosos e rudes e também invernos incrivelmente temperados. E muitos verões sobreaquecidos e com falta de água e muita, muita sede. Ventos maus vindos de todos os lados. Mas nunca nada perturbou a sua esperança, nem o ciclo encorajante da morte e ressurreição. 

À volta da natureza, a actualidade humana ergue as suas muralhas feitas de mil sofrimentos, mil e uma calamidades, desesperos em multidão; polémicas bem acesas à volta doutros paraísos fiscais na Finlândia ou Luxemburgo. Nações desunidas pelas calamidades económicas que as assombram. Críticas e ataques injuriosos aos políticos, populistas e outros. Nações em guerra, tão longe que nem fazemos ideia que existem, mas que vão ensanguentando o nosso mundo através dos seus ódios ameaçadores. Nomes para estes conflitos reavivados, como silveiras à beira dos caminhos: Palestina, Síria, Iraque, Turquia, África… Mas em guerra também contra a Europa. Em guerra contra a mundialização de todos os “outros”, que nos expedem os seus migrantes e os seus produtos a preços mais baixos. Quase em guerra com a Alemanha e os alemães, insuportáveis numa orgulhosa eficácia em todos os domínios. Contra a Inglaterra e a superioridade dos seus galões, bem longe já do sexagésimo aniversário europeu.

O Cristianismo e a sua quaresma talvez devam ser vistos como geniais neste contexto, à imagem do seu pastor. Com efeito, o cristianismo faz um grande bloco com tudo isso. As misérias, as violências, os sofrimentos, os gritos, as lágrimas, os medos. Faz um grande montão e põe-no aos pés da cruz. Essa cruz que não é para os cristãos, o sinal da morte, mas o da etapa seguinte: a ressurreição. Sem ela não há cristianismo que valha. Esperança que se justifique. Sem a ressurreição, só restaria fechar as igrejas todas. Fechar os livros de teologia, da história do cristianismo e mesmo dos evangelhos.

Pura loucura, do ponto de vista humano, esta história da ressurreição. Promessa insensata, bem mais incrível que as promessas dos políticos em campanha. O quê, depois da morte (fatal) voltaremos, nós também? E seríamos felizes? Bem, isso é tomar-nos por crianças ingénuas que acreditam em contos de fadas! Sim, crianças ingénuas! É preciso assumir esse estatuto. Assumir a parte de loucura desta aposta. No fundo, temos de nos tornar como os rebentos, que despontam apesar de tudo. Que sobem em direcção ao céu, na sua força serena, apesar dos alarmes, dos ventos maus, do gelo provocador. Passando a palavra entre eles, na sua linguagem discreta: “ A vida vai renascer, meninos, haverá sempre uma Primavera!” Um pouco mais, ouvi-los-íamos cantarolar.