Com a primavera volta o tempo dos pássaros. Desde a aurora, cantam, celebram alegremente o nascimento do dia, lançam-se em vocalizações de alegria, alertam os humanos de que um acontecimento considerável se está a produzir: a aurora dum novo dia, o nascer do sol, o regresso da luz. Fantásticos mensageiros, infelizmente em vias de extinção…
Tudo começa suavemente, de forma quase imperceptível, todos os dias por volta das 6 horas. Trata-se em primeiro lugar dum chilrear agudo, isolado, furtivo, de seguida acompanhado por um ou dois outros que são convocados, que se respondem, parecendo divertir-se nestas insólitas e cristalinas notas no silêncio das cidades adormecidas. Nem que não tenha o hábito de me levantar muito cedo, nada me é mais agradável do que que ter o privilégio de ser acordado desde a aurora para ouvir o canto destes pássaros misteriosos que posso adivinhar tratar-se de melros e pintassilgos.
Há já algum tempo que esta alegria se estriba também numa grande tristeza, porque me pergunto, como tantas outras pessoas, durante quanto tempo ainda poderemos ouvir essas risadas e esses trinados. Sabendo que na Europa se perderam 421 milhões de pássaros em três décadas, os efetivos de certas espécies aviárias declinam inexoravelmente, essencialmente nos nossos campos onde pesticidas e herbicidas se tornaram os dois mamilos do massacre. Adeus cotovias dos campos, pintassilgos melodiosos, canários negros e pombos-torcazes? Adeus passarinhos e perdizes? Como o desaparecimento anunciado de tudo o que era imemorável, estes anúncios fazem-nos tremer e apertam-nos o peito.
Metáfora das catástrofes que vamos vivendo, o fim das aves como o de tantas outras criaturas vivas remete-nos para a nossa indiferença, para a nossa surdez enraivecida, para o arsenal das nossas loucuras. Há certamente centenas de insectos que desaparecem também, mas os pássaros estão ligados a um simbolismo mais forte e mais significativo apontando para a elevação e para a liberdade.
Pelo menos é o que nos ensinam as diversas tradições espirituais; a sufista, a Conferência dos pássaros de Farîd-Ud-Dîn’Attar (chantre do amor universal) ou a católica.
Religiões e mitologias sempre lhes reservaram um lugar simbólico de primeiro plano, reconhecendo-lhes uma importância capital a fim de abrir o caminho sombrio dos nossos destinos. A sua forma de estar no mundo, em harmonia com os ritmos naturais, designa-os como sendo “os mestres pensantes”, apesar do homem evitar converter-se à humildade e não se ver como um mero elemento entre outros no planeta Terra. Na religião católica os pássaros atravessam a caridade, a compaixão, o louvor de muitos santos como S. Isidoro ou S. Francisco cujos sermões às aves são habitados por uma poesia inesquecível: “Enquanto S. Francisco lhes dizia estas palavras, todas as aves começaram a abrir o bico, a alongar o pescoço, a esticar as asas e a inclinar respeitosamente as pequenas cabeças em direcção ao solo, e a mostrar através dos movimentos e dos seus cantos que as palavras do Pai Santo lhes causavam uma grande satisfação. E S. Francisco alegrava-se e deleitava-se com elas, e maravilhava-se ao ver uma tal multidão de aves, da sua tão bela variedade, e da sua atenção e familiaridade…”.
Os pássaros oferecem-nos também o espetáculo de muitos momentos de bem-estar, de diversão, de quietude, de despreocupação e serenidade.
Não precisamos de ir mais longe. Ver uma galinha tomar um banho de terra dá-nos uma ideia do que pode ser uma das maiores felicidades do mundo.
Acreditem ou não, mas quando terminei de escrever este texto, um belo melro com as suas penas negras brilhantes e um ar curioso fez-me uma visita durante alguns instantes no peitoril da janela. Alma dum poeta descontente? Poder tutelar ou um anjo da guarda? Ignoro completamente a razão, mas a sua presença muda e segura ainda me perturba agora, como a luz de cada manhã de maio.