Adriano Valadar

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Quatro anos depois e ele vai por fim embora, e nós perdemos um tema de conversa. É que ele fez-nos falar, o burgesso, com os seus exageros e provocações, com a sua palavra em roda livre espalhada por toda a Terra através da graça ambígua das redes sociais. Durante estes quatro anos, são milhares de tweets que jorraram do seu smartphone pessoal, mais duma dezena por dia mesmo assim, um por hora fora do sono, incluindo aos domingos. Inundou metodicamente o planeta com os seus pontos de exclamação, com as suas frases brutais e sintaxe truncada, com as palavras em maiúsculas que não passam da mímica dos seus murros em cima da mesa. Com a sua altivez insensata, falava diretamente ao povo sem passar pelas subtis modalidades do governo. É como se houvesse um painel eletrónico plantado em todos os cruzamentos de todas as cidades do mundo. Um modo de informação municipal extensível ao planeta, onde desfilava em permanência o fio ininterrupto da sua palavra. Toda a gente troçava dele, estávamos bem enganados. Havia inventado qualquer coisa nova, em germe no princípio das redes sociais mas que ele desenvolveu até ao absurdo, como forma de conquista e modo de exercício do poder. Munido dos conceitos inéditos de verdade hiperbólica e de acontecimentos alternativos, construía um mundo mental desligado do real e que ganhava sobre a realidade. Não compreendemos, acreditando na estupidez, troçávamos dele saboreando as caricaturas, e durante esse tempo agarrava-se ao poder, e depois governava. Ninguém acreditava, como se o Mickey tivesse saído do seu cartoon para saltar para a realidade, sem ter abandonado o seu caráter simplificado e a sua espessura de papel, e que nos dava bofetadas, mas verdadeiras bofetadas que nos deitavam por terra. Nada sério, dizíamos nós, meio abalados. O nós de que falo refere- -se aos que acreditam no Estado, na democracia, no consenso razoável, na verdade que emerge do debate, todas as coisas das quais demonstrou por exemplo que não teriam nenhuma importância. O que ele vociferava no Twitter não fazia sentido e depois foi eleito, apoiado, agora cobarde mas somente por pouco. Certamente não medimos a profundidade do fosso que separa os que têm dos que não têm, não percebemos que o ódio em geral vence sobre a verdade, não desconfiámos que o real seja tão frágil quando as redes sociais se tornam a porta de acesso, estas redes em que o verdadeiro e o falso coexistem até diluir a verdade. Não levámos a sério o palhaço com a crina cor de laranja que parecia falar como o tio embaraçoso das refeições de festa em família, contudo, além do conteúdo dos seus propósitos, era ele que usava sempre da palavra, era ele que decidia dos temas de conversa, e a cada hora que passava lançava um novo tema, cuja pertinência não tinha qualquer importância porque mudaria um pouco mais tarde. É fascinante esta mudança de paradigma do governo, e é preocupante e perigoso para o futuro da política. Então quando Twitter lhe cortou a torneira por um instante sentimo-nos aliviados, e logo depois nova afogo aparecia. O pretexto foi uma mensagem que anunciava a sua ausência na entronização do seguinte, interpretada como sendo uma incitação codificada à violência. Por conseguinte não era a mensagem que justificava a sanção, mas sim todo o personagem. E em quatro anos, ninguém se apercebera de nada? E cortam desta forma o som a uma pessoa, sem debate nem decisão de justiça? Através dum tardio desdém de democracia, punem alguém que desde há quatro anos põe a saque a democracia? Não sei se vamos num melhor caminho … Mas de qualquer forma, Twitter, antes da passagem de poder, fica do lado do cabo. Por natureza as redes sociais veiculam tudo e mais alguma coisa e, quando os seus proprietários se ofuscam, isso faz-nos sorrir, e depois preocupa-nos. Se fossem simples fornecedores de acesso, sem responsabilidades sobre os conteúdos? Tanta hipocrisia! Deparamo-nos com um modo de regulação transparente, exterior às redes, porque a lei, é apesar de tudo mais clara. Não é muito são que a palavra pública seja regulada pelo arbitrário privado.

Adeus Teófilo

O Agrupamento de Escolas Emídio Garcia está de luto duma das personalidades mais marcantes dos seus corredores enquanto homem e professor. Permitam-me tão somente que reúna alguns traços da sua imagem que ficarão certamente gravados nas nossas memórias. Com a sua passada serena, mas sempre firme no seu pensamento, claro nas suas palavras e nas suas decisões: O Teófilo era sincero e leal. Inimigo de grandes compromissos, contudo era profundamente humano, duma amizade certa e de conselhos esclarecedores. Ninguém o conheceu sem se prender no seu estilo atípico, acabando mais tarde por lhe dar razão. De cultura clássica, quem de nós não conheceu a sua alegria e fecundidade intelectual, percorrendo o mundo greco-romano. Os seus alunos deleitavam-se com a precisão e clareza das suas aulas e das solicitações que lhes testemunhava e sugeria. Ninguém esquecerá tampouco a sua participação no Conselho Geral; as suas intervenções breves, tantas vezes lapidares, sempre pertinentes que esclareciam utilmente as questões debatidas e facilitavam as soluções. Não esquecerei tampouco a precisão de pensamento e elevação dos seus pontos de vista quanto à educação do presente e visão do futuro. Amigo das artes, sabia como parar o tempo na sua contemplação. Tentava assim transformar a sua arte e a sua vida na sua arte de viver. À colega Fernanda, aos seus filhos, em nome dos colegas e amigos, deixo as minhas tristes condolências e calorosa simpatia de todo o Liceu, para quem ele ficará um exemplo de probidade intelectual, de coragem, de actividade, de entrega e de recordação de que, sabemo-lo todos, a sua imagem nunca se apagará. Adeus Teófilo.

Nascimento e crescimento de um anjo

No momento em que se retoma toda a preocupação com a escola e o «eterno regresso» dos conceitos de como educar, também a mim me interpela esse universo de uma forma nova. Nasceu há exactamente um ano, dia 9 de agosto. Como ele é recente nesta terra. Os primeiros meses passou-os com o rosto mergulhado no seio da mãe que o alimenta. Nunca se separam, esses dois, o que torna as poucas visitas algo ciumentas por não pertencerem a esse mundo mágico e fusional. Pouco a pouco foi abrindo os olhos sobre as coisas e os seres. Mostra- -se surpreendido, estupefacto, por constatar a existência dos outros depois de alguns meses de confinamento. Tudo isto acompanhado por sorrisos que põem à vontade ou em êxtase qualquer ser humano que o vê. Ainda não viu nada da verdadeira vida, este inocente. Há tanta coisa para descobrir. Não pode imaginar que o universo irá limitar-se, durante a vida, ao que gira à volta da sua pequena pessoa. Nem que tudo vai resumir-se à ternura incansável da mãe, às carícias apoiadas dos avós omnipresentes. Será preciso pensar desde já que tem de ser prevenido sobre tudo o que o espera? será necessária a crueldade de lhe dizer a verdade sobre a forma como, na realidade, as coisas e as pessoas funcionam na nossa velha terra ? Seria desperdiçar a inocência da sua primeira juventude; seria correr o risco de desencorajar uma jovem vida nos seu princípio, dissuadir desde logo toda a força de optimismo e capacidade de vitalidade feliz. Não se destroi uma energia no seu despertar. Tão perto do seu nascimento, pode-se fazer muito melhor do que pintar a um menino puro e sem qualquer mau pensamento um quadro representando tudo o que o homem é capaz de inventar no domínio da maldade e da violência, das guerras, das fomes organizadas, das dominações, dos cortejos de refugiados onde se vêem tantas crianças e bebés à espera diante de tanques cheios de água, algo tão raro por esses lados, corpos de afogados no mediterrâneo. Sem falar da abominável estupidez, esta vigorosa imbecilidade que leva tantas pessoas a separar-se, a dividir- -se, a odiar-se, a oporem-se uns aos outros com a única finalidade, dir- -se-á, de acabarem sozinhos na terra, sem o aborrecimento dos que são diferentes. Não, por favor, vamos poupar-lhe estes horrores ainda que estejamos impacientes para o prevenir, para que possa encontrar caracter e valentia para enfrentar e dominar tudo isso, mais tarde. Contudo não se espalham num berço os horrores e bestialidades de que é capaz o ser humano. Há prendas mais simpáticas. Neste estádio do seu desenvolvimento, limitemo-nos a anunciar- -lhe aquilo que, na sua vida futura, pelo menos é o que esperamos, será para ele fonte de alegrias e satisfações de toda a ordem. Descrevamos-lhe a opulência das coisas belas, a magnificência das paisagens terrestres das quais não tem ainda a mínima ideia; falemos-lhe das montanhas que escalará quando for grande, às costas dos pais antes de o fazer sozinho. Façamos-lhe ouvir a fonte palpitante de água pura e o canto do riacho percorrendo a verdura dum prado tranquilo. A catarata duma cascata sobre o rochedo e a suavidade do tapete húmido duma floresta profunda. Evoquemos aquilo que poderá ser o prazer de contemplar um céu imaculado duma beleza de gelo no fundo dum lago duma montanha cheia de neve e a impressão feliz que provocarão nele o canto dos pássaros das auroras radiosas duma primavera que estará sempre de volta. Mostremos- -lhe como se podem oferecer flores e toalhas de lindas cores às avós na festa da vindima para retardar o inverno e as 52 semanas do ano. Haverá tanto e tanto para lhe contar e prometer estes pequenos pedaços de felicidade simples que reserva uma existência, que seriam precisas muitas páginas para fazer uma lista parcial de tudo isso. Será preciso mostra-lhe e contar-lhe o sorriso das pessoas simpáticas e amáveis que estão perto de nós, a beleza dum rosto dum transeunte que passa a pé, num autocarro, ou num comboio. O sorriso duma rapariga bonita que se volta para trás. Ficará essa recordação para toda a vida mas nunca mais será vista a não ser em sonho. Será necessário fazer valer mil e um encontros e gestos de solidariedade, mãos estendidas que socorrem após um drama ou um crime cometido por desconhecidos cobardes, como quando surge um atentado que desperta o sentimento de pertença a uma grande família humana da qual se diz : esta vale a pena. Será preciso dizer-lhe, ao miúdo, quando for mais crescido, que quando aprender a ler e a escutar, terá acesso às maravilhas acumuladas da literatura, às melodias perturbantes da música, Mozart, Bach, Verdi : as suas criações esperam sabiamente o menino em discos que não se usam. Parecidos aos milhares de filmes, obras primas que esperam os nossos desejos de os ver. Será preciso vislumbrar que um dia, talvez, ele possa também pretender tocar um instrumento para fazer vibrar a vida. Ou uma pena para a descrever. Até que, como qualquer um de nós, cruzará o amor no olhar de outra pessoa, apaixonado tanto quanto possa e cheio de projetos… Nunca chegaremos a terminar de lhe contar a beleza da existência, a este menino cujo olhar nos comove e o sorriso nos ilumina a alma. É preciso dizer-lhe a riqueza da poesia, a maravilhosa pintura, e os talentos dos génios de outras épocas, de todas as categorias, de todas as nações. Essas pessoas que foram também elas bebés vendo a vida com avidez e interrogando-se sobre a forma como as coisas giravam à sua volta e em que mundo viveriam. Esse menino de Bragança, por enquanto, afastado de toda a infelicidade humana bem à sua frente, disponível para viver os aspetos positivos e as juventudes perpétuas da existência. Acaba de chegar. Vai ver tudo. Atravessará as portas do futuro. Tudo lhe é permitido e possível. Amámo-lo e quase temos ciúmes pelo que ele é e pelo que virá a ser.

Do outro lado da pena

O que há do outro lado da pena, o que é que nos espera, quem seremos nós, depois? Mais ou menos formulada, a questão impõe-se rapidamente depois do choque sofrido. Quando perdemos alguém que amávamos desde sempre, a mulher ou o homem de quem estamos apaixonados vira-nos as costas para sempre, e quando é um pai ou um irmão mais novo… A pena é algo muito diferente da infelicidade. Aquele que perde o seu trabalho, aquele que perde a casa, aquele que perde o seu país, aquele cujo filho acorda muito doente, essa pessoa não se questiona sobre o que há do outro lado, sabe que tudo vais ser muito difícil e que o desemprego, a rua, o exílio, o tormento vão durante muito tempo absorver todas as forças de que dispõe, a cada instante de cada dia da sua vida, num sombrio e longo presente. Como para a explosão das torres em Nova York, a queda do muro de Berlim, ou quando soubemos que Notre Dame de Paris estava a arder. Gostaríamos de o contar, mas contemo-nos, sabemos que isso não interessa a ninguém. Toda a gente estava em qualquer lado, toda a gente teve um sentimento arrepiante, assim como uma grande incredulidade face ao que via. Dor penosa, aconteceu há dois meses e já parece ter sido há muito, porque o tempo passa muito depressa. Para esta ideia de que em poucos dias, conseguiríamos de alguma forma habituar-nos aquilo que nos impedia de respirar e nos cortava o coração, atravessou-nos e revoltou-nos também no mais profundo de nós mesmos. A transformação em nós aconteceu e dura. Parece que por vezes até temos a consolação dum amigo, dum parente que nos quer aliviar o sofrimento partilhando-o connosco. Aquele que tenta consolar-nos não é forçosamente aquele que nos alivia. Pode ser um desconhecido de passagem, que nos liberta sem o saber, nos abre portas, nos põe em movimento. Além disso será que queremos mesmo abandonar essa pena que nos liga à nossa perda, ao nosso luto? Esta dor que é a nossa forma de amar ainda, que é o amor posto à prova da renúncia, queremos mesmo ser curados? É a memória do que foi, o rasto duma plenitude que nos fugiu. É-nos precioso e merece ser cultivado. Como tudo o que vive, conhecerá as estações, sonos e auroras resplandecentes, acompanhar- -nos-á para todo o lado onde formos. Os consoladores são aqueles que nos vão permitir levar connosco esta pena em vez de lhe sofrer o peso. Não é fácil admitir que há uma vida do outro lado da pena, do outro lado do arrancamento, do silêncio, da morte. Não é assim tão fácil aceitar mudar, para viver plenamente para além das lágrimas. Poderemos nós aceitar um dia secar as lágrimas e viver serenamente no companheirismo da ausência? Não seremos tentados a remoer? Nada é urgente. O tempo é nosso aliado. Não foi no dia seguinte que o Cristo voltou, foi ao terceiro dia! E três dias é o mínimo para admitirmos que a vida nos espera, do outro lado da pena. 

O verão em parábola

Os rostos das pessoas, como as folhas das árvores, começam a ficar mais manchados, pálidos e tristes. É o verão e o sol que nos estão a fugir. Que fizemos nós, que travessias fizemos nós neste verão e que desejávamos tão impacientemente? Há poucas semanas atrás, esperávamos ardentemente o tempo do calor e do descanso. Desejávamos o sol. Espreitávamos os sinais do verão. Ora, muitas vezes faltam-nos os sinais, pensamos nós. Os sinais que confortariam os nossos desejos, que reparariam os nossos erros, que preencheriam as nossas necessidades ou que viriam apaziguar as nossas preocupações. Acabámos por deixar de ver os sinais que entrevíamos impacientemente e por confundi-los mesmo com o objeto dos nossos desejos. Não é o verão que nós esperávamos mas tão somente a excitação das nossas angústias, das nossas dúvidas e insatisfações. 

Há uma estranha e breve parábola no evangelho, a dita da figueira, que faz parte duma série de parábolas extremamente fortes sobre a iminência do fim dos tempos. Jesus confiará aos seus apóstolos: “A minha alma está profundamente triste até a morte” (S. Marcos 14, 34).

Qual é o objeto da nossa espera? Qual é o significado da nossa impaciência na descoberta das provas daquilo que esperávamos ver realizado? “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já o seu ramo se torna tenro, e brotam folhas, bem sabeis que já está próximo o verão” (S. Marcos 13, 28). Na realidade, o sentido que parece emergir é que temos à frente dos olhos os sinais que tanto receamos não ver. E é para nos perguntarmos se não tememos mais ainda a identificação dos nossos próprios desejos.

Alguns rebentos, algumas folhas novas. O verão aparece com toda a sua esperança. Mas nós preocupamo-nos em saber, em compreender… Ora o resultado não será o que nós esperamos. A nossa inquietação não deve ser o conhecimento do que vem, quando e como, mas sim acolher o que vem. Preferiria dizer que há duas naturezas de conhecimento, um que não passaria da impaciência de saber e que viria preencher uma necessidade qualquer, dissipar um segredo ou um mistério, e a outra que consistiria em acolher em nós precisamente o que não conhecemos, o que esperamos mas sem querer forçosamente retirar-lhe o mistério, a parte de sorte ou azar. Nem que para isso seja preciso atravessar “esta profunda tristeza”.

Vemos por nós-mesmos que o tema da nossa espera foge aos sinais visíveis e previsíveis. Queremos a toda a força verificar os sinais das nossas expetativas, tendo-os diante dos nossos olhos e que de certa forma vemos sem ver.

Oh meus amigos, devemos agir com aquilo que muitas vezes não compreendemos, com aquilo que nos foge. E devemos talvez aprender a resistir ao querer “saber tudo”. O que não significa cultivar a ignorância ou o segredo, mas mais autenticamente viver com uma parte de desconhecimento das coisas, sem a qual nenhuma procura, nenhum desejo seria digno de interesse. Muitas vezes, a nossa espera por sinais e significações é tal que a mesma faz obstáculo em nós ao que surge, ao que é novo. Como a nossa paixão insaciável pelas origens.

Pelos vistos mais de oito milhões de pessoas pelo mundo já testaram o seu ADN, para ter a confirmação das suas origens, interrogar um segredo de família, prever uma doença… de que verão desaparecido para sempre somos nós feitos? Lembro-me duma Torre Eiffel dentro duma bola em vidro cheia de partículas brancas que parti em pedaços quando era criança, querendo desvendar e compreender o acontecimento, como era feita. Percebo só agora que as nossas vidas não passam destes pequenos objetos que se partem quando queremos compreendê-los e saber como é que são feitos.

As nossas vidas não passam da montagem destes pequenos pedaços em aparência tão frágeis, tão íntimos, e destes momentos esperados, desejados, em que convocamos e contamos um por um certos fenómenos que não são mais do que as nossas interrogações e hesitações perante o que nos acontece ou que nos foge, e que desaparecem com o tempo e o vazio das coisas como dos seres, sem nunca ter a certeza das convenções para os suster e exprimir claramente. É verdade, o verão fugiu-nos mas algo se passou. E ainda não temos forçosamente o conhecimento disso. E espreitamos novamente os sinais. Continuamos a caminhar sobre os pedaços de vidro dos nossos segredos e das nossas esperanças.

A educação e a(s) vida(s)

O que é educar e ser educado? Peço desculpa por colocar a questão desta forma abrupta, mas ocorre-me sempre no início do ano escolar provocado pelo ruído rouco dos colegas e de alguns debates que começam já a surgir sobre reformas que se vislumbram.

Educar não é uma ciência mas sim uma história, uma narração. Crescer, aprender, isso não se avalia forçosamente nem sempre, e não se pode aparentar ou reduzir simplesmente a um lucro, a aquisições. Não. Saber ler, escrever, contar, isso está resolvido. Assim como descobrir, obter, experimentar. Conseguir e não conseguir. Ter sucesso e não ter sucesso, conseguir na vida e conseguir a vida. E isso não se produz nem sempre nem forçosamente ao mesmo ritmo para todos, diria mesmo que isso não tem forçosamente nem sempre a mesma intensidade, o mesmo valor para cada indivíduo. Que tudo isso jamais bastará.  

Seria preciso reconhecer antes de qualquer discurso especializado, sabiamente técnico sobre a educação, o seguinte: crescer é sempre um falhanço. Que há sempre numa vida construída uma renúncia necessária e fecunda. Quero dizer que foi necessário, como sempre, como para cada um de nós e a sua pequena trajetória tremente, tão emocionante quanto indecisa, na existência, que bastaria um nadinha para que não fosse aquilo em que me tornei. Poderia ter sido outra pessoa, melhor ou pior. Não sei se outras vidas me esperavam mas cresci com o pensamento, que ao mesmo tempo me desfazia por dentro, que me fazia acelerar o coração, que outras vidas eram possíveis, e que na maior parte, estas outras vidas, não poderia vivê-las.

Crescer, alguma coisa se perdia, se destruía incessantemente e nunca consegui segurá-la. Ora talvez isso tenha também feito parte da minha educação; aprender e aceitar que uma parte da minha vida pudesse fugir-me, que não pudesse ser explorada. Educar, é abrir o outro à experiência da vida onde nós nem sempre temos a possibilidade de viver como desejaríamos, segundo os nossos apetites, os nossos sonhos, as nossas frustrações. E que tudo isso, apetites, sonhos e frustrações, sirva para construir o somatório nunca certo e justo, nunca completo, duma existência honesta. A honestidade, deveríamos sabê-lo, nunca é uma conta redonda. Não surge fazendo unicamente preencher aos outros todas as linhas da grelha. Cada um de nós pode pretender ter mil e uma vidas, mas todos devemos fazer a aprendizagem da fragilidade de cada vida vivida, assim como da insignificância duma vida entre outras vidas.

Lembro-me da réplica dum autor (Flaubert? As citações sempre foram cigarras para mim!) que dizia qualquer coisa como: “Nós as pessoas insignificantes, com as nossas palavras, os nossos atos, preparamos a vida de muitos heróis,” Nós não seremos forçosamente heróis mas isso não significa que não participemos no heroísmo da existência. O caminho dos nossos sucessos é muitas vezes mal combinado com a mediocridade das oportunidades, mas convém então pensar que a educação não é somente um acumular de cultura, de saberes, mas sim e profundamente uma transformação da existência, dando tanto o desejo duma vida vivida como a consciência de não poder viver todas as vidas, todas as experiências.

Ensinar a crescer, no meio dos outros, e todos os outros, é tolerar com paciência, e se possível com amor, que o nosso sentimento de exceção, os nossos desejos mais fortes, sejam também confrontados com a nossa insignificância. Educar, é assim permitir a cada indivíduo de se aproximar da satisfação dos seus desejos e das suas expetativas sem por isso se transformar em alguém intolerável para os demais, como para si mesmo.     

Talvez assim se pudessem evitar, por exemplo, alguns dos comportamentos que invadem tantas vezes a imprensa, e que revelam o quanto certos jovens carecem precisamente dessa educação, a saber que uma vida bonita e inquieta, é uma vida feita de tudo o que vivemos e de tudo o que não vivemos, das experiências vividas assim como de todas as que nunca tivemos. E de facto, o que obtiveram eles, e que desejavam tão violentamente? Uma insatisfação sempre recomeçada, uma vida nunca é vivida verdadeiramente porque viver nunca é querer viver tudo, permitir-se fazer tudo, ou então tem que se fazer da satisfação um ídolo. Em quê que se tornaria então o sonho, a fantasia, a esperança, as nossas vidas desconhecidas que tornam a nossa vida tão misteriosa e tão desejável? Há uma forma de valentia viver no meio de todas estas vidas vividas e não vividas, possíveis e impossíveis, sonhadas, evitadas, desviadas, e não possuir nenhuma delas. Estou a exagerar? Talvez, sim. Mas proponho dois pequenos paradoxos. É possível que nos dirijamos mais seguramente em direção a um mundo que se harmonize com os nossos desejos sem por isso viver a realização de todos eles. E as nossas vidas só serão plenamente vividas não tendo vivido tudo. Oh meus amigos, como a vida é bela!  

Os corpos deste verão

O corpo no verão exibe-se ao longo das praias ensolaradas. Mas procura também esconder-se atrás dos véus. O que diz o corpo da nossa comunidade humana?
Neste verão já longo, assistimos por todo o lado à exposição máxima das carnes. Não só nas publicidades, na imprensa em geral, mas também na rua. São exibidas para fazer vender, expostas para se dar a ver. Sejam bonitas ou feias – falando das corporalidades dos homens assim como das mulheres – estas submetem-se a determinados padrões, à moda impostFa. Ao ponto de agastar por vezes o olhar mais avisado. 
A esta exposição vem estribar-se para algumas mulheres a reivindicação de não se expor. De enfrentar o olhar dos outros protegendo-se através do que se chama, nos atalhos da imprensa, o burkini. Recusa de exposição para poder acompanhar os filhos à piscina, ou exposição das carnes cobertas para acompanhar uma exigência de reconhecimento? Os corpos mostram-se ou escondem-se, mostram-se para reivindicar uma liberdade, escondem-se para manifestar uma liberdade. 
Mas outros corpos, nestes últimos dias foram dados a ver. Corpos meio cobertos e no entanto expostos; os de Óscar Ramírez e da filha, afogados no Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. 
 Corpos fotografados, dados a ver, que aparecem como o símbolo de outros corpos que nós não veremos nunca; cadáveres nos desertos do Novo México, os afogados no Mediterrâneo, os torturados nos campos da Líbia, os esfomeados do Sudão, ou os detidos nos gulags chineses.  
Carnes, corpos, densidade e fragilidade dos tecidos e dos ossos, aparição única de cada pele, mistério combinado dos órgãos … É a nossa humanidade que se expõe e se esconde. Na Bíblia, pode apresentar-se na sua inocente nudez ou esconder-se na vergonha (Génesis), exaltar a graça e a fruição que oferece cada membro (Cântico dos cânticos), exibir o poder do desejo (David e Bate-Seba). Carnes e corpos podem ser também submetidos à sede, à fome, à execução sumária, individual ou massiva. 
Mas, essencialmente, é na carne que se dá a conhecer o Deus dos cristãos. A incarnação duma divindade ou reconhecimento duma humanidade verdadeira, divina, na pessoa de Jesus de Nazaré, a carne é radicalmente colocada no centro das atenções no cristianismo. No centro das atenções ou pelo menos reconhecido como o único lugar de encontro possível com a transcendência, porque “ nunca ninguém viu Deus” (João 1, 18). No entanto não sabemos nada do corpo de Jesus. Nenhum tipo de exposição daquilo que o caracterizava, nenhuma marca tampouco que ele tenha querido esconder.  
Se está exposto, é como um corpo esquartejado na cruz. E se está escondido, é enquanto corpo ressuscitado. Irrecuperável como corpo crucificado, demasiado escandaloso para um Deus. Irrecuperável enquanto corpo ressuscitado, demasiado ausente para constituir uma prova de Deus a ser administrada aos não-crentes. Mas não é por isso que o cristianismo é um inimigo dos corpos, como nos foi apresentado durante muito tempo.   
Hoje ainda, o discurso dominante afirma que seria uma religião onde se subjuga o corpo, onde se esquece a corporalidade. 
Com efeito, o que convém trabalhar é o nosso modo de tomar parte na “luta dos corpos” nos nossos dias. 
Nem sublimar nem negligenciar o corpo: reconhecer que é fonte de alegria, de prazer, de vergonha e de sofrimento, reconhecer que o mesmo tem o direito de se esconder e de se expor, sem quaisquer constrangimentos de alguma espécie que não seja a dignidade daquele ou daquela que olha.
Reconhecer por fim que o escândalo maior é o dos corpos martirizados, crucificados, que convém cuidar e tratar. E, talvez, ressuscitar.

O meu touro querido

Provocado pelas minhas saídas a Espanha com a escola, memórias dos lameiros da infância mirandesa, que sonho esquisito tive a noite passada! À minha frente estendia-se um circo de pedra em ruinas. Distinguia-se ainda muito vagamente a forma de origem. Ao centro da arena destruída, um animal brutal e cintilante pronto a atacar. Fixava-me com os seus olhos de ouro. Parecia convidar-me para o combate. Não compreendia mesmo nada do que se estava a passar. Sou muitas vezes algo cobarde, oh meus amigos. Quando o ouvi dizer-me, rapando com os seus cascos de areia onde tantos antigos combates tinham sido travados: estás no lugar onde se encontram um dia todos os que não conseguem tomar a decisão certa. Não posso revelar até ao fim do texto como eu pude sair deste sonho, mas vi-me, nesta arena, a partir dos traços ridículos do rapazito franzino, hesitante e introvertido que fui nas terras de Miranda nos anos sessenta e princípios de setenta.

Confesso que me persegue a questão de saber se tenho tido na verdade a coragem ao longo da minha vida de rachar, de abrir caminho, de decidir, para avançar. Este tipo de combate, foi efetivamente conseguido? De que parte ferida da minha infância? Interrogo-me sobre aquilo que a minha mãe e o meu pai puderam transmitir-me da coragem, ou mais dolorosamente, o que eles não puderam fazer, por fraqueza ou compaixão perante a violência da vida, confiar-me um pouco dos seus próprios combates, conseguidos ou abortados. Teriam pensado que eu acabaria por encontrar sozinho alguma chama necessária que desejariam secretamente que eu descobrisse em mim num qualquer seminário? Não sei ainda hoje, sinceramente, se este ardor pode ser transmitido aos nossos filhos. O combate a ser travado contra as nossas próprias derivas.

Gostaria de poder descobrir a fonte da coragem de viver. Aquela que ajuda a atravessar os desafios, as provas permanentes. Face ao touro do meu sonho, dum negro lustroso como certas noites de verão em que temos o sentimento de que tudo pode ser abalado por qualquer acontecimento, sei que se travava no meu interior o drama da minha vida. Aceitar a luta, aceitar receber o desafio ou renunciar. E talvez, viver dignamente, oh meus amigos, não passe deste sim dado ao combate, ao mistério vivo e furioso que se nos apresenta todos os dias e até ao fim. Menos o combate ele-mesmo do que a afronta ; este frente a frente, este cara a cara. Fixar o animal que nos amedronta e descobrir no seu olhar o nosso próprio rosto.

Observo os meus dois filhos crescer demasiado, penetrar também no labirinto da existência contemporânea. O que levam eles do poder necessário para avançar e que eu lhes tenha dado e confiado, eu que tantas vezes preferi recuar, adiar? Como encontrar esta força que salva, a opinião certa, a decisão conforme ao Bem, sobre aquilo que é necessário apreender ou o que não temer, aquilo que se chama coragem? A força a encontrar nas adversidades e nas dores, nas alegrias, e nos medos. Creio que podemos, que temos o dever mesmo, de tentar transmitir tudo isso aos nossos filhos, mas essa transmissão é também um combate a travar contra as nossas próprias errâncias. Os nossos medos gelados ou febris. 

   Creio também que esta coragem de viver, cada um é convidado a encontrá-la sozinho, criança, contra a vontade dos pais ou mestres, em tudo o que desmantelamos, na reserva dos nossos medos e das nossas resignações. A decisão de viver, de enfrentar a vida viva, é um tesouro escondido na descarga da História como na dos nossos pequenos lares que nós gostaríamos, ingenuamente, que estivessem protegidos por muralhas insuperáveis.

Para que a transmissão da vida viva se produza realmente, é preciso deixar vir o touro à arena, essa força bruta que nos mete medo e aceitar manter-se à sua frente – o desejo de viver – como à beira do furacão. Nesse frente a frente, podemos lembrar-nos dos nossos pais, de todos aqueles que nos terão guiado no caminho da existência, contudo sabemos bem que para continuar estaremos sozinhos frente à coragem de viver, de decidir viver. No meu sonho portanto, no momento de ver o touro a atacar-me, acordei bruscamente. 

Esta arena meio destruída e invadida pelas ervas loucas do tempo, era a minha vida. Tinha em sonho enfrentado o meu próprio medo de viver. E este touro brilhante de suor, era o meu coração que me desafiava. Que me pedia para escorraçar todos os medos gelados e suados, os pensamentos perigosos, as sombras que eu não quisera enfrentar e que já não podia evitar. Investindo sobre mim, o meu touro querido juntou-se a mim para nos reconciliarmos, eu o menino que ainda sou. Agora sei que todos os meus medos não precisam de ser vencidos, mas sim combatidos, devo lembra-me disso para sempre. Tenho de o dizer a todos os que amo. As noites todas que temos de atravessar não reclamam forçosamente a luz, todos os monstros que nos assustam e que vêm desafiar-nos não atacam para nos destruir, mas unicamente para nos reconciliarmos connosco mesmos, com o nosso pobre coração tantas vezes despedaçado.

A penúltima estadia

Não se trata duma questão de créditos públicos ou de meios privados: nunca será agradável dizer-se, quando entrarmos para ali, voluntariamente ou forçados, num lar de terceira idade onde será o nosso último alojamento enquanto vivos, a nossa penúltima morada. Qualquer que seja o nosso estado físico ou mental, qualquer um compreenderá muito bem a mensagem e quando nos “depositarem” provisoriamente, é bem claro que é para passar entre essas paredes novas o resto dos nossos dias.

Que lhe chamemos Ehpad, lar de terceira idade, residência sénior ou Residência dos sonhos o resultado dum internamento desses é sempre o mesmo aos olhos dos visitantes. Se os houver. Estacionam o carro no parque, com a maior das delicadezas. Através das enormes portas de vidro, entreveem as cabecinhas branquinhas em cadeiras rolantes ou fixas, cabeças inclinadas para o chão ou, quando dormem, para o lado.

Depois de se atravessar a porta é possível saudar a companhia toda. Ninguém liga nem responde aos “bom dia minhas senhoras e senhores”. Na receção não está ninguém. Fugindo pela esquerda, vai-se por corredores onde outros pensionários se encontram estacionados num silêncio pesado. Parecem estar mais ou menos bem. Cruzam-se olhares cansados, esboços de sorriso, gestos com a mão, desajeitados e pouco naturais. Por fim vê-se chegar uma blusa duma ou doutra cor. “Venho visitar a Sr.ª Tal.” “Quarto 22, primeiro andar”. Deve estar a terminar a sua sestazita de certeza.” Com um gesto, indica o elevador. Será, nesta fase, o único contacto com a administração da instituição a quem foi confiado, um dia de extremo cansaço e de péssima consciência, o cuidado de guardar o vosso ente querido, aquela senhora idosa algo desorientada que andava meio perdida na rua ou se enganava à procura do seu próprio quarto.

Aqui, toda a gente sabe, toda a gente adivinha e é perfeitamente claro. Não se está ali para brincadeiras mas sim para esperar a morte, o mais calmamente possível, sem desarranjar a vida dos ativos. Para entreter algumas ilusões, deixam levar um móvel ou outro bem encerado com gavetas onde estão conservados os tesouros dos tempos de glória; fotografias dos netos, folhetos sobre o Lar, imagens da virgem Maria ou de S. António, fotos de Fátima, um bloco de notas onde já não há força para escrever seja o que for. Uma agenda vazia. Rebuçados para a tosse. Um fio de cor sem qualquer significado. Uns postais de boas festas. Um livro talvez.

Com efeito, o que significa “esperar a morte”? Estar mergulhados numa meditação profunda, estruturada, com entrada, desenvolvimento e conclusão? Não, será mais uma lenta cascada de pensamentos sem ordem nem estrutura. Sonhos lânguidos, imagens moles que circulam no que resta de sensações e de cérebro vivo. Espera-se pela hora do almoço anunciada pelo remoinho ruidoso dos carrinhos para o lado do refeitório. Blusas coloridas dançam à volta, uma delas compõe a manta mal posta no colo dum senhor, endireita umas pobres costas meio inclinadas.

Durante a tarde, simpaticamente, são propostas “actividades” ou “animações” que agradam muito a alguns e muito pouco a outros. Porque mesmo aqui há espíritos mais fortes, geralmente os homens, que guardaram a força de desprezar tudo o que está ao seu alcance, homens que, toda a vida, se mostraram esquisitos perante o colectivo sobre o tema do “muito pouco para mim isso”. Envelhecemos tal como fomos. A senhora trémula treme com todos os membros enfraquecidos, a medrosa tem medo até da sua sombra e sobressalta ao mínimo ruído, o amuado melindra-se incessantemente.

Todas estas descrições serão excessivas? Na ótica de muitos, parecerão mesmo desesperantes, caricaturais e demasiado negras. Contudo são imagens que nos vêm espontaneamente ao espírito quando ouvimos, episodicamente, que o debate público versa sobre o tema dos lares de terceira idade insuficientemente dotados em créditos, em lugares, em pessoal, em conforto e em número.

Pode acontecer que algumas recordações de felicidade fugitiva saiam do cérebro quando se pensa num aniversário organizado com os filhos para os 95 anos da tia Maria ou quando a avó perto dos 100 anos que adorava Jesus e o vinho do porto mostrava um pequeno sorriso quando bebia um copinho. Mas estes momentos de alegria cheios de sorrisos e de recordação dos tempos passados seriam de alegria aos olhos dos pensionários eles-mesmos? Ficávamos contentes do efeito aparente das nossas visitas pouco frequentes. Aliviávamos as nossas consciências. Sabíamos que repartiríamos para a “verdadeira vida”, fora, com o ruído dos carros, das motas que atravessam a cidade como foguetões estridentes. À noite, projetávamos os nossos próprios futuros. Como é que serei eu com essa idade? Qual o melhor lugar para se preparar para morrer? Num hotel cheio de sol no Algarve, numa casa na aldeia? No hospital onde nos conduziria talvez a doença que não esperávamos ter? Em casa, claro, sonhávamos com isso: onde a dignidade dos humanos passa por uma autonomia continuada e com referências estáveis. A nação não sabe o que fazer com os seus mais velhinhos, estes além de seniores, aqueles para além da terceira idade, estas pessoas da última idade, impotentes muitas vezes, esgotados e desfeitos quase sempre, perdidos, e que ficam muito caros à comunidade. Os profissionais que os acompanham para as últimas circunstâncias das suas existências são duma entrega sem limites: faríamos nós a metade do que eles (sobretudo elas) fazem por esses campesinos? O seu tratamento é um dos maiores escândalos da nossa República. Antes de nos lamentarmos sobre a nossa sorte de vivos provisórios pensemos nesta parcela de humanidade que amontoamos nestas penúltimas estações antes da auto-estrada da vida eterna e que tenta conjurar o medo ancestral perante a morte e resistir à angústia da nossa finitude.

Na sabedoria da noite, deve haver lugar para a serenidade e o abandono. Temos a vida toda para nos prepararmos. Agradeçamos desde já aos que nos poderão ajudar, perto do fim.

O espírito dos pássaros

Com a primavera volta o tempo dos pássaros. Desde a aurora, cantam, celebram alegremente o nascimento do dia, lançam-se em vocalizações de alegria, alertam os humanos de que um acontecimento considerável se está a produzir: a aurora dum novo dia, o nascer do sol, o regresso da luz. Fantásticos mensageiros, infelizmente em vias de extinção…

Tudo começa suavemente, de forma quase imperceptível, todos os dias por volta das 6 horas. Trata-se em primeiro lugar dum chilrear agudo, isolado, furtivo, de seguida acompanhado por um ou dois outros que são convocados, que se respondem, parecendo divertir-se nestas insólitas e cristalinas notas no silêncio das cidades adormecidas. Nem que não tenha o hábito de me levantar muito cedo, nada me é mais agradável do que que ter o privilégio de ser acordado desde a aurora para ouvir o canto destes pássaros misteriosos que posso adivinhar tratar-se de melros e pintassilgos.

Há já algum tempo que esta alegria se estriba também numa grande tristeza, porque me pergunto, como tantas outras pessoas, durante quanto tempo ainda poderemos ouvir essas risadas e esses trinados. Sabendo que na Europa se perderam 421 milhões de pássaros em três décadas, os efetivos de certas espécies aviárias declinam inexoravelmente, essencialmente nos nossos campos onde pesticidas e herbicidas se tornaram os dois mamilos do massacre. Adeus cotovias dos campos, pintassilgos melodiosos, canários negros e pombos-torcazes? Adeus passarinhos e perdizes? Como o desaparecimento anunciado de tudo o que era imemorável, estes anúncios fazem-nos tremer e apertam-nos o peito.

Metáfora das catástrofes que vamos vivendo, o fim das aves como o de tantas outras criaturas vivas remete-nos para a nossa indiferença, para a nossa surdez enraivecida, para o arsenal das nossas loucuras. Há certamente centenas de insectos que desaparecem também, mas os pássaros estão ligados a um simbolismo mais forte e mais significativo apontando para a elevação e para a liberdade. 

Pelo menos é o que nos ensinam as diversas tradições espirituais; a sufista, a Conferência dos pássaros de Farîd-Ud-Dîn’Attar (chantre do amor universal) ou a católica.

Religiões e mitologias sempre lhes reservaram um lugar simbólico de primeiro plano, reconhecendo-lhes uma importância capital a fim de abrir o caminho sombrio dos nossos destinos. A sua forma de estar no mundo, em harmonia com os ritmos naturais, designa-os como sendo “os mestres pensantes”, apesar do homem evitar converter-se à humildade e não se ver como um mero elemento entre outros no planeta Terra. Na religião católica os pássaros atravessam a caridade, a compaixão, o louvor de muitos santos como S. Isidoro ou S. Francisco cujos sermões às aves são habitados por uma poesia inesquecível: “Enquanto S. Francisco lhes dizia estas palavras, todas as aves começaram a abrir o bico, a alongar o pescoço, a esticar as asas e a inclinar respeitosamente as pequenas cabeças em direcção ao solo, e a mostrar através dos movimentos e dos seus cantos que as palavras do Pai Santo lhes causavam uma grande satisfação. E S. Francisco alegrava-se e deleitava-se com elas, e maravilhava-se ao ver uma tal multidão de aves, da sua tão bela variedade, e da sua atenção e familiaridade…”.

Os pássaros oferecem-nos também o espetáculo de muitos momentos de bem-estar, de diversão, de quietude, de despreocupação e serenidade.

Não precisamos de ir mais longe. Ver uma galinha tomar um banho de terra dá-nos uma ideia do que pode ser uma das maiores felicidades do mundo.

Acreditem ou não, mas quando terminei de escrever este texto, um belo melro com as suas penas negras brilhantes e um ar curioso fez-me uma visita durante alguns instantes no peitoril da janela. Alma dum poeta descontente? Poder tutelar ou um anjo da guarda? Ignoro completamente a razão, mas a sua presença muda e segura ainda me perturba agora, como a luz de cada manhã de maio.