No momento em que se retoma toda a preocupação com a escola e o «eterno regresso» dos conceitos de como educar, também a mim me interpela esse universo de uma forma nova. Nasceu há exactamente um ano, dia 9 de agosto. Como ele é recente nesta terra. Os primeiros meses passou-os com o rosto mergulhado no seio da mãe que o alimenta. Nunca se separam, esses dois, o que torna as poucas visitas algo ciumentas por não pertencerem a esse mundo mágico e fusional. Pouco a pouco foi abrindo os olhos sobre as coisas e os seres. Mostra- -se surpreendido, estupefacto, por constatar a existência dos outros depois de alguns meses de confinamento. Tudo isto acompanhado por sorrisos que põem à vontade ou em êxtase qualquer ser humano que o vê. Ainda não viu nada da verdadeira vida, este inocente. Há tanta coisa para descobrir. Não pode imaginar que o universo irá limitar-se, durante a vida, ao que gira à volta da sua pequena pessoa. Nem que tudo vai resumir-se à ternura incansável da mãe, às carícias apoiadas dos avós omnipresentes. Será preciso pensar desde já que tem de ser prevenido sobre tudo o que o espera? será necessária a crueldade de lhe dizer a verdade sobre a forma como, na realidade, as coisas e as pessoas funcionam na nossa velha terra ? Seria desperdiçar a inocência da sua primeira juventude; seria correr o risco de desencorajar uma jovem vida nos seu princípio, dissuadir desde logo toda a força de optimismo e capacidade de vitalidade feliz. Não se destroi uma energia no seu despertar. Tão perto do seu nascimento, pode-se fazer muito melhor do que pintar a um menino puro e sem qualquer mau pensamento um quadro representando tudo o que o homem é capaz de inventar no domínio da maldade e da violência, das guerras, das fomes organizadas, das dominações, dos cortejos de refugiados onde se vêem tantas crianças e bebés à espera diante de tanques cheios de água, algo tão raro por esses lados, corpos de afogados no mediterrâneo. Sem falar da abominável estupidez, esta vigorosa imbecilidade que leva tantas pessoas a separar-se, a dividir- -se, a odiar-se, a oporem-se uns aos outros com a única finalidade, dir- -se-á, de acabarem sozinhos na terra, sem o aborrecimento dos que são diferentes. Não, por favor, vamos poupar-lhe estes horrores ainda que estejamos impacientes para o prevenir, para que possa encontrar caracter e valentia para enfrentar e dominar tudo isso, mais tarde. Contudo não se espalham num berço os horrores e bestialidades de que é capaz o ser humano. Há prendas mais simpáticas. Neste estádio do seu desenvolvimento, limitemo-nos a anunciar- -lhe aquilo que, na sua vida futura, pelo menos é o que esperamos, será para ele fonte de alegrias e satisfações de toda a ordem. Descrevamos-lhe a opulência das coisas belas, a magnificência das paisagens terrestres das quais não tem ainda a mínima ideia; falemos-lhe das montanhas que escalará quando for grande, às costas dos pais antes de o fazer sozinho. Façamos-lhe ouvir a fonte palpitante de água pura e o canto do riacho percorrendo a verdura dum prado tranquilo. A catarata duma cascata sobre o rochedo e a suavidade do tapete húmido duma floresta profunda. Evoquemos aquilo que poderá ser o prazer de contemplar um céu imaculado duma beleza de gelo no fundo dum lago duma montanha cheia de neve e a impressão feliz que provocarão nele o canto dos pássaros das auroras radiosas duma primavera que estará sempre de volta. Mostremos- -lhe como se podem oferecer flores e toalhas de lindas cores às avós na festa da vindima para retardar o inverno e as 52 semanas do ano. Haverá tanto e tanto para lhe contar e prometer estes pequenos pedaços de felicidade simples que reserva uma existência, que seriam precisas muitas páginas para fazer uma lista parcial de tudo isso. Será preciso mostra-lhe e contar-lhe o sorriso das pessoas simpáticas e amáveis que estão perto de nós, a beleza dum rosto dum transeunte que passa a pé, num autocarro, ou num comboio. O sorriso duma rapariga bonita que se volta para trás. Ficará essa recordação para toda a vida mas nunca mais será vista a não ser em sonho. Será necessário fazer valer mil e um encontros e gestos de solidariedade, mãos estendidas que socorrem após um drama ou um crime cometido por desconhecidos cobardes, como quando surge um atentado que desperta o sentimento de pertença a uma grande família humana da qual se diz : esta vale a pena. Será preciso dizer-lhe, ao miúdo, quando for mais crescido, que quando aprender a ler e a escutar, terá acesso às maravilhas acumuladas da literatura, às melodias perturbantes da música, Mozart, Bach, Verdi : as suas criações esperam sabiamente o menino em discos que não se usam. Parecidos aos milhares de filmes, obras primas que esperam os nossos desejos de os ver. Será preciso vislumbrar que um dia, talvez, ele possa também pretender tocar um instrumento para fazer vibrar a vida. Ou uma pena para a descrever. Até que, como qualquer um de nós, cruzará o amor no olhar de outra pessoa, apaixonado tanto quanto possa e cheio de projetos… Nunca chegaremos a terminar de lhe contar a beleza da existência, a este menino cujo olhar nos comove e o sorriso nos ilumina a alma. É preciso dizer-lhe a riqueza da poesia, a maravilhosa pintura, e os talentos dos génios de outras épocas, de todas as categorias, de todas as nações. Essas pessoas que foram também elas bebés vendo a vida com avidez e interrogando-se sobre a forma como as coisas giravam à sua volta e em que mundo viveriam. Esse menino de Bragança, por enquanto, afastado de toda a infelicidade humana bem à sua frente, disponível para viver os aspetos positivos e as juventudes perpétuas da existência. Acaba de chegar. Vai ver tudo. Atravessará as portas do futuro. Tudo lhe é permitido e possível. Amámo-lo e quase temos ciúmes pelo que ele é e pelo que virá a ser.