Adriano Valadar

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SE PENSARMOS … QUASE NOS TORNAMOS VEGETARIANOS

Neste período do ano, rodeados de “ Feiras de sabores” e de pratos bem recheados de carne, esta reflexão poderá até ser inoportuna ou ofensiva para muitos, ou talvez não! O que é certo, é que nos dias que correm por todo o lado circulam imagens insuportáveis de animais maltratados aquando do seu transporte para o destino previsto ou para os matadouros; e aqui assiste-se a práticas tão chocantes como por exemplo a matança de fêmeas prenhas cujo útero é aberto à facada e os fetos deitados fora no meio das vísceras. Exagerado? Não. Legal? Sim pelos vistos!
Acredito que há alguma hipocrisia neste espaço, quado nos são apresentados os animais que são abatidos e, de repente, toda a narrativa é acompanhada de imagens chocantes e nos dizem que é terrível. É efetivamente aterrador, não somente quando é filmado clandestinamente nos matadouros. Há um momento em que o animal tem de morrer claro, tendo sido eletrocutado antes. Mas se a corrente não passar, um homem com uma marra mata o animal pois o problema tem de ser resolvido. Diz-se que é uma monstruosidade o animal ser eletrocutado. O que será melhor? Quem não tem presente a matança do porco?! Bonito de se ver também!
Contudo todas estas imagens servem para nos fazer pensar e isso é o mais importante. Se pensarmos no que se passa no nosso prato, uma posta ou umas costeletazinhas de cordeiro bem suculentas, encontrámo-las excelentes, mas de repente, se pensarmos que fazem parte dum animal que foi morto, aquele cordeirinho, etc, etc, quase nos tornamos vegetarianos. Todos vivemos essas contradições seguramente. O consumo de carne, é melhor não pensar. Se comemos carne é porque não pensamos, se começarmos a pensar a montante do nosso prato, efectivamente encontramos que é inaceitável. Num matadouro stressam-se e matam-se animais.
Que é preciso reduzir o consumo da carne, não consumir nenhuma, talvez ou sem dúvida, não pensamos bem nessas coisas certamente. Trata-se dum facto de civilização, cada vez que penso na carne, penso seriamente que a verdade está do lado dos vegetarianos e de certa forma, mesmo do lado dos veganos. Simplesmente se dissermos que a verdade está do lado dos veganos, então não pode haver animais domesticados, nem gaiolas, nem jardins zoológicos, nem hipismo ou tourada, nem cães, nem peixes… Estou certo que os veganos nos seus excessos são pessoas que pelo menos nos convidam a pensar melhor ou a pensar na boa direcção.  
Por conseguinte, creio também que estas imagens que nos são apresentadas muitas vezes como sendo de militantes, não o são. Quando se fala tanto em “biológico” hoje, parece que somos enganados, não há morte biológica, conseguir-se-ia imaginar um matadouro biológico? Não passa também duma etiqueta politicamente correta pensar que o feijão-verde ou as laranjas que comemos são produtos biológicos, esquecemos que são transportados do Brasil por avião e que o traço carbónico dum produto biológico é muito pior para a ecologia do que um produto que teve alguns tratamentos e que foi produzido numa horta de Moredo ou do Vale da Vilariça.    
Podemos sempre dizer aos veganos que devem é preocupar-se com o sofrimento humano, mas qualquer que seja o militantismo também, não é por não se ocupar duma determinada causa que esta é mais importante do que outra. Por exemplo, os desempregados, sim, mas recebem subsídio, ou as misérias e guerras na Síria ou na Palestina, pois, mas são povos muito fundamentalistas. Não é uma boa forma de raciocinar pretendendo que há misérias que são preferíveis a outras.
Sem que haja respostas unívocas podemos, no entanto, colocar-nos algumas questões ou reflexões: muitas espécies animais foram reduzidas ao estatuto de produtos alimentícios, a um stock de consumíveis, sim. Muitos animais crescem e são transportados em condições abomináveis, claro que sim. Há uma diferença ontológica entre o homem e o animal, evidente. Efetivamente a natureza não é uma democracia, mas a questão pertinente poderia ser: os animais têm um sistema nervoso idêntico ao nosso e podem sofrer? A resposta é claramente afirmativa. Proclamar-se mestre e proprietário da natureza não implica nem sadismo, nem a redução dos seres vivos à condição de máquina de carne.

A neve

Caíram alguns flocos de neve nestes dias, o que nos faz começar a lamentar já a sua grande ausência a cada ano que passa. Toda a nossa região se recorda desses dias com uma grande nostalgia. A manhã em que a cidade acorda em baixo dum imenso manto branco, quase sem acreditar no que vê. E sobretudo no que ouve; nem um barulhinho se sente, nem um ruído de motos, nem carros a apitar, nem a omnipresença dos camiões do lixo que vão engolindo com grande barulho os restos dos nossos excessos. Ninguém passa nos cruzamentos nem nos semáforos…
Ao ponto de nos perguntarmos onde terá passado a humanidade que habita, trabalha e circula todos os dias na cidade. Aquela que todas as manhãs vai povoando automaticamente com todo o tipo de polifonias os espaços urbanos. Dir-se-ia que a cidade se retira para o campo, para refletir. Além disso, torna-se mais bela até nos seus pormenores. Curvas mais apaziguadas cobrindo o “mobiliário urbano”, todas as sujidades que se vão deixando nas varandas com o projeto de as deitar fora. A leveza pacificadora de todo este material que se torna imaculado dando a oportunidade a cada objecto de nos seduzir com as suas formas. Os automóveis tornam-se todos da mesma marca, embrulhados no mesmo manto branco. Faz-nos pensar como numa página branca à espera dum novo texto. Ou num lençol, ou melhor, num sudário que é colocado sobre os homens e as suas obras, para arredondar os ângulos, cobrir os cenários do jogo social das aparências, talvez para colocar uma máscara sobre as coisas que nos envergonham. Aquele branco arminho da neve que vai tão bem com o silêncio, com o recolhimento, com o pensamento naqueles que nos vão deixando neste murmúrio. Vai caindo devagarinho sobre nós. Será a neve um sinal que nos envia a natureza ou quem manda nela a fim de nos despertar da pressa e inconsciência dos outros dias! Despertar-nos-á também da arrogância em que vivemos, nós que pensamos permanecer infinitamente numa bolha sem ter contas a dar ao criador? Na verdade, penso que a neve não cai por acaso do céu. E não é por acaso também que cai imaculada e se torna salgada e escura mal nos metemos com ela.
Bem entendido, tudo isto são pedacinhos efémeros de vida, de representações, de meditações, vem rapidamente a preocupação de a pisar, o “Cláp! Cláp!” dos pés com medo de escorregar a cada passo. A insatisfação do povo não tarda a instalar-se nas conversas: “O que é que fazem a Câmara e a Proteção civil para não tomar medidas e limpar esta neve?!” Porém, os gritos das crianças (especialistas da neve, aptos espontaneamente a saborear os seus encantos e raridade), os pequenos “trenós” improvisados pelos estudantes e alguns pais, dão sempre uma luz nova à cidade. A neve restaura os direitos das crianças e dos adultos na cidade. Uma cidade que se torna momentaneamente pura, um esboço de página branca que nos deve solicitar todos os dias. Um parêntese espantoso na rutina. Não muito prático, contudo magnífico. Vem mais uma vez, por favor.

 

VOTOS

Deve haver forma de saber os milhões de mensagens enviadas nestes dias, mensagens de votos de Boas Festas por SMS, ou seja através dos telemóveis. Tornou-se um costume muito simpático ainda que a originalidade das mensagens em questão não esteja estabelecida. Boas Festas e um Próspero/Feliz Ano Novo. E que mais? A cogitação destes dois desejos pode abrir outros horizontes ou evita o cansaço para imaginar outra coisa mais concreta, mais desejável? Nos comércios, antes de comprar um pão ou um jornal, nestes dias é preciso preceder o pedido de um “Boas Festas!”, “Bom Ano!” automático. Na Internet os correspondentes dirigem ao conjunto dos “amigos de facebook”, flores, chalés suiços, paisagens glaciares, rostos de crianças felizes, acompanhados da mesma declaração. Como se cada amigo próximo ou das relações mais afastadas tivesse direito a votos da mesma intensidade.
A originalidade não é a qualidade principal desta troca de mensagens. Não é certamente motivo suficiente para renunciar a esta crença mágica (ou afetada) que consiste em acreditar que as nossas palavras possam ter um efeito sobre os acontecimentos futuros. Sabemos todos pertinentemente que os nossos desejos não exercem qualquer influência sobre as pessoas e as coisas. Que importa! São salutares estes sorrisos, estas palavras simpáticas, estes beijos sem fim, estes abraços anuais. Passamos tanto tempo, geralmente, a dizer mal uns dos outros, a maldizer os poderosos, a tentar esmagar os medíocres com o nosso desprezo, a invejar uns e a desassossegar os outros, que só faria bem acreditar, alguns dias por ano, que tudo será melhor a partir de agora.
Os votos de Bom Ano emitidos, porquê limitá-los aos mais próximos? Aos íntimos, aos conhecidos. Há muito a dizer no domínio do desejável. O campo para espalhar flores de inteligência e retórica que fazem o charme constantemente renovado de Bom Ano é imenso.
Este ano os objetivos não faltariam. Não seriam demasiados todos os dias do ano de 2017 para recitar a litania de objetivos de melhoria da vida neste nosso planeta. Por onde começar, uma vez tratado o nosso círculo mais próximo e imediato? Pela austeridade musculada que nos impuseram, que seja afastada à mesma velocidade que se fundiu sobre nós há já uns anos atrás. Façamos votos para que o capitalismo seja “reinventado”, como parece ser prometido todos os dias. Desejemos que os paraísos fiscais sejam banidos do mapa do mundo. Desejemos que os potentados da finança, os ditadores dos mercados tenham um olhar mais atento para a humanidade que sofre e lhes dê dignidade. Desejemos que os europeus, tanto os dirigentes como os povos, se tornem mais europeus e que não renunciem à bela aventura comum. Desejemos que o turco Erdogan cesse de colocar o seu país no caminho do autoritarismo, virando costas às liberdades que pareciam querer levar este país a aproximar-se da Europa. Que o jovem da “malga na cabeça” suposto dirigir a Coreia do Norte pare de se tomar pelo deus vivo no país do comunismo congelado. Que seja afastado, da maneira que for possível, o sinistro e sanguinário Assad que massacra o seu povo de forma tão cruel. Que o seu colaborador e cúmplice Vladimir Poutine seja derrotado e destronado. Aos árabes de todas as nacionalidades que saiam do Inverno do Islamismo fanático e sanguinário, onde já se conheceram pedacinhos de primavera. Que a Síria, o Iraque e o Irão reencontrem as virtudes dos grandes impérios que foram. Desejemos aos chineses, trabalhadores incansáveis, para se implicarem por fim nos caminhos da liberdade, desembaraçados da carapaça de um comunismo de fachada. Ao presidente americano de retomar o Sonho que moveu o anterior presidente no princípio do seu mandato. Desejemos ao nosso António Guterres – o anterior, Ban Ki-moon, parece também ter recebido dinheiro líquido - a coragem e a sabedoria para liderar tamanho projeto para que os dirigentes deste mundo o ouçam e se possam mover por sendas mais morais.
Seria já enorme, poder atingir estes objectivos. Mas há outros. No domínio das mudanças climáticas; desejemos que se passe da retórica à ação. Que as guerras em África, sempre atribuídas aos “conflitos étnicos” que escondem outras tensões, outras fontes de injustiça parem de desencorajar os amigos deste continente e destes povos. Que Angola e Moçambique encontrem a calma. Enfim, o que desejamos ver neste grande saco de desejos? A Paz e a felicidade universal? A prosperidade geral? A justiça espalhada por todo o lado? As desigualdades por fim vencidas? Evidentemente que tudo isto não poderá ser feito num só dia, nem em trezentos e sessenta e cinco. Há muito que procuramos estes ideais. Estamos vacinados contra estas ilusões e contra as pretensas soluções. Mas haverá alguma razão para deixar de acreditar no homem, na humanidade e na sua vontade de se aperfeiçoar? Se pensarmos que nada muda, porque nunca nada se alterou, para quê preocuparmo-nos com o futuro, e tentar construi-lo? Muito disso só existe nas nossas cabecinhas. Ou esperamos, petrificados, que aconteça o que tem que acontecer, ou arregaçamos as mangas e pesamos sobre os acontecimentos. Sabendo que depende de todos nós a cor do futuro, na soleira dum novo ano a dimensão da empreitada não nos deve desencorajar, podemos com ela. Atesta pelo contrário da necessidade que o mundo tem de nós, das nossas revoltas, das nossas fidelidades, dos nossos valores positivos, da nossa resistência ao medo.
Os votos? Mais necessários do que nunca.

Natal (re)decomposto

Da mesma forma que se fala hoje DAS família e não DA família, poder-se-á falar DOS Natais e não DO Natal. Há evidentemente uma correlação entre a composição das famílias e a decomposição do Natal. 
Para os filhos, as vantagens em termos de qualidade das prendas são evidentes: avós e pais, juntos ou separados, querendo todos passar o Natal com eles, é a reunião da família e a distribuição das prendas que se sobrepõe à data: alterada pelos que vão de viagem, no dia 24 à noite e 25 ao meio-dia não bastam para esgotar as configurações familiares. Porque se o Natal se festeja em família, as famílias – dever-se-ia falar de clãs ou tribos – misturam-se pouco. Vejamos um casal com filhos. Primeiro Natal em casa dos pais da Senhora, o segundo Natal em casa dos pais do Senhor. Este casal tendo irmãos e irmãs, o quebra-cabeças começa logo quando se trata de encontrar a data da irmandade que tem as mesmas obrigações que o casal para poder reunir-se. 
Se os pais estiverem separados, aquele que não tem a guarda na noite de consoada sentirá umas palpitações no peito apesar de ter previsto outra festa porque lhe parece incompreensível não festejar o Natal com o papa ou a mama: é preferível cortar o Natal e a criança em dois a ter de passar as festas juntos. Quanto a reunir todos os filhos duma família que vivem em guarda alternada, isso releva duma sincronização, duma plasticidade e duma diplomacia fora do comum. Aquele que inventar a aplicação que possa dar a fórmula mágica, a receita adequada e a prenda apropriada fará seguramente fortuna. 
Há um rito de passagem de que se fala pouco: é quando os pais convidam os avós para passar o Natal em casa. Momento crucial na vida de um adulto – e nem sempre coincidente dos dois lados – em que o indivíduo se torna furtiva e discretamente o pai dos seus pais. As duas famílias encontrar-se-ão finalmente reunidas? Nem sempre, o que fará ainda muitos mais Natais para organizar. Será mais fácil para os avós? Nem sempre quando têm vários filhos que querem todos convidá-los. Ir a casa de quem, sem que a preferência seja demasiado visível ou manifesta? Os juízes entregues aos assuntos familiares ainda não instauraram a guarda alternada dos avós em caso de conflito.
Estes constrangimentos de Natal cuja lista está longe de ser exaustiva dir-nos-ão algo sobre as famílias dos nossos dias? A criança continua a ser o centro do Natal para o melhor e para o pior o que implica raptá-la para as Festas de fim de ano. Sem filhos, pode ser triste, mas há menos problemas se tivermos em conta a excelente frequentação dos espectáculos no dia 24 de Dezembro. Os filhos dir-nos-ão mais tarde quais as recordações que guardam dos Natais divididos em função das tensões ou incompatibilidades familiares das quais são as principais apostas aparentes. Todos temos recordações da infância de Natal, mais raramente das prendas que recebemos. E todos os anos, encontrámo-nos confrontados com o dilema de reproduzir o que conhecemos e vivemos sabendo que tudo mudou ou simplesmente para nos demarcar estando consciente do peso das tradições, das famílias e… dos FILHOS! 

A mendicidade

Face à mendicidade, cada um de nós é regularmente solicitado, sente-se incomodado ou não, dá uma resposta refletida ou impulsiva, sem ser fácil nomear o que fazemos ou não. 
Alguém tem uma receita ou doutrina quando cruza um mendigo na rua? Coloco-me esta questão sempre embaraçosa e frequente quando passo à sua frente aqui ou ali, cada vez com mais frequência.
Observo os que passam e têm mais ou menos o mesmo comportamento que eu. O que fazer? Frente aos comércios, restaurantes, lugares turísticos, igrejas, nos semáforos cruzam-se homens e mulheres acompanhados de crianças, de animais, sentados ou em pé, por vezes algo afetados mentalmente. Cada um com a sua forma diferente de abordar os transeuntes.
O que se pode fazer ? Antigamente o mendigo tinha sempre um défice cognitivo qualquer e era alvo de brincadeira ou troça, contudo parecia-nos um ser alegre. Agora aparecem-nos cada vez em maior número, sobretudo nos grandes meios urbanos, é porque a precariedade aumenta ou será uma simples impressão por se encontrarem em lugares de passagem? Sem quaisquer restrições, a mendicidade só se torna delito se for desenvolvida de forma agressiva e sob ameaça dum animal perigoso, o que não se revela ser frequente.
Cada um de nós é portanto regularmente solicitado, encontra-se incomodado ou não, dá uma resposta refletida ou impulsiva, sem que seja fácil nomear o que fazemos ou não como já referi. Não existe, em meu conhecimento, nenhum estudo ou inquérito sobre os que dão, talvez haja algum estudo de terreno do Instituto de Filantropia sem projeção ou interesse para o grande público. 
Tentei fazer a minha pequena pesquisa e inquérito pessoais perto das pessoas que conheço aqui e nos centros urbanos maiores. 
Na rua, o seu ponto comum é não dar nunca dinheiro às crianças a fim de não encorajar a sua exploração. Assim, cada um pratica-o à sua maneira anteriormente refletido em função do humor do dia. Um não dá nunca na rua sem se encontrar num determinado estado de espírito. Muito generoso além do mais, acha que é um dever dar, sente-se outro por ser responsável pelo que deu. Outros escolhem dar sempre às senhoras, ou ao contrário, nunca dar às senhoras ou sempre e exclusivamente aos músicos. À saída da igreja ou da pastelaria ao lado, os fiéis sentem a obrigação de fazer uma boa ação.
Não conheço ninguém, apesar de isso existir, que agrida um mendigo pelas suas observações despropositadas, mal- intencionadas ou agressivas, mas a indiferença ou o facto de passar ao lado evitando o olhar ou negando a existência da pessoa podem constituir uma forma de agressão. Esta indiferença é uma máscara de cada um de nós, pois é raro que a presença dum mendigo não suscite qualquer reacção- seja ela negativa – seja ela positiva.   
São mais os sentimentos do que a razão que determinam o ato de dar ou não dar. Estes têm a ver com a relação que se prende com o olhar, com os gestos, com as palavras. Uma vez que o medo ou a desconfiança se encontram ultrapassados, quando o diálogo acontece, é por vezes um bairro inteiro que adota um mendigo, um arrumador, assegurando-lhe uma forma de sobrevivência, levando-lhe comida ou roupas quentes mais do que dinheiro. Afeto também: um deles a quem desapareceu o cão ou o gato vê-se ser-lhe oferecido outro em pouco tempo. As crianças gostam de dar apesar de terem que ultrapassar o seu medo ou não compreendem que não se lhes dê nada. Estamos longe do altruísmo eficaz.
Li em qualquer lado que é preferível salvar dez vidas lá no fim do mundo a salvar a dum próximo. Porém, fazer o bem à distância não impede que nos sintamos mal perante a miséria dos mais próximos que não têm nada a ver com os nossos estados de alma. Espero que ao ler estas linhas, não continuem a ver os mendigos da mesma forma.

Olhar para trás

Uma voltinha à aldeia, onde atualmente o sol já se deita muito mais cedo, permanecendo o seu brilho um pouco mais tarde na torre da igreja. Não é uma aldeia deserta mas desertificada. A maior parte das persianas encontram-se fechadas dia e noite.
Olhar para trás de si, qualquer que seja a estação do ano, é contemplar, pelo pensamento, um cemitério cada vez mais vasto onde se levantam silenciosamente as silhuetas dos “nossos defuntos”. É repensar na geração dos nossos pais e dos que foram seus contemporâneos. Mas é cada vez mais, com o passar dos anos, compreender que os mortos de hoje são os nossos contemporâneos, aqueles com quem trabalhámos, caminhámos, convivemos, amámos. Estes rostos obsessivos, que já não passam muitas vezes de fotos armazenadas nos computadores, investem-nos e habitam-nos neste período de luz, cor e perfume de outono. Falam-nos da nossa vida em comum, das paixões partilhadas, do clima dos anos anteriores. Das dificuldades ultrapassadas em comum.
Os mortos são os nossos próximos bem definidos. A partir do momento em que partiram, num estúpido dia de agosto por exemplo, vivem e habitam na nossa memória viva onde se instalaram com direito a tiragem permanente. Nunca os afastaremos e como? Se contaram nas nossas vidas, que continuem a fazê-lo depois da morte. São um recurso permanente para nos ajudar a enfrentar, aguentar e transportar os dias: um casal defunto ou um amigo desaparecido nunca concluíram o seu trabalho dentro de nós mesmos. É como se olhassem por nós, com as suas vozes audíveis, os seus sorrisos perpetuados e a sábia forma de nos aconselhar a relativizar as nossas preocupações.
Ficamos contudo perante uma prova que nada tem a ver com a festa americana que não faz mais do que maquilhar a realidade e o medo. A nossa perspectiva é magnífica, mas aleatória. Nos cemitérios todas as inscrições garantem que os nossos familiares (ou desconhecidos) “descansam aqui à espera da ressurreição”. Esta aposta em forma de afirmação encontra-se no coração da mensagem cristã. Perturbante, apesar de tudo, um tal pressuposto. Difícil de atravessar este mistério. Nada se encontra verificado. Mais ainda; ignoramos completamente a forma como poderiam acontecer as coisas no dia em que essa promessa surgiria. Não conhecemos nem a forma, nem o momento dessa reaparição que vai até ao reencontro do corpo! O nosso corpo com que idade? E em que estado? Não o corpo sofredor dos sofredores, seria um castigo injusto, eterno.
“Transfigurados”, respondem os teólogos desde há séculos. Mas da transfiguração em questão não temos qualquer ideia, qualquer representação. Seria uma “alma” revestida de atributos? Um espírito com uma ancoragem carnal mínima ? Uma forma vaga envolvida por uma tal luz em que nenhum pormenor seria percetível nem necessário? Este mistério faz balançar o nosso imaginário, e deixa-nos no turbilhão do incerto e do improvável. Faz rir às gargalhadas os que não crêem nem em Deus nem no diabo.   
Porém, esta famosa “ressurreição” prometida, porquê esperá-la? Porquê colocar-se numa fila de espera que não levará a nada, nada ao fundo? Para quê, sobretudo, suportar as provas que, no fim da vida, se acumulam tão cruelmente? É preciso consentir ao desconhecimento desta espera e dar sentido aos sofrimentos retirando-lhes a carga de puro escândalo. E admitir que esta espera do desconhecido é a nossa única possibilidade de nutrir a bela virtude da esperança. Loucura, finalmente, esta esperança. Loucura sem provas estabelecidas, sem verificação científica ou experimental, triturada dolorosamente com a razão.
Contudo é talvez o que faz a sua força, esta loucura consentida.

Guerras, guerras …

A nossa impotência, sempre ela. Mina-nos por dentro e faz-nos sofrer. De Sarajevo a Alep, sempre o mesmo sentimento de que nada pode concretamente depender de nós. Não temos qualquer domínio sobre nada, e ainda, apenas, os nossos sentimentos, o grau de horror que suscitam todos estes acontecimentos que nos vão mostrando através de pequenos fragmentos televisivos. A nossa indignação é abafada nas entranhas, a nossa raiva tem muito pouco peso na batalha bem instalada que travam os humanos entre eles. 
Na ONU, como sempre, a regra do veto das grandes potências convém antes de mais aos assassinos, aos corruptos, aos malfeitores. Qual será o Conselho de segurança que vai reunir um dia para mostrar com firmeza os responsáveis nomeadamente designados, pelas atrocidades que desesperam a humanidade? Quem poderá dizer que uma época capaz de gerar um Assad apoiado num Putine é um momento sinistro onde o cinismo em tudo tenta sair vencedor e o consegue quase sempre?
O que podemos nós fazer, na atroz guerra da Síria, em relação ao ditador que, lá longe, sangra o seu povo e tortura as elites. Cerca de 300 000 mortos já, em cinco anos, mas quantos mutilados, humilhados, paralíticos para a vida e vidas ceifadas mal vislumbraram a luz do dia?
Hoje nada podemos fazer, exceto depositar toda a confiança no nosso recém- eleito Secretário-geral, nos eleitos do povo que possam em conjunto adotar uma posição clara e firme neste conflito. Contudo, quando pensamos nos políticos não podemos deixar de sonhar na famosa passadeira vermelha desenrolada aos pés de Bachar Al Assad por Nicolas Sarkozy, novamente candidato à presidência em França. Explica agora com grandes recortes de retórica onde estava o interesse da França e a pedir para travar a marcha dos refugiados para o seu país, onde honravam ainda há pouco tempo o seu carrasco, reviravoltas vergonhosas em relação à ideia que nós temos da França no mundo. Um dia acolhedor dos poderosos assassinos, no dia seguinte fechado às inocências massacradas. Venham falar-nos de “valores” depois de tudo isso.
E venham, uns e outros, falar-nos de Putine e da admiração apenas velada de alguns por este potentado sinistro que está nos bastidores de tantos golpes contra as liberdades e a dignidade humana. Cinismo puro de alguns politicalhos que exibem o temperamento, o carácter, a força dum Putine, um destes homens seria bem preciso para endireitar as coisas, dizem alguns e algumas. A sabedoria calculadora e exportadora da ausência de escrúpulos morais de alguns comentadores de salão são repugnantes quando tentam vender esse modelo de governo e de força que é preciso admirar. Efetivamente não temos nenhum Putine na Europa, e ainda bem, mas temos pequenos marqueses que sonhariam parecer-se com ele, sabendo a priori que não passam de anões ao lado desse gigante da crueldade e da criminalidade.
Tudo isso é excessivo ? À primeira vista sim, mas o que é mais excessivo, entre o dirigente que envia os seus bombardeiros último grito martirizar uma cidade estrangeira, testar novas bombas, destruir caravanas de alimentos e medicamentos conduzidos pela Cruz-Vermelha e um pobre cidadão impotente que tenta fazer uma crónica, batendo no teclado, unicamente com palavras para combater? O excesso é proporcional ao poder que se tem. Contra as bombas e as vossas amizades, Senhores cínicos, dilúvios de palavras não têm qualquer peso. Daí tanta raiva e indignação.

“SER FILÓSOFO”

Além dos alunos que iniciam o estudo da filosofia, ouve-se muitas vezes a expressão quando uma greve paralisa os transportes, quando o tempo nos surpreende ou quando a vida corre menos bem. Há os que se chateiam e discutem e os que se “mostram filósofos”, dizem também os comentadores de rádio e televisão.
Esta interferência mexe com os filósofos de profissão: a filosofia, apesar de tudo, é outra coisa, é Descartes, é Platão. É Kant! Não é uma moral superficial, do dia-a-dia, por favor! Tudo isto, é o fundo de comércio de práticas algo irritantes, um género de sofrologia. Porém, é Descartes mesmo que diz “preferir mudar os seus desejos à ordem do mundo”.
No fundo, se fosse isso mesmo, o papel da filosofia ? Uma sabedoria? O regresso ao sentido etimológico, o amor, filia, da sabedoria, sofia ? 
Os filósofos, em geral, nos seus textos e obras defendem esta ideia da filosofia, inspirada da antiguidade, essencialmente dos Estóicos: os filósofos da Antiguidade grega e romana não eram construtores de sistemas ou de conceitos. Para eles a filosofia, é o desejo de fazer pesar sobre o quotidiano e a vida as disposições de espírito descobertas através da análise e raciocínio científico ou filosófico.
Daí a tradição destes « exercícios espirituais », uma espécie de treino destinado a introduzir no quotidiano os princípios da doutrina. O sentido da palavra foi amplamente desviado pelo uso feito pelo jesuíta, Inácio de Loyola, que os orienta na direção exclusiva da salvação da alma. Contudo a tradição antiga tem um significado bem diferente não no sentido de salvar a alma mas sim de salvar a sua pele: sofrer menos aprendendo a modificar o olhar que nós consagramos aos acontecimentos da nossa vida. E isso vai bem mais além do mundo antigo, por exemplo com Goethe, “Não te esqueças de viver”.
Trata-se de desenvolver a nossa atenção em duas direções: a concentração e a atenção ao momento presente e o olhar do alto. De fugir ao medo do passado e à angústia do que está para acontecer. E de tomar a devida distância em relação aos acontecimentos para melhor os suportar.
Não é exatamente o que pretende pôr em prática conscientemente ou não o aluno que começa a filosofar, aquele que faz greve ou o que passeia solitário, que consegue mostrar-se “filósofo”?
Percebo perfeitamente a objeção. E sobretudo a objeção política. Mostrar-se filósofo face aos defeitos e vícios do mundo, não será finalmente aceitar que nada mude? Parar de se “indignar”, cessar de encontrar insuportável o estado do mundo? É uma verdadeira questão…
Era sem dúvida uma filosofia necessária antes das grandes possibilidades oferecidas pela ciência e a técnica. Recordemos no entanto que haverá sempre coisas que não podemos alterar: como por exemplo a passagem do tempo, a morte. Então, apesar de tudo, guardemos esta ideia da sabedoria quando ela nos diz: muda o teu olhar sobre as coisas se queres ser menos infeliz.

O REGRESSO

Regressaram, estão todos aí. Nas grandes cidades os autocarros a rebentar, as estradas e ruas impossíveis, os corredores dos hospitais. As salas de espera sofrem o assalto geral, a Segurança Social, as Finanças. Nos Correios e no Centro de Emprego, as filas de espera alongam-se inexoravelmente. Para onde tinham ido todos? Durante os grandes dias de calor do verão, tinham-se espalhado pelas praias dos nossos mares, pelos campos do nosso país, pelos caminhos e montes das nossas terras ou, simplesmente, algures, nos longínquos do exotismo, onde ainda se pensa ir sem receio de encontrar algum terrorista cheio de bombas.   
É como se tivessem nascido durante as férias, esperando o nosso regresso para se instalar nas nossas paragens, para nos sugar o ar. Quando se reencontra a casa ou o apartamento, depois das férias, depois duma longa ausência, somos agarrados pelas coisas que havíamos deixado, à espera de serem resolvidas. Papéis diversos em micas, desafiam-nos desde o primeiro olhar. Alguns livros que tínhamos deixado adormecer tranquilamente, tendo negligenciado extrair as “leituras de férias” estão exatamente no mesmo lugar. E os manuais das editoras dos professores, ainda embalados, o que fazer?  Todas estas obras perderam uma estação na ordem das nossas prioridades. Lê-las-emos um dia? Talvez nunca mais, mas como separar-se delas ? Um livro guarda-se sempre. 
A atualidade, pelo menos, deveria reservar-nos algumas novidades, algumas « notícias ». No entanto, patavina! Sopram-nos aos ouvidos os mesmos nomes, os mesmos dossiês insolúveis, as mesmas e vãs polémicas sobre tudo e nada. Tínhamos sonhado, ao partir, nunca mais ouvir falar dum tal fulano, desembaraçarmo-nos definitivamente das coisas dum tal sicrano, das mentiras da Coisa.
Mas é mais forte do que nós, este regresso de férias, como das anteriores, torna-se no momento de encontro com o que não desejávamos. Não temos nada, por exemplo, contra Durão Barroso, e pronto, acabadinhos de chegar das alegrias do silêncio da aldeia, aí está o ator novamente instalado à nossa frente. Estes especialistas da ambiguidade do mundo da finança, servem-nos novas explicações acerca das mentiras e das dissimulações que nós ignoramos completamente.
A mesma coisa, francamente, em relação aos gritos de outros políticos como a águia marinha, Assunção Cristas, que vê incompetências, dificuldades e becos sem saída por todo o lado. Ou o seu chefe, na sua forma de se enlear incessantemente numa dignidade forçada, como um imperador romano das feiras medievais, suscita uma forma de cómico e de repetição. Acusar incessantemente para destabilizar o governo é exasperante de denegação o que cansa os cidadãos descansados que pensamos estar. Tudo isso é de nível inferior aquele em que se deve situar um desesperado candidato a primeiro-ministro. Algures, a atitude como sentimento não é mais brilhante, o dejá vu, e ouvido. Catarina Martins continua firme nas suas posturas: “ Não deixarei dizer que” isto ou aquilo, “ o BE não tolerará que se faça …” isto ou aquilo. O chefe do governo, com a sua atitude imperturbável, habitado por uma convicção exagerada, é como uma planta lisa e tenaz que se encontra no vaso, algumas semanas de abstinência depois, sem se ter pensado nela em todo o verão. Está sempre presente, quase tanto como o Presidente da República que parece sofrer de claustrofobia.  
O (re)moinho dos atores da atualidade não aproveitou o verão para renovar o seu stock de bobines. Reencontramos as mesmas figuras, os mesmos papéis, em cena como na sala, com jornalistas que, por falta de renovar o interesse dos debates que nos narram, simulam a novidade mudando de tribuna, de estúdio ou horário. O dueto cantante do jornalismo e do político tenta encontrar o caminho das nossas paixões mas verdadeiramente já não consegue. 
Por enquanto, temos ainda a cabecinha atrás, os olhos na retaguarda, à beira dos riachos e dos campos onde estivemos tranquilos, na verdura fresca onde o silêncio nos protegia, nas casas onde dormem as recordações e os rostos daqueles que amávamos. Podem agitar-se como quiserem como se nada tivesse acontecido nas nossas vidas complicadas. Nada poderão fazer que possa captar a nossa atenção além dum vago franzir de sobrancelha ou dum morder de lábios de desgosto. Por todo o mundo, o homem sofre e sangra das actividades do homem; ditadores que se prendem ao poder com armas em punho, migrantes que continuam a arriscar a vida pretendendo atravessar o mar para se juntar ao nosso paraíso terrestre. Paraíso, verdadeiramente? Paraíso das aparências, certamente.
Está um tempo fantástico, e se voltássemos para férias?!

Prático

As férias permitem-nos momentaneamente fazer algumas arrumações que vinham sendo adiadas ao longo dos meses, por vezes dos anos. E reconhecemos todos que os objectos têm uma relação com o tempo que nos derrota completamente. 

Compactam-no, reduzem-no, como se estivessem apressados em desaparecer. Fizemos todos, por diversas vezes, a experiência aquando duma avaria, que um produto comprado há pouco tempo (três ou quatro anos) estava bom era para deitar ao lixo. Ouvimos todos a fórmula recorrente segundo a qual isso “ ficar-lhe-á mais barato comprar um aparelho novo” em vez de substituir uma peça defeituosa, da qual, além do mais, não estamos certos de que ainda se fabrique nas fábricas da Europa Central ou da Coreia de donde eram importadas no longínquo passado de 2008 ou 2009… “ Eu, diz o empregado, no seu lugar, sei bem o que faria.”

Este desgosto comporta um nome correspondendo à vontade presumida dos fabricantes: a “obsolescência programada”. É no momento do fabrico, com efeito, que se pode melhor organizar a deficiência dos objectos, prever o que, neles, se tornará o “elo fraco” que justificará a sua substituição. Um ferro de passar cujo fio, tendo-se desfiado, se torna perigoso? “ Temos muita pena- nem olha para si - não pode ser reparado, porque esse tipo de fios já nem existe.”

Um frigorífico que, de repente, faz um barulho de malhadeira? “ Ganha mais em substitui-lo por um modelo recente, particularmente silencioso. Além disso o motor do seu já nem se encontra no mercado!” Um aspirador que entregou a alma desde a mais tenra idade (três anos)? “ Lamentamos mas a peça já não se encontra em lado nenhum. Posso mostrar-lhe modelos bem mais recentes.”

 Poder-se-iam multiplicar os exemplos destas desventuras exasperantes que vivem os consumidores, em todos os domínios, dos electrodomésticos aos automóveis. Até aos telemóveis - quantos tem espalhados pelas gavetas cada casa?- os “iFones”, a Apple não os repara quando estes já têm dois ou três anos!

Esbanjamento, lixeiras de equipamentos praticamente novos e não tendo ainda atingido o que, num ser humano, se chamaria a idade da razão.

Nostalgia, dirão alguns, dos tempos em que certos amadores podiam fazer funcionar um “404” ou um “Datsun 1200” durante dezenas de anos com a ajuda dum amigo mecânico ou da oficina mais próxima. Do tempo em que qualquer motor ou máquina podia aguentar um quarto de século. Furor de sonhar à quantidade de minerais, de terras raras, de vidro, de petróleo, de trabalho que foi necessário consagrar para produzir todas estas obsolescências programadas. Raiva perante a má-fé dos responsáveis deste desperdício que, com grande lata de “bons comunicadores”, explicam que não, nem pensar, que tudo na sua loja é feito para durar. Que voltem os tempos das reparações e dos reparadores artistas e geniais.