Adriano Valadar

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Reconciliar-se

É uma palavra sinal dos tempos, uma palavra difícil hoje nas trevas dos conflitos, das guerras, das tragédias sangrentas, mas também entre todos nós, nas diversas comunidades que formamos. O Santo Papa, Paulo VI, em 1975, exortava a juventude – com quem ele tinha uma relação muito próxima- a trazer esta palavra “para o vocabulário das (suas) esperanças”. O vocábulo em questão, reconciliação, significa literalmente “unir-se novamente”. Poderemos nós unir-nos novamente, após uma dilaceração, depois do abismo do rebaixamento, duma raiva cega, e agindo sobre a nossa própria violência e a violência do outro? Não é certo, na minha opinião, que a reconciliação seja uma simples reparação, um ato que nos reconduza a uma mesma situação anterior. Pelo contrário, deve ser entendido que a reconciliação abre algo novo na relação. Transforma mais do que restaura. (Pode ser banal, mas tenho como prática procurar a etimologia da palavra – e a diacronia - pois permite-nos encontrar a carga histórica que transporta o vocábulo); a raiz grega do verbo katallassó (termo eminentemente paulino), que se traduz por reconciliar, evoca uma mudança, um “tornar-se outro”, um “fazer diferente”. A reconciliação transforma as partes presentes e faz com que o próprio relacionamento evolua. Reconciliar significa fazer diferente, criar surpresa e algo novo. Reconciliar significa fazer diferente, criar surpresa e algo novo ou inédito. A reconciliação não pode, portanto, significar apenas o regresso à situação anterior ao conflito, à violência - situação em que as sementes desta violência eram vistas com mais frequência. Rejeito também a ideia romântica duma reconciliação que traria harmonia ou equilíbrio de forças opostas, numa espécie de dialética hegeliana. Não, a reconciliação só é possível reconhecendo o nosso desequilíbrio, as nossas fraquezas, e é também, ainda mais misteriosamente, concordar em unir-nos confiando e estribando-nos nas nossas feridas e nas nossas amarguras. No trauma da violência sofrida e exercida. Aquilo que o filósofo checo Jan Patocka (um dos mais importantes contribuintes da Fenomenologia e da Filosofia na Europa Central do século XX) magnificamente chamou de “a solidariedade dos abalados”. Nas trincheiras da guerra, os combatentes vivenciam uma “transmutação de todos os valores sob o signo da força”, a tal ponto que alguns encontraram uma forma de superá-la. Solidariedade daqueles que entendem que, levados pela violência, esta violência foi-os dominando e fez-lhes perder tudo. “A solidariedade dos abalados constrói-se na perseguição e nas incertezas: esta é a sua frente silenciosa, sem propaganda e sem brilho.» No campo de batalha, escreve Patocka, “o inimigo é aquele com quem podemos chegar a um en- tendimento na oposição, nosso cúmplice na agitação do dia, da paz e da vida” (Ensaios heréticos, cujo interessante prefácio é do Sociolinguista e amigo francês Paul Ricoeur). Se houver reconciliação, ela só pode vir deste abalo das consciências. Perante o desencadeamento da violência, a nossa e a dos outros, como é que podemos trabalhar para uma possível reconciliação? Esta questão está bem presente, bem à frente dos nossos olhos. Deveríamos testemunhar “o avanço da vida durante a noite”, para usar outra expressão de Patocka. A reconciliação não deve querer restaurar, entre as ruínas, os escombros do passado, mas inventar, encontrar o que resta, apesar do conflito, duma promessa não cumprida, um instrumento perdido na empreitada para recomeçar tudo de novo. Na linguagem cristã, a reconciliação é uma graça. Ou seja, uma resposta inédita a um pedido impossível, que não sabíamos, ou não queríamos, poder formular.

Pode-se ensinar a respeitar os animais?

Esta rentrée 2024 - pelos acontecimentos que se vêm manifestando e aos quais a imprensa nacional e internacional tem dado um largo destaque - suporta um “ensino moral e cívico” adicional, o do respeito que devemos aos animais de estimação. Não é simplesmente uma questão de sentimento, de proteção, nem mesmo de amor, mas sim dum dever de respeito (“o devido respeito”). É certo que falando de animais sempre se privilegiou o psicologismo ou o neuronal para falar da empatia em relação aos animais. Desta forma, através da palavra respeito, encontrámo-nos plenamente na questão moral e no civismo. Toda a dificuldade é saber se esse respeito deve basear-se no facto de os animais serem dotados de sensibilidade, de poderem sofrer e sentir como nós. Se for esse o caso, então a moralidade deve basear-se nos sentimentos, aqueles que temos pelos nossos animais de estimação e aqueles que eles próprios sentem. Devemos respeitar tudo o que vive, plantas, animais e humanos. Objetar-me-ão que a escola tem muitos outros problemas a enfrentar e resolver além destas questões triviais baseadas no respeito pelos animais. A falta de respeito talvez seja sobretudo e antes de tudo a dos alunos, dos pais, dos políticos e da sociedade em geral, para com o conhecimento e a pessoa dos professores. Mas é exatamente isso: com o ensino do respeito, encontrámo-nos confrontados com a questão moral. Isto é o que mostrou claramente o filósofo Kant. O que diz Kant? Que, como “pessoa” livre, o ser humano possui uma dignidade que o coloca para além de qualquer preço, de qualquer instrumentalização e que exige respeito. Uma pessoa não é algo que possa ser descartado como bem se entende. A moralidade não precisa de forma alguma de sentimentos para ser realizada: se se baseia no respeito, é porque envolve um dever, ou seja, a capacidade de agir por princípio, porque o devo a mim mesmo e aos outros. Para Kant, só os humanos são pessoas. No entanto, acredito que é possível alargar o respeito aos animais. A moral de Kant ainda tem algo para nos dizer hoje em dia, algo que é crucial: não podemos ser seres morais, somente com bons sentimentos. Não é porque o animal é dotado de sensibilidade, que pode sentir prazer ou dor, não é simplesmente porque está vivo, que devo respeitá-lo. Eu tenho que o fazer porque é a minha própria humanidade que assim o quer. Uma moral baseada na sensibilidade seria imediatamente limitada: abster-nos-íamos de qualquer maltrato a um gatinho, mas o que aconteceria a uma ostra, a um porco, a um rato? A moralidade exige ir além da empatia. Devo ser capaz de respeitar a todos, não apenas alguém que me toca ou se parece comigo. A simpatia é sempre limitada, tem os seus círculos e os seus membros, enquanto que a ética obriga a ir além do afeto. É disso que o animal me lembra: o facto de que existir humanamente é existir moralmente. Ser, para um ser humano, é ser um sujeito moral, preocupado com o bem e o mal. Isto é estar eticamente preocupado – o que devo fazer? Fiz o que é correto? Faltou-me coragem? Portanto, não é, na minha opinião, enfatizando as semelhanças entre animais e humanos que uma ética animal pode ser defendida. Não é porque os animais, como o homem, são seres sensíveis que devemos respeitá-los, mas é porque se o homem se respeitar a si mesmo, não pode tratar os animais como coisas que lhe pertencem e estão à sua disposição. Qualquer consciência é uma consciência do bem e do mal. E não há razão para que a mesma não diga respeito aos animais. A moralidade precede as minhas ações. Significa que nem tudo é igual, nem tudo está feito. Esta marca uma paragem nas minhas pretensões e na minha indiferença: não posso permitir-me fazer tudo o que me apetece - tratar o outro como quantidade insignificante, abandonar o meu cão à beira da estrada, participar no massacre das baleias, deixar a injustiça continuar impune (é claro que estou consciente de que a ciência tem de continuar o seu trabalho e que as experiências vão continuar a existir com animais, que não podemos humanizar o animal). O animal pode não ser uma pessoa, da mesma forma que um humano, mas é um indivíduo que tem o direito de viver a sua própria vida. É o que o filósofo Tom Regan, pioneiro na defesa dos direitos dos animais, chama de “Tema de uma vida”, a que não se limita a alimentar-se e a reproduzir-se, mas consiste em habitar um mundo, em ter preferências, uma história. Isto confere aos animais um carácter único e um valor próprio, independentemente da sua utilidade e dos sentimentos que se possa ter em relação a eles: “A razão – e não os sentimentos, nem as emoções – obriga-nos a reconhecer nestes animais o mesmo valor inerente e, por conseguinte, um direito idêntico ao nosso de sermos tratados com respeito.» Se os animais têm direitos, é porque nós, huma- nos, temos deveres. E, como salienta Regan, isso “exige tanto a nossa paixão como a nossa disciplina, os nossos corações e as nossas men- tes. O destino dos animais está nas nossas mãos. Que Deus nos conceda estarmos à altura da tarefa.» Um bom começo de ano letivo para todos.

As férias e o regresso ressonante

O que nos resta das nossas férias? O que fica deste nosso verão? Não passemos de imediato ao início do ano letivo; reservemos algum tempo para dar uma olhada final ao que vivemos. O que vimos neste último mês? Notar-se-á, na maioria das vezes, que respondemos a esta pergunta mencionando somente o que fizemos – visitámos um castelo (Napoule, com uma história ímpar e fascinante …), um país, uma ilha grega, agroturismo, … E mesmo quando afirmamos “estar desconetados”, não passa duma pausa neste registo do fazer. É como se só tivéssemos a certeza de ter vivido nessa condição de estar ocupados. Isto só pode ser uma perversão do turismo. As férias deveriam, no entanto, ser, como indica a sua etimologia, um período deixado desocupado, “vago/vacante” (vacaciones, vacances). Deveríamos, por conseguinte, deixar tudo de lado, cessar toda e qualquer atividade. Conseguimos fazê-lo muito raramente ou por pouco tempo. O que poderia salvar-nos desta obsessão do “fazer”, seria colocar o projetor no “ver”, substituir a ocupação pela contemplação. Mas será que nós sabemos mesmo ver? Não se trata unicamente do sentido da visão, mas sim desta experiência total que consiste em abrir-se ao que é - a tudo o que não diz respeito ao nós, às nossas expectativas e às nossas ansiedades. Seremos realmente capazes de nos deixar seduzir pela beleza do mundo? Não aquela que está devidamente assinalada, comercializada e impressa em papel brilhante, mas aquela que nos surpreende numa curva qualquer, no detalhe duma paisagem, na singularidade dum momento, na atmosfera ou polifonia duma cidade… Aquela, improvisada e passageira, que nenhum guia consegue recensear. Essa beleza que releva da ordem do encontro; que escapa a qualquer programa. Não pode ser descoberta na agitação e no ruído do mundo; exige curiosidade, presença e atenção. Exige que estejamos atentos, vigilantes, capazes de deixar de lado todas as telas imaginárias, todas as trivialidades e adornos para acrescentar um pouco de peso, um pouco de cuidado à nossa presença. Ver, é dar mais importância a si mesmo e ao mundo. Ao tempo que nos é furtado. Não podemos ficar satisfeitos com um simples percurso - as 10 coisas para ver, as 5 coisas para fazer... “Ver” verdadeiramente é dar importância a tudo o que vivemos. Porém, na maioria das vezes, confundimos ver e olhar. As pessoas olham como se fosse para verificar algo, para validar o que fora planeado, para marcar como uma opção. Ver é algo completamente diferente: consiste em experimentar o que não podemos oferecer-nos, o que não pode ser feito, o que não pode ser listado. O filósofo Adorno fala dum “olhar sabático”, que teria rompido com a lógica do lucro e do rendimento, que já não trabalharia para obter o que veio procurar, mas que se deixaria transportar: O olhar que se absorve na contemplação duma beleza singular é um olhar sabático: que guarda algo da se- renidade do dia em que foi criado. Contudo, isso não é para permanecer em admiração, porque tal sentimento guarda algo do medo de passar ao lado e emerge desse gosto atual pela avaliação: a beleza tem de ser espetacular, deslumbrante. Tem de se conseguir algum tipo de retorno devido a um tal investimento. A pessoa extasiada é na verdade calculadora, esperando algo de forma gratuita, ou pelo menos, um retorno do seu investimento. Ver é, ao contrário, recusar-se a fazer violência ao mundo, convocando-o simplesmente a fim de nos surpreender. Esta visão sabática revela-se imediatamente ecológica, porque preservamos o que nos faz crescer, respeitamos o que reconhecemos como alteridade, algo que é insubstituível. As pessoas dirão que isso significa entrar em “ressonância” com aquilo que nos rodeia. Este conceito de sociologia que é descrito como uma corda que se põe a vibrar intensamente (Ressonância). Mas quando o mundo vem tocar-me com o seu esplendor imprevisível – esta cor, estas quatro notas no piano, esta pintura que eu não conhecia…-, preenche-me, habita-me e supera-me. Não estou em ressonância; entro na transcendência. Pois há mais do que os meus sentidos podem sentir, mais do que imaginado, mais do que desejado mesmo. Estou encantado, no sentido literal: descentralizado, como quando se diz a um aluno “presta atenção!”, é esquecer-se dele próprio, ficar emocionado e abalado. Isto vai além do prazer, porque não tive nada a ver com isso, e é por essa razão que se torna inesquecível. Não somente nos sentimos vibrar, como fomos movidos por algo maior que nós mesmos. Mudamos de estado de espírito, ganhamos em amplitude. É a experiência duma transcendência horizontal, que dilata o coração, que abre o horizonte. O advento da beleza, quando sabemos vê-la, mesmo modesta, mesmo não sendo maravilhosa, é sempre como um milagre que opera em nós: não foi planeado, talvez nem sequer possível, mas aconteceu, prendeu-nos. Recebi mais do que esperava e percebi que fazia parte integrante deste mundo: nem espetador que pede para se deslumbrar, nem turista que apenas passa, sou o depositário, o guardião, desta beleza frágil que o mundo tem para oferecer. Neste período de regresso às aulas, ao trabalho, esqueçamos o que fizemos, lembremos tão somente o que vimos. Deixemos o mundo falar, ele ainda tem tanto para nos ensinar.

A espada e o seu simbolismo

É uma espada pregada ao chão, na vertical, como a espada do rei Artur, apelidada por esse motivo “Excalibur”. Descoberta em 1994 em Valência, em Espanha, numa fossa numa casa do bairro La Seu, perto da catedral do sec. XIII, ao norte do antigo fórum romano, centro antigo da forte atividade urbana da época. Esta espada revela-nos a importância de Va- lência enquanto ponto de confluência cultural sob o reino muçulmano em Espanha, durante a era de Al-Andalus, um período em que a Andaluzia era o grande cruzamento das culturas europeias e muçulmanas. Foram pre- cisos mais de trinta anos para que esta nos desven- dasse o seu segredo. Uma espada, é um mito, sem- pre. Símbolo da força, do poder, e da cavalaria. Ilus- tra a prerrogativa real em matéria de direito e serve como instrumento de jus- tiça, utilizada aquando dos rituais fundamentais, tais como as cerimónias de ordenação na cavalaria ou na coroação, entre outros. Imagem duma função, que pode ser também a duma nação. A espada é o primeiro dos utensílios que os homens fabricaram exclusivamente para se matarem entre eles, desde a idade do bronze, por volta de 1700 antes da nossa era, mas muito posterior às lanças, flechas, destinadas à caça ou ao combate à distância. As análises acabaram por revelar o seu veredicto e mostraram que essa espada teria pertencido a um cavaleiro muçulmano do tempo de Al-Andalus, testemunhando precisamente desse período muçulmano da cidade, que se chamava então, Balansiya. Graças à estratigrafia, a espada em ferro pôde ser datada com toda a precisão. Situava-se nas duas camadas sedimentares correspondentes ao sec. X da nossa era, ou seja, no período em que a cidade estava sob domínio mu- çulmano. Segundo os especialistas geógrafos e historiadores, as armas, armaduras e equipamentos militares de todo o tipo; como escudos, espadas, esporas, flechas, selas, freios, e outros arreios das fábricas de Al-Andalus superavam os de quaisquer outras regiões do mundo. Extensão do corpo do cavaleiro, e figura tanto espiritual quanto física do seu poder, a espada ressurge numa matriz de ferrugem perfurando os séculos como um objeto fantasma dum período altamente idealizado. Com efeito, foi muito exaltada e embelezada a benevolência que Al-Andalus demonstrara em relação às minorias religiosas. Estas foram regularmente vítimas de discriminações, até de perseguições. Eu penso e consigo imaginar e ver esse cavaleiro muçul- mano desaparecido (em que combate?) deixando atrás de si o símbolo do seu prestígio efémero. No poema épico, A canção de Rolando – um palimpsesto da literatura francesao herói evoca o amor pela sua espada e nem uma única palavra é proferida sobre a sua amada Aude; a mesma, morre quando lhe é anunciada a morte do seu bem-amado. De que espécie de violência a espada transporta o nome? No Alcorão, o Profeta disse: “Eu sou o Profeta da espada”. Alguns séculos mais tarde, a espada que foi descoberta parece colocar-nos a mesma questão. A que tipo de armas continuamos nós a sacrificar ainda a vida humana? As nossas conquistas sangrentas acabarão na finitude da poeira ácida dos solos, deixando para trás os restos corroídos e carbonizados das nossas derrotas assim como das nossas vitórias.

O velho e a bicicleta

Desde que me mudei de casa, há quase 5 anos, cruzo regularmente um velho que se desloca de bicicleta. É mesmo um velho, não uma pessoa idosa, tampouco um sénior, nem um membro duma dessas palavras-armadilha que, sob o pretexto de lhes dar dignidade, lhes cortam as asas. Um velho com pernas como pistões cómicos, uma personagem grisalha desenhada por uma criança meio travessa, um sorriso interior para devorar todos os olhares que sobre ele caem. Ele e a bicicleta baloiçam, mas em tudo – os olhos, o esboço de sorriso, as pernas – traduzem a alegria de se manter direito numa espécie de velocidade moderada pelos passeios da Avenida D. Francisco Sá Carneiro e outras bifurcações. É um velho com realeza, que semeia o bom humor naqueles que o veem passar. É um velho sereno, mas que esconde algo de jovial, não um jupiteriano qualquer, ávido do desejo de poder ou de vaidade que nunca tornou ninguém feliz - ele não é um raio de força de guerra, mas realmente alivia-nos de tudo ao vê-lo passar, daquela peste que nos azeda os dias, daquela teia que aparece nos olhos e nos impede de ver o lado bom das coisas. O bom lado das coisas? Vem de qualquer lado ou vai a qualquer lado, na sua bicicleta, com a sua mochila. De repente, são convidadas as nossas memórias e recordações, os perfumes, os joelhos coroados, as mãos negras, as unhas enlutadas pela poeira dos caminhos, risos e clareiras. Se o velho é habitado por uma certa realeza, se ele é prazenteiro, se espalha um certo bom humor discreto, é porque todo o seu ser declara a sua alegria de andar ainda de bicicleta com a sua idade. O seu olhar, é o duma criança que furta tempo às necessidades, aos deveres. É uma espécie de manguito à ordem das coisas, àquela lei que pretenderia que a vida fosse uma longa desilusão que se vai bebendo aos golinhos. Um aborrecimento que se tira da caixinha de medicamentos à hora certa. O seu esboço de sorriso, é o duma criança meio rebelde e confiante. A certeza de que há algum lugar onde ir e algo novo para descobrir, que impede que não se deixe apanhar pela tristeza e a monotonia. Há qualquer coisa que ele transporta na sua mochila cinzenta. Quase nada. Um pedacinho de inesperado certamente. Uma surpresa. Uma descoberta. Uma recordação. Algo aleatório. E há aquilo que a convenção pretende que se chamem pernas. Mas que seria pertinente, para ser mais justo, mais fiel à sensação produzida, chamar-lhes varetas, bengalas telescópicas, quilhas extensíveis, uma palavra que pudesse no próprio momento em que se pronuncia provocar um sorriso, não de circunstância, mas de adesão instintiva a um sorriso tão encantador como a vida. A sua forma de pedalar, desequilibrado e instável, não é o resultado do acaso, mas dum projeto perfeitamente concertado. O velho anda de forma a que a sua bicicleta lhe resista, que o pedalar não seja espontâneo, como se em cada rotação sentisse o sabor e o prémio: o de ter ainda a força de dominar essa bicicleta e de sentir, fisicamente, não a idade ou o peso da vida, mas ao contrário a permanência duma vitalidade, duma energia, dum desejo, algo em si que se poderia revelar, naquele momento mesmo, inesgotável. O velho na sua bicicleta não aparenta nada de triunfante, o que partilha connosco quando o seu olhar cruza o nosso, é esta surpresa que ele saboreia, todos os dias, de encontrar em si mesmo a força, a mola para subir sobre o que lhe resta de juventude ou de infância para fazer o que ele deve chamar uma voltinha à cidade. E para quem o cruza regularmente, não se pode dizer que nos é familiar esse homem, mas ao longo dos dias, tornou-se na nossa paisagem uma verdadeira figura. Ele está fora, exterior às pessoas, nunca nos ocorreria de o tomar por um sinal qualquer, ou uma alegoria. Mas é quase um personagem, o representante não duma ficção mas duma história, duma fábula imemorial que nos diz respeito a um e ao outro. Neste mundo em que tantas pessoas tentam derrubar os seus muros e fantasmas, ou ao contrário, estão prontos para tudo para encontrar forma de dar nas vistas, o velho na bicicleta tenta a sua sorte, toca a sua partição, cavalga um pouquinho nesta maravilha de estar em vida, aperta-a contra si-próprio como se fosse um tesouro, um bem que ninguém poderá contestar-lhe. E o que diz o seu olhar, no momento em ele se cruza com o nosso, é um sentimento indizível, mal cartografado, entre a consciência da fragilidade das coisas e o que é preciso, necessariamente, chamar uma invulnerabilidade: a do ser que descobre, no momento mesmo, uma sensação antecipada de imortalidade.

O Advento

A ambivalência da nossa relação com o tempo é a espera. E o Advento é certamente um período propício para ensinar aos mais jovens a esperar, a transformar a espera num espaço de desejo e de criação. A espera significa um vazio, basta seguir os movimentos duma criança, das nossas crianças num consultório médico – é um lugar-comum, já todos assistimos a essa espécie de incómodo - perante uma refeição, perante um brinquedo … Mas também os adultos na fila do supermercado, no restaurante, num aeroporto ou ao telefone, a espera suscita reações contrastadas; alguns tomam o mal em paciência, enquanto que outros se agitam ou parecem habitados por um ódio impotente. Vivemos num clima de aceleração social que impõe a redução do tempo de espera. Este tempo é considerado como um tempo morto ou perdido, é desvalorizado, porque não é produtivo. Quando há desacordo entre o tempo do relógio e a temporalidade da criança, esta entra em sofrimento. Submetida a ordens ou injunções contraditórias, sendo sempre solicitada pelo seu entorno, a criança é obrigada a adaptar-se ao ritmo de vida do adulto. Através dum efeito de excitação, a criança vive no imediato, não suporta esperar. Isto porque a espera significa para ela o vazio. Privada deste tempo de desejo, de sonho e de criação, a criança não tem acesso ao seu mundo interno, não adquire as capacidades para estar só. O que pode provocar nela perturbações da separação e de adormecimento. Respeitar o tempo da criança, diferente do dos pais, ajudá-la a interiorizar a noção de duração, utilizando uma ampulheta ou um cronómetro, dar-lhe referências concretas (antes, durante, depois) desenvolver a sua imaginação… Em vez dum «espera!» vazio de sentido, poder-se-ia perguntar-lhe: « o que poderias fazer enquanto esperas?» Penso que os pais têm um trunfo na mão para permitir à criança adquirir uma temporalidade mais feliz, pois não é tanto a espera o problema, mas sim a forma de esperar. Esperar faz parte da vida. Nós esperamos sem sofrimento as estações do ano, o nascimento dum filho ou neto, a quadra natalícia, porque se trata de promessas, que se inscrevem num tempo espiritual. A espera vivida num tempo materialista, consumista é mais difícil de viver porque nos confronta com a frustração. Uma voz vem insinuar-se em nós: «não esperes, usufrui de tudo, e já!». Nós estaríamos mesmo programados para isso: procurar a satisfação imediata. E ensinar a esperar faz parte da educação. Cabe-nos iniciar aos pequenos prazeres a medio e a longo prazo a fim de desenvolver a paciência, humanizar o desejo. Na escola oficial -ou nas escolas da vida- a entrar no mundo do pensamento, a respeitar a palavra do outro, o tempo de espera para preparar a pergunta, para alimentar a interioridade, a reflexão. Neste período do Advento, pais e avós, podem ouvir a necessidade ou a vontade da criança, calcular se é possível ou não deferir e, caso contrário, propor outro caminho, outra possibilidade. «O que não podes obter agora, tê-lo-ás mais tarde. Esperemos pelo Natal e vais ver que será ainda mais bonito porque soubeste esperar». Este prazo permite à criança construir o seu desejo. E a promessa torna a espera suportável. E o que é o Advento senão a promessa dum resultado, duma teleologia? As decorações lembram-no-lo: o Natal está à porta! Mais discretamente, a liturgia do Advento convida-nos a uma preparação simples e alegre em que a espera vence o que é imediato e a sobriedade é mais fecunda que o consumo. É graças ao seu imaginário que a criança vai esperar. Precedendo a chegada que representa o Natal, o Advento é um período propício para fazer trabalhar a imaginação e pôr em ação os seus próprios recursos. Este tempo pode ser habitado por rituais que vêm alimentar o desejo; decorar o pinheiro, preparar o presépio. Fazer uma lista de pequenas prendas para construir por si-mesmo ou para comprar para os outros, depois embrulhá- -las, escondê-las. Tantos gestos que vão permitir à criança ocupar o espaço interno da espera e desenvolver as suas qualidades de ser humano. Ler contos, ouvir canções de Natal em família pode contribuir para alimentar o imaginário das crianças. O Advento torna-se assim um tempo de espera ativo e de abertura aos outros. Cada dia que passa representa uma ocasião de abrir uma janelinha do famoso calendário. Descobrindo nos modelos tradicionais; a imagem duma personagem do presépio, dum anjo, duma luz… a beleza, a riqueza do Natal, revelam-se pouco a pouco, reforçando o prazer, até à apoteose. Esperar obriga a criar, não somente a ter, mas a Ser. É isso que falta talvez à minha criança no consultório médico.

Que bonitos os cemitérios nestes dias

Aqueles de entre nós que receberam uma verdadeira educação católica, identificam-se de imediato nos primeiros dias de novembro. Sabem a quem são dedicados, sabem dessa vocação bem específica. Para os outros, estes dias são marcados por reuniões em família, pelo halloween dos filhos e uma volta pelo cemitério por vezes. Os cemitérios nunca estão tão bonitos como nestes dias. Ao longo do ano, quando uma campa resplandece, submersa pelas coroas, pelos feixes de ramos, marca a chegada dum novo inquilino, duma nova residente. Através das flores escolhidas, das fitas que serpenteiam ainda sobre o papel transparente, não é difícil adivinhar quem veio juntar-se aos eternos. Um homem ou uma senhora, demasiado jovem, ou já não muito jovem, tendo deixado ou não o cônjuge, os pais, filhos, netos, colegas de trabalho, colegas de associação, de club. Mas o dia um de novembro, dia Santo, é um feriado que facilita os encontros à volta das campas da família, é o cemitério na sua totalidade que resplandece, e no brilho dos crisântemos, todos os mortos pertencem à mesma vasta morada, às mesmas unidades de medida. Mortos de ontem ou de outrora, estão ali todos, onde nos conduz qualquer que seja a vida que tenhamos. A sua companhia faz-nos bem, eleva-nos. O tempo deste encontro, largamente partilhado, nada que tenha a ver com o frenesim terrestre nos vem perturbar ou cansar. As vozes ajustam-se ao silêncio do lugar, apesar de haver sempre gente nos corredores. O ruído dos passos nos paralelos ou na gravilha, a água nos regadores, crianças que circulam e saltitam ou os vasos colocados sobre a pedra tumbal, não fazem barulho, ou pouco mais do que o amassar das folhas quando uma brisa de vento se levanta ou a canção duma mãe que embala uma criança. Os mortos nesse dia guiam os nossos passos e os nossos pensamentos. Efetivamente são eles que tratam de nós. Quando se aproximam estes primeiros dias de novembro, digo-me por vezes “nunca mais chega o dia”, sei que no cemitério posso contar com a aprazível e exigente vizinhança dos defuntos para enviar a uma espécie de insignificância tudo aquilo que me ocupa nos outros dias, mesmo aquilo que dá todo o sentido à minha vida. Perto dos túmulos, o mundo pode esperar. A administração, a casa, as compras, o email, os passeios, claramente. E a leitura, os amigos, a família, até as crianças. No dia dos mortos, ou digamos, no dia do cemitério, nada é urgente. Não quer dizer que nada mais conte para nós, ou a vida perderia todo o seu sentido! Quer dizer que nos recordamos, que esse dia, sabemos, que esse dia, a nossa vida é eterna. Que o amor é eterno. Que os que com carinho nos chamam frente a esta campa onde os depositámos, não nos abandonarão nunca. É mais fácil dizê-lo, mais fácil vivê-lo, quando são muitos os primeiros dias de novembro que nos levaram perto deles. Apesar de continuar viva a surpresa; um mês depois, um ano depois, dez anos depois, vinte anos depois. Olha- mos para os nomes, para as datas. Por vezes, há tão poucos anos – há tão poucos meses, dias mesmo!- entre a data de nascimento e a da partida, que os números nos apertam o coração. Como é possível, como é que continuámos a viver depois de nos termos afastado pela primeira vez desse cemitério ao qual, habitados por dores profundas e silêncios infinitos, confiámos alguns que tinham nascido para nos enterrar a nós mes- mos. Mas, quando foi há mui- to tempo, coabitávamos com estes mistérios, e aceitamos que os mesmos sejam demasiado grandes e complexos para nós. Quando foi ontem, por outro lado, quando a pedra está gravada de fresco, quando qualquer coisa em nós nos pergunta o que fazemos ali, ou seja, perto daqueles que estavam perto de nós, em todo o lado, o tempo todo… O dia, o momento que nessas primeiras horas de novembro queremos e o pode- mos organizar à volta duma visita ao cemitério é, no en- tanto, um momento precioso. É como uma festa de família alargada aos ausentes, sendo o poder que convida e que sabem poder contar com a nossa presença. No cemitério, estamos com eles, sabemos que nos amam e se, somente pudéssemos fazê-lo, dar-lhes-íamos muitos beijinhos.

A educação e a vida

O que é educar e ser educado? Peço desculpa por colocar a questão desta forma abrupta, mas ocorre-me sempre no início do ano escolar, isto provocado pelo ruído rouco dos colegas e de alguns debates que emergem espontaneamente; pedagogias convictas, posturas claras, inteligência das situações para começar o ano letivo. Educar não é uma ciência mas sim uma história, uma narração. Crescer, aprender, isso não se avalia forçosamente nem sempre, e não se pode aparentar ou reduzir simplesmente a um lucro, a aquisições. Não. Saber ler, escrever, contar, isso está resolvido. Assim como descobrir, obter, experimentar. Conseguir e não conseguir. Ter sucesso e não ter sucesso, conseguir na vida e conseguir a vida. E isso não se produz nem sempre nem forçosamente ao mesmo ritmo para todos, diria mesmo que isso não tem forçosamente nem sempre a mesma intensidade, o mesmo valor para cada indivíduo. Que tudo isso jamais bastará. Seria preciso reconhecer antes de qualquer discurso especializado, sabiamente técnico sobre a educação, o seguinte: crescer é sempre um falhanço. Que há sempre numa vida construída uma renúncia necessária e fecunda. Quero dizer que foi necessário, como sempre, como para cada um de nós e a sua pequena trajetória tremente, tão emocionante quanto indecisa, na existência, que bastaria um nadinha para que não fosse aquilo em que me tornei. Poderia ter sido outra pessoa, melhor ou pior. Não sei se outras vidas me esperavam mas cresci com o pensamento, que ao mesmo tempo me desfazia por dentro, que me fazia acelerar o coração, que outras vidas eram possíveis, e que na maior parte, estas outras vidas, não poderia vivê-las. Crescer, alguma coisa se perdia, se destruía incessantemente e nunca consegui segurá-la. Ora talvez isso tenha também feito parte da minha educação; aprender e aceitar que uma parte da minha vida pudesse fugir-me, que não pudesse ser explorada. Educar, é abrir o outro à experiência da vida onde nós nem sempre temos a possibilidade de viver como desejaríamos, segundo os nossos apetites, os nossos sonhos, as nossas frustrações. E que tudo isso, apetites, sonhos e frustrações, sirva para construir o somatório nunca certo e justo, nunca completo, duma existência honesta. A honestidade, deveríamos sabê-lo, nunca é uma conta redonda. Não surge fazendo unicamente preencher aos outros todas as linhas da grelha. Cada um de nós pode pretender ter mil e uma vidas, mas todos devemos fazer a aprendizagem da fragilidade de cada vida vivida, assim como da insignificância duma vida entre outras vidas. Lembro-me da réplica dum autor, Flaubert,; (as citações sempre foram cigarras para mim!) que dizia qualquer coisa como: “ Nós as pessoas insignificantes, com as nossas palavras, os nossos atos, preparamos a vida de muitos heróis,” Nós não seremos forçosamente heróis mas isso não significa que não participemos no heroísmo da existência. O caminho dos nossos sucessos é muitas vezes mal combinado com a mediocridade das oportunidades, mas convém então pensar que a educação não é somente um acumular de cultura, de saberes, mas sim e profundamente uma transformação da existência, dando tanto o desejo duma vida vivida como a consciência de não poder viver todas as vidas, todas as experiências. Ensinar a crescer, no meio dos outros, e todos os outros, é tolerar com paciência, e se possível com amor, que o nosso sentimento de exceção, os nossos desejos mais fortes, sejam também confrontados com a nossa insignificância. Educar, é assim permitir a cada indivíduo aproximar-se da satisfação dos seus desejos e das suas expetativas sem por isso se transformar em alguém intolerável para os demais, como para si mesmo. Talvez assim se pudessem evitar, por exemplo, alguns dos comportamentos que invadem tantas vezes a imprensa, e que revelam o quanto certos jovens carecem precisamente dessa educação, a saber que uma vida bonita e inquieta, é uma vida feita de tudo o que vivemos e de tudo o que não vivemos, das experiências vividas assim como de todas as que nunca tivemos. E de facto, o que obtiveram eles, e que desejavam tão violentamente? Uma insatisfação sempre recomeçada, uma vida nunca é vivida verdadeiramente porque viver nunca é querer viver tudo, permitir-se fazer tudo, ou então tem que se fazer da satisfação um ídolo. Em quê que se tornaria então o sonho, a fantasia, a esperança, as nossas vidas desconhecidas que tornam a nossa vida tão misteriosa e tão desejável? Há uma forma de valentia viver no meio de todas estas vidas vividas e não vividas, possíveis e impossíveis, sonhadas, evitadas, desviadas, e não possuir nenhuma delas. Estou a exagerar? Talvez, sim. Mas proponho dois pequenos paradoxos. É possível que nos dirijamos mais seguramente em direção a um mundo que se harmonize com os nossos desejos sem por isso viver a realização de todos eles. E as nossas vidas só serão plenamente vividas não tendo vivido tudo.

Cabelo negro

Tinha os olhos sombrios, envoltos por longas pestanas, remontados por sobrancelhas abundantes e desenhados como um ícone, profundos e tristes, melancólicos e tenebrosos, impregnados dum charme algo distante, com uma expressão graciosa, talvez submetida, talvez não; baixava os olhos por pudor, não estava habituada a enfrentar o olhar dos outros, nem a procurá-los, ela queria trabalhar, ir às compras, sair e dançar, conversar com as amigas, tomar um chá ou um lanche em paz. Tinha uma boca carnuda realçada por um baton vermelho, cor de sangue, uma pele cor de pergaminho, cor de areia, de mel e de ouro. Tinha um nariz fino, discreto, suave, buchechas altas realçadas pelo brilho do blush, tinha um sorriso sibilino como uma Gioconda, um pouco nostálgica, não do passado, mas do que ainda não viveu, um brilho algo malandro, sem ser desconfiado e sem desafiar, somente um ar de dizer sem ousar fazê-lo, e fazer o necessário para inspirar a mudança- pensa-o e um dia, sim, um dia dirá tudo o que tem no coração, e nesse dia, o mundo inteiro sabê-lo-á. Vestia uma túnica preta sobre o seu corpo de jovem mulher, corpo que escondia desde os seus 10 anos, apesar de ser tão jovem, mas por afastamento, por pudor, por vergonha, por medo, por terror, porque não era preciso mostrá-lo, dissimulava as suas formas em baixo duma massa disforme, um tecido que lhe cobria os dois ombros, o busto, as pernas, tudo o que não pode ser mostrado, sugerido, que não deve atrair o olhar dos homens, porque um corpo é uma ameaça, uma afirmação de si mesmo, porque um corpo deseja e é desejado, porque um corpo vestido é um corpo político. Ela não tinha nada de política, ela não era tampouco angélica, ela não se encontrava em nenhum tipo de ação militante, talvez na sua reflexão, aquela que coloca as questões sem encontrar resposta, ela era um ponto de interrogação colocado sobre o mundo. Ela era amotinada, órfã do seu próprio país, estava naquele lugar, não se sabe muito bem porquê, nem porquê ali, ela não sabia de nada, era certamente demasiado jovem, inexperiente, contudo corajosa. Era feliz apesar de tudo, e isso ressalta no seu sorriso que é suficientemente claro sobre o resultado da sua reflexão, e talvez uma decisão: a de não se deixar vencer pelo medo. Um dia teria talvez a ousadia de dizer e fazer o que pretendia segundo a sua vontade, reivindicar as suas decisões e opções, nem que fosse preciso enfrentar os olhares desprezíveis, repletos de ódio e mal-intencionados, nem que fosse preciso enfrentar os gritos e os uivos. Nem que tivesse que receber todos os açoites do mundo. Mas seria preciso que ela os recebesse? Porquê ela e não outra? Porque as outras são somente anónimas, e ela fez-se conhecer num mundo onde tudo está fechado, amordaçado, num mundo cortado do mundo, onde só são filtradas algumas imagens, uma mulher que aperta o seu carrapito, uma jovem que canta, e que de repente dá a volta ao mundo graças às redes sociais. Tinha um lindo e longo cabelo negro, espresso como uma lã escura, negro como os seus olhos, negro como o seu véu, cabelo tão negro que podia reluzir, e refletir o brilho do sol, cabelo como um espelho onde era possível perder-se, e certamente pendorar-se de amores, nessa cabeleira tão abondante, tão espessa, tão sombria e tão sedosa, tão livre que ela mesma pode inspirar o medo, tão longa que pode seduzir qualquer um, que podia enfeitiçar e fazer desmaiar os corações mais recalcitrantes e apoderar-se deles, encadeá- -los, talvez, engoli-los, fazer um nó à volta dos pescoços de alguns e sufocá-los para sempre. Ou simplesmente, muito simplesmente, como qualquer outra jovem, simplesmente seduzi-los tão belo era aquele cabelo, e vivo e escuro, e negro como a morte.

Uma carta!

Há trinta anos, não tinha endereço email, nem caixa do correio tampouco, nem computador; tinha uma morada onde podia receber cartas. Para escrever uma carta, pegava numa folha que comprara numa livraria, às vezes folhas de diferentes cores, com a minha parker oferecida num aniversário, e que carregava com tinta preta ou azul, mais tarde com as recargas pelikan que são estandardizadas. Seguidamente escrevia, querido tio, estimado amigo, queridos pais, estimado vizinho … Era preciso um certo tempo para escrever uma carta. Não era uma obra, era menos do que isso e era mais do que isso, porque colocava no papel algo de sentimental, num gesto ao mesmo tempo íntimo e universal, importante ou superficial, fosse ela curta ou longa. Através duma mensagem, contava uma história. Por vezes apagava, por vezes reescrevia a fim de melhorar um pouco o estilo, tornar o pensamento mais preciso, formular de forma mais concisa. E também para evitar demasiadas rasuras, rasgava e recomeçava. Depois pegava num envelope, colocava a morada, colava um selo que havia tido o cuidado de comprar antes. E levava- -a aos correios, a uma caixa de correio onde estava inscrita a última hora de levantamento, ou a um marco no exterior. A carta partia, chegava, mais ou menos depressa, para um país estrangeiro, podia levar algumas semanas. Ah. no seminário, em Cucujães, tínhamos todos um amigo virtual em Moçambique ou Angola com quem corrrespondíamos, o meu correspondente tinha uma caligrafia perfeita e invejável. Talvez por essa razão ainda tenha hoje uma pequena paixão pela caligrafia. Não sabíamos quando é que o destinatário a recebia. O processo completo (compra, escrita, envio) levava algumas horas. Nessas cartas, falava da minha vida, dava notícias, talvez banais, também as solicitava, falava dos meus sentimentos, era capaz de descrever as minhas atividades dum dia completo, quando os dias ainda eram longos, contar tudo o que fazia. Escrevia a amigos que tinham emigrado, a alguns que se mantinham na aldeia. Escrevia ao meu pai em França, à família ou timidamente a alguma rapariga que me despertava interesse. E lembro-me da alegria de receber uma carta, quando ela é assim bem pesada, inchada dentro do envelope e onde há leitura. A excitação no momento de a abrir, sem a rasgar, e lê-la, e relê-la, dobrá-la, desdobrá- -la, guardá-la, olhar para ela ou queimá-la. Algumas cartas dizem o amor. É um prazer lê- -las e relê-las. Há este tipo de cartas que só se recebe uma vez na vida. Há-as que são sinceras, apaixonadas e sedutoras. Outras recheadas de repreensões e azedume. Outras ainda, anunciadoras de algo novo. Há- -as visionárias e algo loucas. Há aquelas que nos derretem. Através duma carta, duas pessoas singularizam-se numa forma de introspeção, para manter uma relação, para se manter em contacto, para dizer que pensam uma na outra, que precisam uma da outra, e esta ausência materializa-se pela carta. Quantas cartas eram lidas às esposas dos emigrantes, quantos casamentos aconteciam a partir dessa correspondência epistolar. Isto é muito forte. O papel estala, e ao abri-la, é como se se espreguiçasse, feliz pela felicidade de ser desdobrada. Alguns anos mais tarde, quando as relemos continuamos intrigados, surpreendidos e emocionados. O papel, espesso, resistiu, a escrita da caneta permanente com as letras bem ligadas e um pouco inclinadas mantem-se legível; denunciam o tempo que passa, a tinta que se apaga, as letras rodadas soltas e desvanecidas. Adivinham- -se certas palavras que se vão tornando quase invisíveis e se tornarão pouco a pouco uma espécie de palimpsesto só meu. Acaricio o papel já algo amarelado, vejo-o de forma transparente, cheiro-o, respiro-o, e é toda uma vida que regressa; à imagem da madalena de Proust. Uma carta é verdadeira, é autêntica, é real. Agora, a minha caneta dorme no seu estojo, e espera que lhe pegue e a acaricie novamente. Mas, para quê enviar cartas? Nem sei já muito bem o que contava nelas: passo bocados a responder aos emails. Não tenho muito tempo, nem vontade de escrever uma carta, não sei a quem escrever, não tenho força para ir buscar um selo, um envelope, nem ficar na fila nos correios. Até estes se fazem raros e distantes. Para quê sair à rua para enviar a minha missiva, quando posso escrever um email, e num pequeno clique enviar a mensagem para outro endereço email, instantaneamente? Hoje, não vou escrever nenhuma carta, contudo, gostaria tanto de as receber.