Hoje, cruzo um conhecido que me diz, “Então, neva ou não?” E a memória dos dias de neve, nas nossas terras, não se faz esperar, como o sabor duma madalena. A luz sobre a neve, tão frescas uma como a outra. Quando saíamos da cidade para ir ver a neve- estranhamente, esta beleza arminha, desde que a pisamos, fica imediatamente escura e suja- lembra-me com os filhos deste manto de cristais, formando como uma página branca, quando a agarravam e a levavam à boca para a deixar fundir na língua, fechando os olhos extasiados. Gesto que também eu tinha de fazer; seguindo as suas ordens, colocava estes minúsculos pedacinhos de cristal entre os meus lábios, e saboreava. Compartilhava com eles essa emoção de literalmente saborear a beleza do momento, na fé que transforma alguns cristais de neve num sabor secreto. As crianças acreditavam com todas as suas forças naquele pequeno milagre, quase ridículo: neve cintilante, como uma festa momentânea compartilhada naquela manhã. Como para escrever uma nova página nas nossas vidas. Para que se cumprisse a festa luminosa do dia entre nós. É assim que acredito no milagre da vida. Quando a poesia do momento ou do acontecimento, por mais pequenina que seja, por mais familiar que seja, transforma não os corpos ou a matéria, mas a alma de cada um de nós numa partilha figurativa e viva. Esta memória faz eco à leitura da liturgia deste domingo: «A água torna-se vinho», lemos no Evangelho de João, durante o episódio das Bodas de Caná (João 2, 1-11). Não acredito que a água ou a neve se transformem noutra coisa, ou digamos que é para mim uma afirmação poética de esperança cujo objeto é tão difícil de vislumbrar e provar. “fazei o que Ele vos disser”, disse a mãe de Cristo aos serventes nupciais. A obra do milagre é apelar à confiança de cada um para viver o acontecimento como uma graça, um dom. Abandonar-se à palavra dos outros, não cegamente, mas, pelo contrário, acolhendo-a como abertura, saída para a realidade, para a verdade. Guardei em mim, na boca, esse sabor de neve cristalizada que se torna sabor pela graça dum jogo infantil. É assim que a festa ou bodas da vida, que sempre ameaça escurecer-se, se reinventa e continua na fé dum acontecimento poético que vamos acolher. O milagre não é produzir outra coisa, mas sim reproduzir a própria essência do nosso deslumbramento, e que muitas vezes achamos tão difícil de encontrar: o amor ou a bondade. É neste milagre que acredito e do qual tenho a experiência com as crianças que acolhem o que as faz descobrir e fazem disso um acontecimento para elas e para nós: simultaneamente, sinal e sabor- do latim sapor (“gosto, sabor”), do verbo sapere, de onde provêm as palavras “sabor” e “saber”. É o sabor do momento; único e partilhado (a festa) que transforma a neve ou a água em pequenos eventos messiânicos. Se há uma presença real, é a dos corpos transformados pela alegria de viver o momento juntos e pela partilha da poesia, dum sinal a ser reconhecido, e que de repente segura a força dum dia em suspense. Por vezes, parece-me que já não acredito senão nesta poesia, no milagre da própria matéria, da água e da neve, cujo sabor nos transforma ao instruir-nos num amor familiar pelo mundo e pelos outros, por vezes tão profundo que é de partir o coração.