Cabelo negro

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Tinha os olhos sombrios, envoltos por longas pestanas, remontados por sobrancelhas abundantes e desenhados como um ícone, profundos e tristes, melancólicos e tenebrosos, impregnados dum charme algo distante, com uma expressão graciosa, talvez submetida, talvez não; baixava os olhos por pudor, não estava habituada a enfrentar o olhar dos outros, nem a procurá-los, ela queria trabalhar, ir às compras, sair e dançar, conversar com as amigas, tomar um chá ou um lanche em paz. Tinha uma boca carnuda realçada por um baton vermelho, cor de sangue, uma pele cor de pergaminho, cor de areia, de mel e de ouro. Tinha um nariz fino, discreto, suave, buchechas altas realçadas pelo brilho do blush, tinha um sorriso sibilino como uma Gioconda, um pouco nostálgica, não do passado, mas do que ainda não viveu, um brilho algo malandro, sem ser desconfiado e sem desafiar, somente um ar de dizer sem ousar fazê-lo, e fazer o necessário para inspirar a mudança- pensa-o e um dia, sim, um dia dirá tudo o que tem no coração, e nesse dia, o mundo inteiro sabê-lo-á. Vestia uma túnica preta sobre o seu corpo de jovem mulher, corpo que escondia desde os seus 10 anos, apesar de ser tão jovem, mas por afastamento, por pudor, por vergonha, por medo, por terror, porque não era preciso mostrá-lo, dissimulava as suas formas em baixo duma massa disforme, um tecido que lhe cobria os dois ombros, o busto, as pernas, tudo o que não pode ser mostrado, sugerido, que não deve atrair o olhar dos homens, porque um corpo é uma ameaça, uma afirmação de si mesmo, porque um corpo deseja e é desejado, porque um corpo vestido é um corpo político. Ela não tinha nada de política, ela não era tampouco angélica, ela não se encontrava em nenhum tipo de ação militante, talvez na sua reflexão, aquela que coloca as questões sem encontrar resposta, ela era um ponto de interrogação colocado sobre o mundo. Ela era amotinada, órfã do seu próprio país, estava naquele lugar, não se sabe muito bem porquê, nem porquê ali, ela não sabia de nada, era certamente demasiado jovem, inexperiente, contudo corajosa. Era feliz apesar de tudo, e isso ressalta no seu sorriso que é suficientemente claro sobre o resultado da sua reflexão, e talvez uma decisão: a de não se deixar vencer pelo medo. Um dia teria talvez a ousadia de dizer e fazer o que pretendia segundo a sua vontade, reivindicar as suas decisões e opções, nem que fosse preciso enfrentar os olhares desprezíveis, repletos de ódio e mal-intencionados, nem que fosse preciso enfrentar os gritos e os uivos. Nem que tivesse que receber todos os açoites do mundo. Mas seria preciso que ela os recebesse? Porquê ela e não outra? Porque as outras são somente anónimas, e ela fez-se conhecer num mundo onde tudo está fechado, amordaçado, num mundo cortado do mundo, onde só são filtradas algumas imagens, uma mulher que aperta o seu carrapito, uma jovem que canta, e que de repente dá a volta ao mundo graças às redes sociais. Tinha um lindo e longo cabelo negro, espresso como uma lã escura, negro como os seus olhos, negro como o seu véu, cabelo tão negro que podia reluzir, e refletir o brilho do sol, cabelo como um espelho onde era possível perder-se, e certamente pendorar-se de amores, nessa cabeleira tão abondante, tão espessa, tão sombria e tão sedosa, tão livre que ela mesma pode inspirar o medo, tão longa que pode seduzir qualquer um, que podia enfeitiçar e fazer desmaiar os corações mais recalcitrantes e apoderar-se deles, encadeá- -los, talvez, engoli-los, fazer um nó à volta dos pescoços de alguns e sufocá-los para sempre. Ou simplesmente, muito simplesmente, como qualquer outra jovem, simplesmente seduzi-los tão belo era aquele cabelo, e vivo e escuro, e negro como a morte.

Adriano Valadar