Quatro anos depois e ele vai por fim embora, e nós perdemos um tema de conversa. É que ele fez-nos falar, o burgesso, com os seus exageros e provocações, com a sua palavra em roda livre espalhada por toda a Terra através da graça ambígua das redes sociais. Durante estes quatro anos, são milhares de tweets que jorraram do seu smartphone pessoal, mais duma dezena por dia mesmo assim, um por hora fora do sono, incluindo aos domingos. Inundou metodicamente o planeta com os seus pontos de exclamação, com as suas frases brutais e sintaxe truncada, com as palavras em maiúsculas que não passam da mímica dos seus murros em cima da mesa. Com a sua altivez insensata, falava diretamente ao povo sem passar pelas subtis modalidades do governo. É como se houvesse um painel eletrónico plantado em todos os cruzamentos de todas as cidades do mundo. Um modo de informação municipal extensível ao planeta, onde desfilava em permanência o fio ininterrupto da sua palavra. Toda a gente troçava dele, estávamos bem enganados. Havia inventado qualquer coisa nova, em germe no princípio das redes sociais mas que ele desenvolveu até ao absurdo, como forma de conquista e modo de exercício do poder. Munido dos conceitos inéditos de verdade hiperbólica e de acontecimentos alternativos, construía um mundo mental desligado do real e que ganhava sobre a realidade. Não compreendemos, acreditando na estupidez, troçávamos dele saboreando as caricaturas, e durante esse tempo agarrava-se ao poder, e depois governava. Ninguém acreditava, como se o Mickey tivesse saído do seu cartoon para saltar para a realidade, sem ter abandonado o seu caráter simplificado e a sua espessura de papel, e que nos dava bofetadas, mas verdadeiras bofetadas que nos deitavam por terra. Nada sério, dizíamos nós, meio abalados. O nós de que falo refere- -se aos que acreditam no Estado, na democracia, no consenso razoável, na verdade que emerge do debate, todas as coisas das quais demonstrou por exemplo que não teriam nenhuma importância. O que ele vociferava no Twitter não fazia sentido e depois foi eleito, apoiado, agora cobarde mas somente por pouco. Certamente não medimos a profundidade do fosso que separa os que têm dos que não têm, não percebemos que o ódio em geral vence sobre a verdade, não desconfiámos que o real seja tão frágil quando as redes sociais se tornam a porta de acesso, estas redes em que o verdadeiro e o falso coexistem até diluir a verdade. Não levámos a sério o palhaço com a crina cor de laranja que parecia falar como o tio embaraçoso das refeições de festa em família, contudo, além do conteúdo dos seus propósitos, era ele que usava sempre da palavra, era ele que decidia dos temas de conversa, e a cada hora que passava lançava um novo tema, cuja pertinência não tinha qualquer importância porque mudaria um pouco mais tarde. É fascinante esta mudança de paradigma do governo, e é preocupante e perigoso para o futuro da política. Então quando Twitter lhe cortou a torneira por um instante sentimo-nos aliviados, e logo depois nova afogo aparecia. O pretexto foi uma mensagem que anunciava a sua ausência na entronização do seguinte, interpretada como sendo uma incitação codificada à violência. Por conseguinte não era a mensagem que justificava a sanção, mas sim todo o personagem. E em quatro anos, ninguém se apercebera de nada? E cortam desta forma o som a uma pessoa, sem debate nem decisão de justiça? Através dum tardio desdém de democracia, punem alguém que desde há quatro anos põe a saque a democracia? Não sei se vamos num melhor caminho … Mas de qualquer forma, Twitter, antes da passagem de poder, fica do lado do cabo. Por natureza as redes sociais veiculam tudo e mais alguma coisa e, quando os seus proprietários se ofuscam, isso faz-nos sorrir, e depois preocupa-nos. Se fossem simples fornecedores de acesso, sem responsabilidades sobre os conteúdos? Tanta hipocrisia! Deparamo-nos com um modo de regulação transparente, exterior às redes, porque a lei, é apesar de tudo mais clara. Não é muito são que a palavra pública seja regulada pelo arbitrário privado.