“ É possível que o livro seja o último refúgio do homem livre” escreveu André Suarès. Que profecia nestes tempos de confinamento! Neste momento em que muitos de nós nos encontramos fechados em casa, o livro mantém a porta escancarada para o mundo. Oferece-nos a chave para nos evadirmos em direção a outros lugares, empreender verdadeiras viagens, contar aos filhos e netos deliciosas histórias e inocular-lhes o único vírus do qual esperamos nunca curar – a leitura. “ Ler, é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como o corpo que não come”, proclamou Vítor Hugo. Além dum alimento, nunca como hoje em dia o livro se revelou como um tão poderoso ato de liberdade. É já uma aquela que oferecemos às livrarias quando compramos um livro. Confortam-se assim estes aventureiros na sua paixãoporque é sempre por paixão que eles investem na criação duma livraria, que procuram dar-lhe a atmosfera dum lar e um tom inimitável na escolha do fundo e dos conselhos aos leitores. É- -lhes deste modo oferecida a possibilidade não somente de poder viver do livro, mas também de comunicar esta paixão aos curiosos que, um dia, atraídos por uma capa, exposta na montra, um título, um excerto dum poema que eles terão escolhido, empurrarão a porta da sua caverna de Ali Baba. Há também a liberdade oferecida aos autores, nos quais pensamos raramente. É que estes não desfilam quando as reformas do seu estatuto mordiscam um pouco mais os seus direitos de autor ou quando, por causa da pandemia, os ofícios vão passando de mão em mão sem que as suas obras sejam publicadas. Solitários no seu trabalho, cada vez menos protegidos como artistas, e pouco escutados na extrema singularidade das suas vozes, é de liberdade que os escritores precisam eles também – daquela, única, que lhe promete o círculo dos seus leitores fiéis e atentos, e generosos. No marasmo geral, continuam a erguer a sua pena bem alta e direita, esperando que o seu livro belisque o curioso que, um dia, vai empurrar a porta da livraria, pedirá conselho, e ver-se-á designado por este cúmplice de sempre como o autor capaz de comover ou reconfortar este desconhecido tão só, tão tristemente confinado, que entrou por acaso naquele “ comércio” de extrema necessidade, que não se compara a nenhum outro pois aí está em jogo o futuro da cultura. Hoje, temos mais do que nunca o privilégio de oferecer esta liberdade aos escritores comprando os seus livros e, evidentemente, falar deles à nossa volta. E depois, que felicidade poder partilhar com os amigos o entusiasmo dum texto, dum romance, de receber assim esta prenda rara e inesgotável dum autor que, por sua vez, sem que ele mesmo o saiba ou que nós o saibamos ainda, se tornará o nosso amigo íntimo. Conheço poucas expressões tão ricas em promessas como a que evoca os “livros de cabeceira”. Sugere as presenças tácitas e amadas de autores, de histórias. Estende-se a mão a partir do travesseiro, e eis que um poeta nos murmura ao ouvido, ou um versículo qualquer sempre luminoso do evangelho, ou um excerto daqueles escritores que nos fazem voltar sempre atrás – segundo as suas afinidades, as suas espectativas. Pegamos no livro, folheamo-lo, que perfume, que regalo, poder retomar o fio do romance começado alguns dias antes. As paredes do quarto caiem. A noite desaparece, sentimos olhares, conversas que retemos, que nos falam e nos protegem contra as tentativas de desmoralização aguda que a atualidade prazerosa planeia contra nós. Por fim, há a liberdade que lendo oferecemos à criança que permanece em nós, e que não queremos desmerecer. A criança que sonhava com mundos maravilhosos e forçosamente melhores, devorando este alimento vital - a leitura. Temos todos um livro que a desperta, e que traz ao adulto que nos tornámos a deliciosa inocência, o Supercalifragilisticexpialidocious que, em qualquer circunstância, nos devolve a admirável leveza dos nevões de antigamente. Recordemo-nos: “ Era uma vez …” Que fórmula, que sésamo! Que momentos cheios de tremores deliciosos para quem alcançou ou pretende encontrar talvez -como eu- através deste incipit, sem dúvida o mais conhecido de toda a literatura, um vigor mesmo para - ler, escrever, ler mais ainda. O mesmo que dizer ser livre, como exige de nós o livro, e o nosso destino.