Será possível deixar de duvidar de si?

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Conheces as palavras que gostarias de dizer mas não as dirás. Preferes guardar uma certa reserva. Sabes o que se passa. É uma situação banal para já. A noite cai. Queres ir rapidamente para casa, esconder-te em suma. Leste recentemente o que um personagem do romancista americano Herman Melville dizia aos quinze anos ao irmão, quando acabava de deixar o lar da família para ir trabalhar com um tio numa quinta: « De todos estes projetos magníficos que fiz para a minha vida, não resta nada. Gostaria de afrontar um grande perigo e cessar por fim de duvidar de mim-mesmo.» Mas já não tens quinze anos há muito tempo. E nunca te habituaste verdadeiramente a escrever aos teus irmãos. Será que só um “grande perigo” poderia conduzir-te a uma espécie de adequação contigo mesmo? Os perigos que atravessaste, na maior parte, não os procuraste. Duvidar de si- -mesmo, é-te familiar. E nunca encontraste verdadeiramente que relação clara fundar entre ti e os outros. Geralmente, dizes aos outros aquilo que imaginas que eles querem ouvir de ti. Estás bem convicto de que é preciso ceder a uma forma de comédia social. Mas experimentas também uma forma dolorosa de rutura. Vês, como num sonho mau, Aquiles virar-se contra ti e repetir-te como o faz na Ilíada: “ É-me odioso como as portas do inferno, aquele que esconde uma coisa nas entranhas e diz outra” (canto  IX, 312-313). Ficas com um enorme nó no ventre. Quem ousa confessar que sofre muito da imagem que se fez dele próprio? Ou que ele pensa que os outros têm dele. Gostarias de confiar ao teu filho ou filha, a tua adolescência, eles que vivem com alguma angústia também na híper-confiança das redes sociais. Eles também acham que o que são, o que eles valem não corresponde aquilo que os outros lhes reconhecem. Também sofrem do fosso entre o ser verdadeiro e o seu ser social, as imagens veiculadas nas redes sociais, por exemplo. Quantas vezes, perante pequenas discussões, não ouvimos: “ não sou forçosamente a pessoa que tu imaginas.” Pedimos perdão. Todos passamos por certas máscaras, fabulações e superficialidades. Que necessidade, que carência nos leva a dissimular ou a escondermo-nos? Será possível agir de outra forma? Sofremos do desejo de coincidir connosco mesmos e da dificuldade de o conseguir, sofremos de autenticidade (fantasmagórica muitas vezes) e de duplicação ou multiplicação. Que imagem de nós-mesmos nos provoca tanto medo? Porquê querer a toda a força tirar a máscara? Não dormes. As insónias são muitas vezes ligadas às perturbações da personalidade, às incertezas da identidade, à perda de confiança em si-mesmo. As máscaras pertencem à noite. Incomoda-te a altivez dos outros, a convicção quando falam deles mesmos. Apesar de saberes pertinentemente que também se trata dum artifício, duma ilusão. Uma forma de fugir ao confronto com o duplo, de se esquivar à perda de si-mesmo. Não nos possuímos a nós-mesmos, só possuímos a perda daquele ou daquela que pensamos ser. Somos feitos de diversos rostos. Apagam-se e reaparecem por vezes. Não ouves verdadeiramente os que fazem ofício de condenar as aparências. Atrás de tantos chamamentos à sinceridade e à transparência, há muitas vezes abismos que gostaríamos de esconder. Criança, não suportavas que os adultos opusessem as seguintes palavras às tuas fraquezas: “ é muito fechado, muito calado, introvertido…”. Não, efetivamente nunca me entendi muito bem comigo- -mesmo. Talvez fosse necessário preservar a possibilidade de não ser o que somos. Saber humildemente que se trata duma eventualidade. Gostaríamos de ser inteiros, plenos, seguros de nós-mesmos. Não passamos de vazio e tremor. A tua adolescência confia- -te que gostaria que fosses feliz. Que precisa de saber que estás bem. Gostarias de lhe responder que preferes sentir a felicidade dos outros em vez da tua própria felicidade. Calas-te. Sorris-lhe. Percebes que vos pareceis muito um ao outro.

Adriano Valadar