O poder corrompe mesmo? É uma questão que emerge recorrentemente e que alimenta diariamente as nossas conversas. Mas o que é esta alegre potencialidade de ser capaz de impor a sua vontade aos outros ou aos acontecimentos, diz-nos muito sobre a nossa humanidade? E quando falo de “poder”, não aludo ao exercício dessa forma brutal do forte sobre o fraco. Refiro-me mais a esta forma de obrigar pelo cargo que se recebeu, duma autoridade superior ou dum escrutínio, duma delegação de poder que permite decidir. Esta forma moderna, democrática e assumida do exercício do poder dá asas ou sobe sistematicamente à cabeça? Se nos limitarmos aos factos, forçosamente constataremos que sem o exercício do poder, as nossas realizações coletivas seriam bastante pobres. Quando é erigida a ponte 25 de abril, o Burj Khalifa, ou uma nave espacial quando se faz o túnel no Marão, trata-se efetivamente duma série de decisões impostas, delegando, numa cascada hierárquica, uma vontade em múltiplas formas de poder. Neste sentido, o poder é libertador, emancipador dos constrangimentos naturais, físicos e humanos. Quando, inversamente, o mesmo não passa da expressão de opções arbitrárias, é limitador, comprime, restringe, apesar da aspiração geral para a liberdade, que suporta mal esta imposição discricionária da ambição individual. E neste momento coloca-se a questão de saber se o poder é corruptível, se muda, transforma o que o exerce num tirano com pés curtos. Conhecemos todos estes indivíduos que, a pretexto de deter uma onça de poder, usam e abusam sem complexo, muitas vezes para seu proveito, ou para o proveito do grupo a que pertencem. Nenhuma fatia da sociedade é poupada, a empresa, o mundo político, as associações e fundações, as igrejas, todas e todos se encontram implicados neste fenómeno, o poder sobe à cabeça e o que o assume converte-se em déspota, sem temer atingir ou ferir. E não lhes falo das figuras nacionais ou internacionais, dos Staline, dos Hitler, da descendência dos Kim na Coreia do Norte, e de todos estes tiranos sanguinários que esfrangalham o curso dos séculos. Não, sejamos modestos, e olhemos à nossa volta. O nosso chefe de serviço, o nosso eleito local, o presidente da nossa associação, que, a pretexto de que são eles que decidem, impõem uma vontade individual no desdém do bem comum ou da concertação. Perdem a passada, deslizam, prendendo-se à satisfação do seu ego sobredimensionado em detrimento do interesse geral. Então, como pavões, ouvem- -se falar, rebolam-se, e geram à sua volta pequenos motivos de gracejo e troça, mas em murmúrio, o poder que têm sobre nós convida à maior circunspeção. O nosso mundo vibra com tantas palavras detestáveis: “abusos”, «assédio moral», “ riscos psicossociais”, que são a parte imersa dum iceberg cuja imensidão provoca arrepios por todo o corpo. É preciso portanto coletivamente interrogar esta noção, é preciso pôr em causa o poder quando o mesmo é funesto, e instaurar os limites que o contêm no enquadramento justo e íntegro do interesse geral. Não se trata somente duma avaliação, dum desejo piedoso, ou de injunções vazias de sentido, é um projeto de sociedade, duma sociedade democrática e adulta, ou então o verdadeiro poder permanece com aqueles que o confiam de forma temporária e institucionalizada. O direito- direito do trabalho, Constituição, doutrinas- está bem presente para ser aplicado a todos os que, duma forma ou outra, ultrapassam esta delegação para sacar do exercício do poder um interesse pessoal, nem que seja simplesmente egótico. Desta forma sim, o poder corrompe e a este título é preciso encerrá-lo num tecido de regras que permitam ultrapassar os possíveis abusos. Resta a cada um de nós interrogar-se sobre a sua atitude face ao poder, porque todos, somos alvejados por este fenómeno. Em família, no trabalho, nas nossas relações sociais, representamos, cena após cena, uma comédia do poder em que somos os atores implicados. Que nós sejamos vítimas ou déspotas – e podemos ser sucessivamente os dois- devemos questionar- -nos sobre a melhor das formas de usar o nosso poder, poder sobre os outros, poder sobre os acontecimentos, para tirarmos daí partido para crescer e não para nos rebaixarmos num exercício abusivo do mesmo. Há a nossa parte de humanidade, do nosso ser e da nossa vida espiritual.