Durante muito tempo mantive-me distante desta questão. E nunca fui capaz de responder, talvez um pouquinho, nem sei bem. Mas hoje, persigo, com esta questão da ressurreição, a minha pequena meditação pessoal sobre a possibilidade de acreditar. Tinha- -me parado em tempos sobre a noção do impossível, pensando ser possível pensar o impossível (perdão), e que esta via seria a saída escarpada para um senão e conseguir pelo menos antecipá-la. Mas chego ao ponto de me interrogar: seremos nós capazes de suportar o nosso pensamento? Não será isso mesmo o que chamámos fé? Esta tenacidade no combate de ter de pensar o impossível. Sei que a palavra combate em grego (mais exatamente, o lugar do combate) é agôn, “agonia” em português. A agonia do Cristo é, para mim, este lugar onde devo lutar para suportar o meu pensamento sobre o que é o amor, a morte e a esperança. Pode parecer abstrato mas penso que é o que vivi, como tantas outras pessoas confrontadas com a perda, com o desaparecimento. Havia estes sonhos, meus amigos, estes sonhos recorrentes durante meses, em que se vê a pessoa de quem gostamos e desaparecida toda na sua carne e luz terrestres, com detalhes duma precisão assassina, destes pequenos pormenores que teríamos imaginado indiscerníveis na noite absoluta. O sonho não ressuscita nada nem ninguém contudo, pela queimadura da falta, faz reaparecer o outro de forma exorbitante, impossível. Neste mesmo sonho, o outro perguntou-me o que fazia ali. Era o desaparecido para sempre que se preocupava pelo meu desertar, pela minha errância. Porquê que que não tinha ficado lá em baixo com os outros, com o resto da família e amigos? O que fazia ali, naquele não-lugar? Acordei alagado em suor quando a agonia, a luta, se tornava insuportável. Creio que pelo meu sonho pretendia encurralar a vida na prisão do meu pesar, encontrava-me eu mesmo prisioneiro aos olhos da pessoa que procurava em vão. Muitas vezes, transformamos a vida, mergulhados no nosso desespero, num pequeno prisioneiro. E fixava-me unicamente na ideia de que aquilo que tinha sido possível já não o era, ter- -se-ia tornado impossível. Mas a ressurreição, o seu trabalho em nós, se posso pronunciar- -me deste modo, começa quando cessam os sonhos e as aparições. Crer na ressurreição prende-se com esta reviravolta, aquela que vejo no torpor e deslumbramento das mulheres do Evangelho perante o túmulo vazio. Esta ekstasis (S. Marcos 16, 8) que em grego designava uma perturbação do espírito, um desregulamento e uma inspiração sagrada. Uma revolução do pensamento; já nada é impossível. O impossível já não nos prende. Percebo muito bem que prender-se ao impossível não passava da nossa imperfeição. Das nossas falhas, no sentido original da palavra “pecado” (falhar o alvo). Não nos era pedido acreditar no impossível, mas sim pensar que a vida era, perdurava inteiramente no possível do mundo. O que é radicalmente diferente da perversão do sonho que me fazia crer que o que era impossível se tornava possível. Oh, sei que é muito difícil de apreender, mas direi as coisas desta forma: na fé na ressurreição, não tenho que procurar salvar o ser, um ser amado que perdi. Além disso o sonho indicava-me que, acreditando nisso na minha pena, eu é que pedia desesperadamente para ser salvo pela pessoa que eu pretendia salvar da morte e do esquecimento. Acreditar na ressurreição liberta-me do impossível e entrega-me à vida, ao seu infinito possível. Para falar como S. Paulo na primeira epístola aos Coríntios, é uma questão de poder, que se revela na escuta do outro. Quando percebemos o que nos mostra a fé (na esperança) - são as palavras de Paulo. Como os dois amigos amedrontados após a morte de Cristo e que no caminho de Emaús vão ter a experiência de que Cristo está ainda bem presente possivelmente entre nós. Basta ler, orar, caminhar juntos, descansar juntos, amar- -se, e pôr-se ao serviço dos outros como Ele-mesmo se pôs definitivamente ao nosso serviço. E nada conservar do que foi vivido, mas acreditar no poder que nos faz avançar e viver. Sim, a fé na ressurreição destrói todos os nossos conservantismos. Os do medo, do ressentimento, da angústia e do luto. A ressurreição confia-nos aos possíveis do mundo. O que aconteceu está bem vivo. Não tenho nada a conservar, tudo está aí com a Vida. Oh, não tenho qualquer certeza de perceber muito. Contudo guardo agora esta compreensão da ressurreição: o túmulo está vazio, o que acontece está na vida que se vive. Eu é que tive que me erguer, que me levantar, no possível da vida. E manter assim qualquer coisa do objeto da minha esperança. É a condição necessária para estarmos libertos do impossível.