Tânia Rei

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Um mundo maior do que imaginamos

Não me apetece ir pesquisar à Internet para vos explicar direito uma coisa de que me lembrei agora. A Teoria das Cordas, que, num resumo muito resumido e sem grandes precisão, acrescenta mais mundo ao nosso mundo, com mais dimensões e coisas assim. Isto entra ali algures no domínio da Física Quântica, que teima em dividir ainda mais as coisas pequenas e afirma que, é verdade, há muito mais para além daquilo que, de alguma maneira, conseguimos ver. Desculpem, caros leitores. Sou da área das Letras e acho que acabei de explicar o pouco que sei de forma demasiado lírica. Por isso, a conter incorrecções, encarem como poesia prosaica, uma definição abstracta da vida.  Isto para dizer que, se calhar, andamos a ver o mundo com palas. Provavelmente é isto o que acontece. Só que, como achamos sempre que nada nos escapa, lá ficamos, enganadinhos mas felizes, com a ideia que o mundo é só o que está à nossa frente.  Estamos a falar de um campo espiritual? Também, se quiserem. Mas, não era esse o objectivo. O que na verdade queria dizer é que podem acontecer coisas fantásticas todos os dias, a todas as horas. Só que, como não vemos o mundo todo, esses detalhes fogem-nos. Falando em mundo, sem fugir ao tema, mas de outro ângulo, a acreditar nas teorias (há teorias para tudo. Eu própria tenho várias), haverá a possibilidade de existirem mundos paralelos, onde nós também estamos. Uma versão de nós, estilo gémeo, sei lá. E nesses outros locais, temos experiências que aqui, neste «plano» escolhemos não ter. Se calhar foi confuso, mas está ligado, algures, à dita Quântica. Bom, então, quer dizer que temos a oportunidade de viver noutras realidades com o contrário das nossas decisões na, chamemos-lhe, vida real. Se escolhemos dizer «sim», algures saberemos como seria se tivéssemos dito «não». Isto não me conforta. Não poder ver o mundo todo, não o percepcionar totalmente e sabê-lo tão grande que só nos resta que seja partido. Porque simplesmente é tudo demasiado grande e complexo para ser absorvido num trago. E é angustiante viver com a clara noção que algo, em algum momento, me vai passar completamente ao lado. Porque, é assim mesmo, o mundo é tão complexo.  No outro dia, sentada nas muralhas de um castelo, a pensar, claro está, na vida, uma senhora cantava Rui Veloso, a plenos pulmões. Como que se estivesse num mundo à parte. “Mesmo sabendo que não gostavas... “. Talvez numa outra realidade estivesse a cantar death metal. Talvez outra fosse eu que estivesse a cantar. Talvez numa outra hipótese, nem existisse música, de todo.  Talvez o que nos reste seja viver e testar a realidade que temos, da melhor forma possível.

Entre a Vida e a Morte

Quantas vezes, por pura graça, fizemos ou respondemos à pergunta "o que farias agora se morresses amanhã?". Quase sempre a resposta foi extravagante - uma festa de arromba; uma refeição com comidas exóticas; uma orgia. Viagens para sítios paradisíacos está fora de questão, ou íamos morrer dentro de um avião, uma chatice. E passar as últimas horas no check-in. Porque nos parece mais extravagante morrer do que estar vivo. É como que estar vivo seja uma coisa de menor importância e morrer algo fora da caixa. A morte é tão pouco tangível. Viver parece tão adquirido, tão normal. Mais estranho é receber a notícia da morte de alguém. Não ligamos a ninguém para dizer "olha, fulano continua vivo hoje". Mas talvez devêssemos. Já diz o saber popular que a morte é o que temos mais certo. Ainda tenho alguma esperança, confesso, de que a Morte se esqueça de mim e me conserve, por engano, jovem e com saúde. Ainda que saiba que vai acontecer, falecer não está, de todo, nos meus planos próximos. Isso é que me dá liberdade para adiar tarefas, evitar resolver problemas prementes e ignorar o que me traz sofrimento. Isto porque, à partida, haverá uma Tânia do futuro, provavelmente amanhã, que irá lidar brilhantemente com tudo o que escolho agora deixar cair. E, se não fosse assim? Iria partir para o Além com assuntos mal resolvidos, deixar um rasto entre a Vida e a Morte como quando pisamos pastilhas elásticas derretidas na rua? Sim. Vocês não? Vivemos como se fôssemos eternos. Carregamos mágoas e coisas pendentes anos e anos. Escolhemos assim. É mesmo isso. Uma escolha. Não dizemos o que queremos dizer, andamos a cozinhar tudo em banho-maria. Ignoramos sentimentos, anseios. Deixamos tudo para "um dia", seja lá quando isso for. Porque nos fitamos nas estatísticas da esperança média de vida, o que, a correr bem, ainda dá uma folga para sermos politicamente correctos e agir sempre de acordo com a razão e o que é "melhor assim". Ou acham que, havendo algo do lado de lá do véu, nos podemos juntar, ocasionalmente, pelo menos, para tratar do que não tratamos em vida? Vão ficar no ver para crer, não é? A Humanidade tem reflectido muito pouco sobre esta questão, de que a distância entre a Vida e a Morte pode ser mais curta do que o que supúnhamos. Tempo extra para viver poucos terão. Investimos mais frases feitas: "Vive cada dia como se fosse o último". A sério? Foi o que pensaram ontem, enquanto viam séries que nem gostam na Netflix, só para passar (desperdiçar?) o tempo? Também por graça, já pensei bastante no que quero que diga o meu epitáfio. Desde as brincadeiras "Eu avisei que estava doente", "Não deixem flores, sou alérgica", "Morri, a sério?", "Finalmente, vou poder dormir mais de 8 horas", entre outras que, se escrevesse aqui, me iam proibir de continuar a escrever para o Jornal, a algo mais sério como "Aqui jaz Tânia Rei, uma pessoa feliz". Se pudesse pedir para escrever isso, sem mentir, sem ressentimentos e com todos os meus assuntos resolvidos, então a passagem por aqui teria valido a pena e estava, de facto, na hora de partir.

Alegadamente

De agora em diante, até acabarem de ler, p r e p a r e m - s e para o uso do advérbio "alegadamente". De acordo com o dicionário online Priberam (meu fiel amigo há alguns anos),"De maneira que carece de comprovação ou confirmação". A verdade é que estamos habituados a ouvir ou ler "alegadamente " nas notícias no bloco dos casos de polícia, nos tribunais e pouco mais. Quase nada parece ser passível de precisar de comprovação ou de confirmação. Alegadamente, as pessoas casam porque gostam uma da outra. Gostam, não! Costumam usar aquele verbo que expressa afeição, mas a um nível transcendente - amar. Amam-se, então. Essa devia ser a prova - casam-se porque se amam. Muitas destas pessoas escolheram entrar de mãos dadas no copo d'água ao som de "Just give me a reason", da Pink com o Nate Ruess. O que devia deixar logo uma pulga muito inquieta atrás da orelha. Ou lembra a importância de ver a tradução das letras. Ou então, não, e era mesmo assim. Alegadamente, o matrimónio é contraído de livre e espontânea vontade. Até perguntam isso mesmo nas cerimónias religiosas. Ouvi certa vez num espectáculo humorístico que, além de doenças, o casamento é a única coisa que se contrai. Isso ou dívidas ou empréstimos. E nada disto é muito bom. Alegadamente, os casamentos devem ser cedo. Concordo que deve ser com imensa felicidade que se acorda às 5h da manhã para "o dia mais feliz das nossas vidas". Eu, levantada a essa hora, nem sei dizer o meu nome. Mas também dizer "sim" parece mais fácil do que dizer "Tânia". Então, penso que seja exequível. Alegadamente, o dia do enlace passa muito rápido e os noivos nem conseguem aproveitar. Isto não funciona assim da óptica do convidado. Espera-se horas para haver alguma coisa de comer, entre cerimónias e viagens. Quando há finalmente algo para morfar, estamos roxos de fome e comemos como alarves. Meia horita e estamos redondos. Depois, entramos no horror infindável que vai desde as entradas até à continuação da comida. São horas em que devíamos estar a degustar os alimentos (deve ser essa a lógica, para nos entreter enquanto há uma sessão fotográfica em paralelo) que aspirámos em quantidades industriais em tempo recorde. Por isso é que as pessoas se alcoolizam. Não é só alegria de celebrar o amor alheio. É tédio. Alegadamente, há sempre um pedido de casamento fora da caixa e romântico. Isto acontece porque se encontrou a alma gémea. E, como todos sabemos, quando isso acontece não convém perder muito tempo até lhe meter uma argola de um metal precioso pelo dedo anelar abaixo. Há esse desejo incontrolável. Curiosamente, mais vezes ouvi a justificação do "porque está na hora", "porque ele/ela quer", "a mim tanto me dá, ter papel ou não". E somos arrastados para estas comemorações cheias de logística. Para sermos testemunhas de todo este amor orgânico. Alegadamente, há pessoas que se amam a vida toda. Algumas amam-se uma vida inteira nem nunca casar. Algumas amam uma pessoa mas casam com uma terceira. Algumas vêem o amor da sua vida casar com outro marmelo e ficam tão tristes que ficam sozinhas o resto da vida. Alegadamente, o amor é a melhor coisa do mundo. Isso e as crianças. As crianças são feitas, muitas vezes, porque há amor. Ou transformam o amor. Enfim, alegadamente, não podemos viver a vida toda sem dizer "sim" ao amor. Por mais esquisito que isso seja.

“Quem és tu, ó Mascarado?“

Todos passamos tempos estranhos com isto das máscaras. Da novidade, veio a adaptação inevitável. Do desespero por encontrar qualquer uma, nem que fosse para trabalhos de serralharia e, de preferência, mantendo os dois rins, passando pelas de pano “que sempre seriam melhor do que nada”, aos especialistas em TNT (que antes era só AC/DC), às cirúrgicas e Ffp2 (isso soa nome de avião), até aos tutoriais para um simpático home made com resguardos de ensinar os cães a não fazer xixi pelos cantos da casa e meia dúzia de agrafos, qual MacGyver pandémico. Depois de tudo mais ou menos normalizado, começamos a ter as nossas preferências. As que encaixam melhor no nariz para não embaciar os óculos, as que não nos fazem sentir elfos, as que se mantêm efectivamente no sítio e, por fim, as que ficam melhor com a roupa que temos vestida. E passaram a fazer mesmo parte da indumentária, a ponto de nos sentirmos esquisitos sem ela. Como o slogan do Pessoa para a Coca-Cola. “Primeiro estranha-se... “. No início, pensava que o uso de máscaras nos dava um certo anonimato. “Ai, isto agora com as máscaras”, que, além de nos ensurdecer, nos poderia tornar também menos reconhecíveis. Isto a juntar a uns óculos escuros e a uma gabardina, poderíamos ser verdadeiros 007, agentes secretos prontos a não fazer nunca mais conversa de ocasião. Sonho pessoal. “Vi-te no outro dia”. “A sério? Isto agora com as máscaras... “. Remate perfeito. Acontece que agora já todos nos reconhecemos com máscara. E o mais certo é mesmo ter conhecido pessoas no entretanto (parece um paradoxo) que nunca vimos sem a dita. Por isso o mais difícil era mesmo reconhecer sem a máscara. Fizeram um estudo, se calhar também se cruzaram com ele, em que se chegou à conclusão que ficamos mais atraentes com máscara. Isto porque o cérebro preenche o que não se vê com características que agradam. No caso mais extremo, uma mulher foi considerada 70% mais bonita pelos participantes com máscara do que sem. Dá que pensar. Àquele flirt gostoso com alguém de máscara, quantas vezes se seguiu a conversa “agora vamos ver no - inserir nome da rede social - para ver o resto da cara”. Só para ter a certeza. Se pensarmos em exemplos semelhantes famosos, como o Clark Kent, o Zoro ou a Hannah Montana, chegaremos à conclusão que os pequenos pormenores talvez façam mesmo a diferença. E ficaremos confusos com assaltantes que usam meias de vidro cabeça abaixo ou passa-montanhas. Sem necessidade alguma, afinal. Ou isso ou a população tem só, no geral, um défice grave de atenção. O meu exemplo preferido é o Mascarado, do desenho animado Navegantes da Lua. Uns fantásticos óculos brancos design olho de gato, que não são para qualquer um. Além do toque fashion, ocultavam a identidade na perfeição. Não impediu que a Bunny se apaixonasse perdidamente pelo suposto estranho. Só que na verdade conhecia-o e nem se davam assim tão bem. Enfim, quem nunca? Lá mais para a frente, os óculos deixam de ter lentes que parecem espelhadas, passam a ser meias transparentes ou até inexistentes. Há alturas em que se fica na dúvida se é só uma máscara kinky, e afinal nem são óculos nenhuns. O que não muda nada em efeitos práticos. Bom, e sem outros pormenores a que se agarrar, há que fazer a conversa de ocasião possível: “Qual é o teu hobby, Mascarado? Diz-me. Tu gostas de...feijoada, por exemplo?” Em boa verdade, as Navegantes da Lua não usam máscara, só aquelas farpelas reduzidas e lycradas, com saias plissadas. E nem por isso são identificadas. Então se calhar vou aceitar que as máscaras não são o Manto da Invisibilidade, que pode antes ser obtido com um cocktail de adereços. Sejam quais forem os argumentos, neste novo mundo, que fica dentro do nosso planeta, na impossibilidade de castigar em nome da Lua e salvarmos o universo, presente e futuro, continuamos a ser, pelo menos, heróis à escala local se continuarmos a cumprir as regras. É só mais um bocadinho. Citando o Luna, “coitadinhos”. Mas lá terá que ser.

O normal é ser diferente

Às vezes, percebemos que, para podermos andar descansados, temos que andar ao contrário de toda a gente. Por norma, se estamos a fazer algo diferente de todos os restantes, leva-nos a crer que algo está errado. Como quando caminhamos da direcção oposta dos restantes, que se deslocam em manada (tempos A.C. - Antes da Covid-19) . “Ou somos muito espertos, ou então muito burros”. Quem nunca?

Bom, a verdade é que o que neste momento em que vos escrevo me está a permitir usufruir de alguma calma e normalidade é ter vindo tomar o pequeno-almoço fora... Quase ao meio-dia e meia hora. Ora, ao passo que muitos se preparam para o almoço, eu vim, poderão dizer, com algumas horas de atraso. Para mim, cheguei no momento certo. Evitei filas, confusões, pessoas em geral. Não evitei o ar reprovador e algo confuso da senhora que me atendeu, e que perguntou duas vezes para confirmar o meu pedido, que lhe pareceu tão desajustado. Agora estão provavelmente sentados a mirar uma ementa de pratos do dia, ou a espreitar pela esquina do olho para um qualquer programa da manhã enquanto tentam não deixar queimar o estrugido do arroz. E eu, aqui estou, a beber uma meia de leite, sem pressas.

São pequenos luxos que nos permitem manter a sanidade mental. Andar como queremos, sem querer saber o que pensam sobre nós. Isto quer dizer que nem sempre o mais sensato, o mais “normal” é o melhor para nós? Acho que, no fundo, quer dizer isso mesmo. Quantas vezes dizemos que “não” a querer dizer “sim”?

Quantas vezes dizemos que “não” porque é mais fácil, mais ajuizado, e outras tantas damos um “sim” para não levantar ondas (a ordem dos “nãos” e “sins” podem decidir vocês, sintam-se à vontade para trocar. Este é um texto totalmente livre de regras, por isso, força!).

E, pior, por cada vez que nós dizemos “não” alguém diz “sim” em nosso lugar (mantenhamos a regra do parágrafo acima, caro leitor). Por cada vez que adiamos a vida, por tantos motivos que não passam de desculpas, de facilitismos, ela continua a avançar, sem nós, noutros sentidos onde não estamos. Se isto nos deve preocupar? Claro. Se devemos fazer algo para mudar isto? Certamente.

No meu caso, hoje não, que ainda tenho uma meia de leite e estas linhas para acabar, e estão ambas a saber-me bem. E vocês, do que é que estão à espera?

As mudanças começam em nós. Esta frase não é minha, logicamente, ainda que não cite autores porque não sei se há mesmo um ou se é a sabedoria popular ou, talvez, tenha lido num livro de auto-ajuda qualquer na prateleira de um supermercado. As mudanças são enormes. Outras são um pequeno passo. Um ato de coragem, de ousadia, um efeito borboleta Hoje, a minha mudança, a minha revolução, foi tomar o pequeno-almoço à hora do almoço e contrariar do resto do mundo (neste fuso horário, pelo menos). Remar contra a maré e ser diferente pode mesmo ser uma “estranha forma de vida”, como cantava a Amália (eu por acaso gosto mais da música dos caracóis, mas não se adequava aqui). É, afinal, o que há de mal em ser estranho, certo? De revolução em revolução, um dia vamos acabar felizes e descansados com a vida que escolhemos. Mesmo que seja o contrário do resto do mundo.

Sim, continuo aqui

Vou lançar aqui um desafio: conhecem alguma história de amor que tenha ficado mal resolvida? Ou será melhor perguntar antes de quantas se lembram, sem pensar muito (ou no próximo texto ainda estaremos a discutir este tema, e vamos chegar à conclusão de que é melhor escrever um livro só com estas vivências. Fica o registo para eu receber depois os devidos louros). Começo, como é lógico, eu, - e até acho que já contei isto uma outra vez - com a história de um senhor que queria pedir a mais nova de duas irmãs em casamento. Mas, com o nervosismo, atrapalhou-se tanto que o pai das moças em idade casadoira percebeu mal, e acedeu dar a mão da filha mais velha. Não foi permitido desfazer o engano, estava feito. Pelo que o jovem teve que casar com aquela que queria antes para cunhada, e que se chamava Perpétua. Já pensaram quantos amores ficaram desfeitos por mal- -entendidos, por uma carta que nunca chegou ao destino, por culpa de um preguiçoso que não foi chamar para ir ao telefone, por uma mentira maldosa de terceiros? E tudo tinha um fecho, de algum modo. Que podia ser um “e nunca mais soubemos nada um do outro”, com mais ou menos pena. Tudo mudou com as redes sociais. Podemos estar a morar noutro planeta que nos é permitido manter por perto quem nós quisermos. Ou afastar. Só que, por norma, e pelo sim pelo não, fica lá. Ou porque achamos infantil eliminar alguém só porque as coisas correram menos bem, ou porque estaríamos a dar a parte fraca e dizer que aquilo nos afectou. Ou, tanta vez, porque queremos manter uma ligação, ainda que digital, com determinada pessoa. Saber algo dela, saber que podemos conversar (ou tentar, vá) com ela ou interagir de alguma forma. Interagir é talvez a melhor expressão, porque é o que fazemos online. E há uma espécie de manual quase universal com vários passos para isto, quando se trata de “pendências” (façam vocês a piada). Podemos escolher dar “likes” depois de meses ou até anos sem trocar uma palavra. Podemos elevar o patamar e fazer isso só que em fotografias com séculos (eu estive a ver o teu perfil todo, todinho, pois foi. E como é que isso te faz sentir? Vais falar comigo? Ou começo eu? Sim, sou o amor da tua vida. Mas está tudo cego?). Podemos dar logo tudo numa piada no chat. Lançar ao mar aquilo que parece um inofensivo anzol sem isco, que acaba por ser pesca de arrasto. Estamos ávidos de informação na internet, de dar e receber. Queremos também marcar uma presença, lembrar ao outro que estamos vivos, numa publicação perto de si. E não queremos demoras nas ditas interacções, se houver lugar a elas. Para isso teríamos escolhido enviar uma carta, soubéssemos nós o raio da morada. Acho que hoje em dia só as Finanças sabem a nossa morada. Ou talvez, com a internet, saibamos é tudo e tão pouco, na verdade, sobre as pessoas a quem queremos. E sabemos que as queremos por perto, ainda que assim à moderna, onde tudo funciona à distância, sem horários e quando nos apetece. É então caso para perguntar: estamos a dar cabo do romance ou é o romance que está a dar cabo de nós?

Dar água sem caneco

Quão fácil é falar? Falar é algo natural ao ser humano. Comunicar, de qualquer forma. É inato. Mesmo quem se diz anti- -social e que prefere estar sozinho acaba por ter necessidade de algum contacto humano (até porque, reparem, “quem se diz”. Tiveram em algum momento que verbalizar este sentimento). No meu caso em particular, sempre tive uma propensão enorme para comunicar. Até em demasia. Que o diga a minha mãe, que teve que lidar com uma criança que só queria conversar a toda a hora, criando tópicos de conversação à velocidade da luz e testando palavras que ouvia na televisão e tentava encaixar num discurso que, achava, coerente e fluído. “Filha, vai brincar um bocadinho para outro lado, para a mãe descansar a cabeça”. Uns bons trinta segundos depois, após uma volta completa à mesa da cozinha: “Já descansaste? Já posso falar outra vez?”. De tal forma estamos habituados a interagir, sem, até, darmos muita importância, que frequentemente dizemos mesmo que “falar é fácil”. Porque, de facto, sem embaraço atiramos palavras para expressar verdades, inverdades ou raio de coisa nenhuma. Para “deitar conversa fora”, para “dar dois dedos de conversa”. Ou, em alguns casos, “dar água sem caneco”, chegamos a essa conclusão. Temos a percepção de que falar, ceder parte do nosso tempo ou da nossa atenção pode não ter grande importância. Que não belisca em nada a nossa vida. Que pode ser, até, uma espécie de caridade para com alguém que precisava mesmo daqueles minutos do nosso dia. Minutos esses que a nós nem nos fizeram diferença, nem demos pela falta deles. Conseguimos completar as nossas tarefas sem aquele bocado que atirámos fora. Ainda assim, isto não corresponde à verdade. Dar água sem caneco pode ser perigoso. Não tão perigoso como ser ajudante de um atirador de facas ou beber lixívia - porque são coisas potencialmente mortais. Mas pode deixarmos danos irreparáveis. Porque o tempo tem esta mania estranha de só andar para a frente. E ainda ninguém fez o favor de tornar um vira-tempo real (isto é uma referência à minha saga literária predilecta, mas podem trocar por máquina do tempo, que vai dar ao mesmo). Se somarmos todo o tempo perdido com conversas sobre coisa nenhuma ou que não nos levaram a uma conclusão arrebatadora, vamos chegar à conclusão que com este lero-lero perdemos, pelo menos, tempo que podia ser gasto com uma boa soneca, num passeio, numa mariscada ou, quiçá, numa prosa realmente interessante. E por que é que temos este tipo de conversas? É porque achamos que nos guiam a algum lado ou porque retiramos delas alguma satisfação pessoal momentânea, sob um ponto de vista retorcido? Há estas pessoas que teimam em conversar sobre tudo. Tudo é um possível assunto para uma conversa séria, daquelas que exigem tempo e disposição, para deixar tudo em pratos limpos. A não ser, claro, que seja mesmo necessário conversar. É que, hoje em dia, tudo é muito efémero. E é tão fácil falar, mas só se não tivermos nada de útil para dizer. Dizemos coisas da boca para fora. E, no final do dia, parece que andamos é todos a dar água sem caneco.

O fim do mundo

Assim de repente, contei cinco. Vinham a subir umas escadas de cimento quando os comecei a ver. Acho que estavam a sair de um parque de estacionamento subterrâneo. À frente vinha uma mulher loira. Calças de lycra pretas. Um top justo, algures entre o rosa e o vermelho. Por cima, um casaco fino largueirão exactamente da mesma cor, descaído casualmente, a condizer com toda a indumentária, no ombro direito. As sapatilhas de corrida deram mais jeito do que o previsto, uma vez que estavam a tentar escapar de uma invasão de extraterrestres. Uma das mulheres do grupo foi apanhada, entretanto, por entre gritos e correrias. Era uma espécie de polvo, mas biónico, que emitia sons que faziam lembrar morsas. Mas também ela estava impecavelmente vestida. Calças de ganga e um blusão de cabedal castanho. O resto não vi muito bem, porque rapidamente foi sugada pelo ser biónico de outro mundo. Nunca entendi muito bem esta fixação dos aliens em matar os terráqueos. A não ser no Marte Ataca!, porque aí é claro que os marcianos têm só um sentido de humor retorcido (talvez não fosse a melhor altura para vos lembrar disto, mas agora já está). Voltando ao que vos estava a contar, os restantes safaram-se. Entraram, por uma unha negra, num prédio. Foram para um apartamento. E lá deu para ver que a loiraça tinha o cabelo imaculado, mesmo tudo indicando que estava a fazer a sua corrida matinal antes, e a maquilhagem incrivelmente no sítio. Isto, sim, era um anúncio para vender cosméticos - aqueles que sobrevivem, até, ao apocalipse. Acho que o final do filme não é muito feliz. Mas também essa não é a questão. A questão verdadeira é: estamos prontos para saber o que vestir, quando chegar o fim do mundo? A sério. Quando tivermos que fugir, levar só o indispensável (que é esse belo couro e pouco mais). Saberemos nós estar à altura de todas as películas que vimos, onde toda a gente aparece com aquele look casual-chic-super-confortável-para-lutar-pela-vida? Ou, mesmo que não seja, rapidamente se converte. Rasga aqui, corta ali, atira fora os sapatos de festa de salto agulha e calça umas botas da tropa arrancadas a um cadáver, que calha ser o nosso número. E faz envergonhar muitos designers ou costureiras mais habilidosas. Mais do que saber que é preciso assaltar uma farmácia, para roubar antibióticos, ou que a água que fica no autoclismo é boa para beber, é importante pensar na indumentária. É melhor levar um casaquinho para a noite, mesmo se for Agosto? As nossas mães diriam que sim. Cabedal é sempre bom, dá um ar de durão, mais uns óculos de sol marotos. Mas, se for Verão, é capaz de fazer transpirar. E a moça desse filme que vi não se safou nada bem, mesmo com a coberta janota. E, se o fim do mundo demorar muito a passar, como vamos fazer com depilações, unhas ou raízes descobertas? Ou barbas e cabelos à náufrago? E onde vamos arranjar espaço para a maquilhagem, cremes e produtos de higiene no meio da mochila ridícula onde só já há latas de comida de gato, frascos de feijão manteiga e meia dúzia de antibióticos fora de prazo? Sabem? Acho que não estou preparada, ainda, para o fim do mundo. Mas, se tiver mesmo que ser, pelo menos que não me apanhe com o pijama enfiado.

Futurologia

A conjuntura actual tem-nos obrigado a viver no futuro. O agora é como viver no suspenso, à espera. É viver da melhor forma possível, da mais responsável, da mais restrita. Uma espécie de garantia para chegarmos ao tal futuro. Há quase um ano que as conversas são dominadas pelo futuro: “quando isto melhor”, “assim que der”, “quando tudo passar”, “não vejo a hora”. Nunca vivemos o presente com tanta pressa, porque o que interessa é, na verdade, o futuro. Queremos lá chegar com a máxima brevidade possível, mesmo sem saber quando isso será. Numa actualidade repleta de incertezas e provações, é- -nos permitido este escape - viver no futuro, onde a nossa vida voltará a ser como antes. Ainda que nem saibamos, talvez, o que é esse “antes”. Porque nunca nos tínhamos encontrado em tamanha situação, em que o mundo tal como o conhecíamos ficou virado do avesso. O que nos vale é poder sonhar com o futuro, fazer planos para ele. Idealizar os sítios onde iremos, as pessoas com quem estaremos, o que faremos. São mesmo as pessoas e a liberdade de ir onde queremos e fazer o que queremos que mais passam a importar. É o que domina o tal futuro. NinFuturologia guém quer estar no futuro sozinho. O futuro deixa de ser a resposta a uma pergunta clichê, de onde nos vemos daqui a uns anos, rodeamos de bens materiais. Passa a ser uma mesa com a família e os amigos. Talvez até desconhecidos ou recém-conhecidos. Passa à frente o contacto humano. Passam à frente os risos e as conversas. Os beijos que queremos trocar. Os abraços, dos quais estamos destreinados. Fazer futurologia passou a ser uma forma de viver, de ser abduzido por um mundo paralelo. Estamos fartos do raio das provações, e, ainda assim, não as podemos ignorar. Provavelmente, quando tudo ficar bem, já teremos planos para as próximas décadas, de tanto almejar o futuro.  Algumas pessoas ficaram mais perto, mesmo estando longe. Outras, ficaram cada dia mais longe, e é OK. Percebemos que, afinal, sempre tivemos tempo, somente não tínhamos a disposição. Ou tínhamos disposição a mais para o que era um vazio, e isso obriga-nos a reflectir. Ainda assim, são mesmo os outros que mais nos fazem falta. Talvez, no tal futuro, aprendamos a gerir melhor o relógio. Deixaremos as pressas, os afazeres que, se calhar, nem são assim tão importantes. Talvez no futuro se queira estar presente. Mal posso esperar pelo futuro, esse malandro fugidio. Até lá, ainda falta uma grande corrida de obstáculos. O futuro é a luz ao fundo do túnel, a réstia de esperança. É como naquelas séries televisivas, com muitas temporadas, em que a derradeira demanda vai ficando adiada, porque, entretanto, surgem outros problema s prement e s que não podem ignorar, sob pena de hipotecar o propósito final. Contudo, está sempre no pensamento, no foco. Nunca fui adepta de futurolo - gia. Agora sou. Vivo a adivinhar, a desenhar o porvir. Porque o presente não me serve. O presente vai, um dia, ficar num passado doloroso. Uma aprendizagem à bruta, que nunca pensámos ter. E, quando dermos por ela, já é o amanhã pelo qual tanto esperamos. Nesse dia, quero ser mais feliz do que alguma vez fui, aproveitar melhor o tempo, a liberdade e as pessoas. Porque, como todos, saberei o quão foi difícil viver num agora que não queria, obrigada a viver no futuro.

Mensagens escritas e beijos

Há cerca de duas décadas as mensagens escritas tornaram-se corriqueiras. Primeiro, nos telemóveis. Tínhamos que gerir bem quanto escrevíamos, para só pagar uma mensagem, e a quem a  enviávamos.  Uma mensagem escrita era um evento controlado. E tínhamos que ter um motivo válido para as receber ou enviar. Aprendemos a escrever telegraficamente, por causa dos tais caracteres contados. Usávamos abreviaturas manhosas, onde reinavam letras como o k. Infelizmente, há quem tenha ficado preso nos anos 2000, e essa forma de assassinar a língua materna permanece viva. Era entendimento geral que não era suposto manter uma conversa longa pela via escrita, no telemóvel. Por norma, havia um propósito, um objectivo. Se fosse só para chamar a atenção, dávamos «um toque». Havia quem tivesse códigos, qual jogo do copo, mas com o telemóvel e pessoas vivas. «Um toque sim, dois não». «Manda toque ao saíres de casa». Hoje em dia, isto seria um «olá», assim, à paposeco, em qualquer plataforma de conversa online. Para delongas, tínhamos a internet. Primeiro, o mIRC. Sou mais do tempo do Messenger, com aqueles dois bonequinhos, um verde e outro azul. Entretanto, veio o Facebook, e depois passámos a ter um Messenger lá. Não sei a ordem correcta dos eventos, mas o velhinho Messenger desapareceu por esta altura. Mudanças que tivemos que acompanhar, e que o fizemos de forma muito natural. Por esta altura, já a internet era mais acessível, a todos os níveis. Chegou a todo o lado, aos telemóveis sem teclas também. Tudo a uma velocidade (mais ou menos) galopante. Agora, quem não está disponível online é como que se não existisse. Está fora de mão. Estamos todos habituados a falar por escrito, online. Não me lembro a última vez que escrevi, à mão, uma carta inteira para ir aos Correios. Quanto muito, escrevo no envelope. E até isso estamos a perder. Hoje, é quase obrigatório usar bonequinhos para exprimir sentimentos. É possível fazer frases só com estes amigos coloridos. Completa a parte escrita, como uma bengala, para conseguirmos transmitir correctamente as nossas emoções. É que escrever é sempre um exercício individual, mesmo com a tecnologia. Podemos escrever, saber o que queremos dizer, achar que é entendível da maneira como o concretizámos. Mas ser imperceptível para o receptor, porque criámos um “ruído”, algo que impede a t ra nsmissão do que queremos dizer. Outras vezes, somos só mal interpretados. Até escrevemos bem as nossas ideias, só que ler também é um exercício pessoal. E nem sempre se entende o que o emissário quis, de facto, dizer. Uma interpretação deficiente, ou personalizada, se preferirem, não é incomum. Uma das coisas mais dúbias para mim nas conversas online são os «beijos», «um beijo» e «beijinhos», nas despedidas. Deve ser por isso que raramente, nestas interações, cumprimento ou me despeço, a não ser que saiba o que é seguro. É seguro mandar “beijinhos” a toda a gente. “Beijos” também é mais ou menos seguro. Mas “um beijo” é diferente. Parece demasiado pessoal. É só um. Repenicado. “Um beijo”. Claro que tudo depende de quem o diz e para quem se diz. Não teremos dúvida que há “um beijo” equivalente a “beijinhos”, e vice-versa. Contudo, “um beijo” parece criar proximidade, mesmo virtual. Ficam dúvidas, que podem provocar ruído e causar uma impressão equivocada, para o bem e para o mal. E é por isso que, para deixar tudo em pratos limpos, às vezes temos mesmo que optar por fazer as coisas à antiga. Cara a cara. Viver de verdade, por esse mundo afora. Como antes das mensagens escritas. E como deve ser.