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Tânia Rei

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Fazer nevar no inferno em pleno Agosto

Dou por mim sentada numa esplanada, como a maioria das pessoas por estes dias. A transpirar por tudo que é poro. E pensar que só queria fugir do sol abrasador transmontano. Resultou em cheio. Seria anormal nevar em pleno Agosto, é certo. Uma notícia que correria o mundo. Mas o calor faz- -nos suar e ficar pegajosos, o que não é nada confortável, até para os mais treinados, como é o meu caso. Afinal, são muitos anos a conviver com o ditado “nove meses de inverno e três de inferno”, usado de forma muito assertiva para descrever o ano meteorológico de Trás-os-Montes. Falando em inferno, talvez a culpa de todo este calor não seja das alterações climáticas ou, simplesmente, o cumprir da normalidade. Já sabemos que o calor faz falta a muita coisa, e que faz parte. É o mesmo com o frio e o assim-assim. Mas isto já é maldade. Aliás, já nem me lembrava de um Agosto com clima de Agosto. Por norma, só damos pela falta dele quando precisamos, como em dias de festa em que não contávamos ter que carregar com um casaco. Logo este ano, em que estamos escassos em festas, vem o calor em força. E os casacos ficavam em casa. Enquanto destilava e tomava a minha água com gás, muito gelo e uma rodela de limão, dei por mim a fazer a pergunta que já deve ter cruzado a mente de mais de metade da população mundial: E se a Eva tivesse resistido à serpente e não tivesse comido a maçã? E se, pelo menos, não tivesse influenciado o Adão a pecar com ela? A culpa original pode ser mesmo dela. Será que o verão era agora menos quente e o inverno menos rigoroso? Será que tínhamos tido alguma benesse extra no que toca à nossa existência? As nuvens seriam, tal como parecem vistas daqui, feitas de algodão-doce, e que poderíamos mesmo comer, sem engordar ou ficar diabéticos? Iríamos mesmo viver para sempre, de preferência jovens e saudáveis? Quem sabe, o clima seria decidido em cada lugar de acordo com o merecimento de quem lá mora. Como uma prenda, ou uma punição. Mesmo que tenha sido assim, percebo a Eva. É muito difícil ser perfeito e nunca errar. Até porque às vezes, queremos mesmo errar. Não é que não saibamos a diferença entre o certo e o errado, ou que não tenhamos consciência que poderíamos ter tomado melhores acções. O que acontece é que é o que queremos, porque somos humanos. E os humanos guiam-se por leis que, tal como à Eva, nos levam por caminhos que não achávamos que nos estivessem destinados. A diferença entre o certo e o errado também é muito ténue. Há mesmo um lado bom e um lado mau? Uma decisão acertada ou um tiro ao lado? Talvez. Mas o que a Eva nos deu também, em última análise, foi o livre arbítrio para pensarmos somente com a nossa razão e a nossa emoção, sem concepções pré-definidas. Assim, vamos poder descobrir, sozinhos, onde nos levam os nossos desejos e as nossas escolhas. Vamos poder investir no que achamos que nos faz felizes, fugir do que suga as nossas energias. Vamos poder fazer tantas coisas quantas quisermos, para não morrermos estúpidos e na ignorância, ou com receio de que, sem querer, acabemos por arrefecer o verão ou aquecer o inverno. Mesmo se acabarmos por ouvir acusações sobre a súbita subida de temperatura no Céu ou se fizermos nevar no inferno em pleno mês de Agosto, vamos poder ter a firma certeza que, simplesmente, estamos a viver. O melhor que podemos e sabemos. Sem medos.

Lembranças com cheirinho a fruta e flores da moda

Há coisas que, com o tempo, começam a parecer-nos como aquelas embalagens de óleo corporal de usar no banho - com o uso, o rótulo começa a encaracolar nas pontas, o que nos leva a desconfiar da integridade do conteúdo. Temos sempre a opção de retirar o rótulo. Arrancar tudo de uma vez. Mas depois fica a dúvida. Será que deixarmos de ver o rótulo nos vamos esquecer do que está dentro do frasco? Que vamos deixar de saber que se deve usar com a pele molhada? Então optamos por deixar tudo como está, até que, eventualmente, acabe por cair sozinho. E aí não sentiremos qualquer culpa, porque não tivemos responsabilidade no que aconteceu. Obviamente que algumas coisas são mais do que um frasco de loção para o corpo. Quando muito, seriam uma loção para alma. E mesmo que ficassem desbotadas e não tão bonitas como no início, certamente não seria motivo para descartar. O que é certo é que o tempo tem o poder de apagar, ou pelo menos, acalmar. Tudo. O tempo dissolve as coisas. O que dói fica só a ser um sentimento pequenino de incómodo, como uma cicatriz de uma ferida em que tivemos que levar pontos. O que era uma euforia transforma-se num sorriso agradável de uma lembrança boa. O que não teve importância fica difuso ou omitido. As dores, os desejos, as alegrias. Tudo começa por ser um frasco de loção muito bonito, com óptimas características. Até que a água quente dos banhos vai transformando, em algo que, apesar de ter a forma inicial, já não é o mesmo. Mas há coisas que a memória teima em guardar. Como aqueles sabonetes especiais que nos dão nos anos e que ficam para uma ocasião especial, que nunca chega. Mas ficam lá. Intactos. Vamos limpando o pó, colocando num sítio mais à vista, não vá surgir uma oportunidade de finalmente usar. Já outras memórias são como um incêndios de grandes dimensões que precisasse de vigilância constante. Porque basta uma faúlha para tudo voltar a arder, e às vezes até com mais intensidade. O que não esquecemos é aquilo que nos marca, às vezes sem o sabermos. Porque, de algum modo, prende as nossas energias. Para o bem e para o mal. Pensei em tudo há uns dias enquanto fazia mira ao meu óleo corporal com cheirinho a fruta e a umas flores da moda. Está a mais de meio, e começa a descascar. Depois, quando acabar, gosto tanto que vou comprar uma embalagem novinha em folha. E vou esquecer-me de quantas embalagens tive daqui a algum tempo. As memórias também ficam em tantas embalagens que deixamos de nos lembrar delas. A forma, do tamanho. Mas elas estão ali. Não sabemos quantas são. Todos os dias vão crescendo e acumulando. E vamos armazenando. Vão mudando de forma, de feito, até de cor. Mas, um dia, esses frascos vão começar a cair das prateleiras. Vão começar a partir-se à nossa frente e a libertar o seu conteúdo. Algumas poderão ser deliciosas. Outras dolorosas. Outras, uma surpresa. E se as memórias não param de nos assaltar, podemos dar-lhe uma nova forma, como a embalagem sem rótulo mas totalmente funcional. Ou podemos ir mais longe e criar novas memórias ligadas às memórias que já temos. Porque, afinal, se que nos continua a assaltar o pensamento é porque não pertencem ao passado.

Sonhar é como escrever um romance?

Há alguns anos, tinha um sonho recorrente. Ali estava eu, vestida de noiva, com a sensação de ter o coração esmagado no peito. Não sei se o vestido era bonito ou feio, apenas que era farfalhudo e comprido. Tinha o cabelo apanhado elegantemente atrás, com algo preso, branco e translúcido, a esvoaçar. Estava na igreja da minha terra, o que justifico com o facto de a minha mente saber que foi naquela em que entrei mais vezes, e por isso era mais fácil construir um espaço cénico. Ali estava eu, contava-vos, caminhando agoniada , sem sorrir e sem olhar para os lados, até parar no altar, para encarar um noivo todo emperiquitado, cuja cara nunca vi com nitidez. O senhor padre, também desfocado, fazia a típica pergunta:”Aceita este homem (não havia direito a nome, era assim “homem”, genericamente) como seu legítimo esposo?”. E eu, inspirava, expirava, pensava e respondia com certeza:”NÃO!”. Pegava no vestido farfalhudo até quase ao nível dos joelhos e corria igreja abaixo, pelo corredor central, focada na porta. Além do toc toc acelerado dos sapatos de salto alto que tinha calçados, só ouvido os “oh!” de reprovação e surpresa dos convidados, que enchiam o local até ao tecto. Na rua, na calçada em paralelo, esperava- -me outro homem, montado numa grande motorizada preta como que se soubesse que eu ia desistir. Tinha calças e uma casaca de cabedal pretas, capacete a condizer e viseira para baixo, é claro, para que ninguém, inclusive eu, tivesse sequer um vislumbre a sua identidade. Contudo, sentia o conhecia muito bem. E alívio e felicidade invadiam-me. Arregaçava mais uma vez o vestido farfalhudo, subia para a mota a sorrir, e ele arrancava furiosamente. E, depois, acordava. Os sonhos, estranhos e difusos, parecem-se muitas vezes com o enredo de um romance corriqueiro, mas que entretém muitíssimo. Nem sempre tudo nos parece realista, porque é floreado, como quando contamos algo íntimo aos amigos. E é como nos sonhos, em que vemos o necessário, e não o sórdido, suficiente para acompanhar os acontecimentos. Nos romances, por norma, há uma protagonista, que é sempre de um bonito médio- -alto. Não sendo uma supermodelo, é daquelas mulheres que prende. É inteligente, confiante, maquilha-se e veste-se com bom gosto. E terá a predilecção por alguma marca ou coisa cara, que não pode ter sempre, porque não é milionária. Não passa fome, mas às vezes tem que apertar o cinto. Está rodeada de amigas e amigos fiéis, que são igualmente interessantes, só que nunca ao mesmo nível. E depois, há o co-protagonista romântico, que é lindo de morrer, deixando tudo louco só por existir. E, por seu lado, é podre de rico. E sexy, educado, bem formado. E os seus abdominais perfeitamente definidos contorcem-se de amor sincero, vá-se lá saber porquê, pela miúda mediana, quando podia ter todas as que quisesse. Mas, aparentemente perfeito, tem lá um defeito irreconciliável ou um terrível segredo, com o qual é preciso lidar e sofrer. Talvez os romances sejam inspirados em sonhos, assim como o meu. Para mim, faz sentido. É que não acho que a vida seja assim, como nos livros. E, com pena, também nunca fui a um enlace em que a noiva fugisse.

Sobre a casa

Quando era pequena odiava sair de casa. Não era sair para o quintal, ou sair para ir comer um gelado ao café, ou brincar com os amigos. Não. “Sair” no sentido de “dormir fora de casa”. No início, parecia sempre uma boa ideia. Dormir fora, noutra cama ou até no chão, num local improvisado. Algo diferente, num ambiente diferente. Ah! Que coisa maravilhosa.
Mas depois, chegava a parte de vestir o pijama e arranjar-me para dormir, efectivamente. E aí, meus amigos, caía na dura realidade - não estava na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Pasmem-se, eu já sabia de antemão que era isso que ia acontecer. Mas só naquele momento parecia real. Só ali se concretizava. E descobria, afinal, que tudo o que eu queria era estar em casa. Quando toda a euforia de estar num sítio diferente do habitual e sem os meus mais próximos se esvaía, só queria voltar ao aconchego diário.
Há um clássico familiar, quando eu tinha uns 5 anos. Não sei bem, mas ainda era pequena. E fui passar uns dias a casa dos meus padrinhos. No início, pareceu-me uma óptima ideia. Ia, consequentemente, passar uns dias por lá. A minha mãe arranjou-me a mala. Provavelmente foi assim que aconteceu. Se escolhi alguma coisa, foram os brinquedos. O que me lembro, e que se conta como uma espécie de lenda, é que ainda nem a viagem tinha 5 minutos quando eu, já ensonada, disse “se estivesse em casa, a minha mãe já me tinha feito a cama”. Naquele momento, já não me devia parecer boa ideia ter deixado o meu lar, e assaltavam-me pensamentos em que os meus pais estavam tristes, à janela, a aguardar de forma impaciente o meu regresso. Em que estavam abalados com o facto de não terem a criança para ir deitar. Se calhar, nem era assim que se processava e até era um alívio uns dias de descanso de mim, mas o que é certo é que eram estas as imagens projectadas pelo meu cérebro.
A conclusão é que é bom viver aventuras, ver coisas novas e criar novas memórias, mas poder regressar a casa rapidamente. Hoje conservo esta dificuldade em deixar a casa para ir para outros locais, ainda que saiba que é temporário. Sempre, ou quase sempre, por períodos curtos. Muitas vezes ainda nem parti e já estou a sonhar com o momento do regresso. Quando passa o frenesim de empacotar os pertences, averiguar o que é preciso, ver se nenhuma torneira ficou a correr ou se não deixei o ferro de passar ligado à tomada, ir já não me parece uma ideia tão promissora como parecia antes, durante o planeamento, em que tudo eram expectativas.
O ideal é ir ver coisas novas e voltar logo. Voltar para o aconchego, onde sei onde estão as coisas e onde está tudo o que preciso. Na minha cabeça, este é o ideal. Nem sempre é possível assim, até que finalmente alguém invente o raio do tele-transporte. Como é que ninguém está a investir nisso? Não sei. Se eu fosse cientista ou de uma dessas novas engenharias, era o que queria inventar - o tele-transporte. Se eu tivesse 5 anos, num banco de trás do carro dos meus padrinhos, era o que me parecia bem. Ficar no meu ninho, onde eu conheço e me sinto bem. Onde está tudo o que preciso. Na minha casa. De preferência, na minha casa de quando tinha 5 anos, com a minha família para me aconchegar nos lençóis. 

 

O estranho caso da botija e respectivas comparações

Uma das coisas mais caricatas que

já me aconteceu

foi o furto de uma botija de gás. Isto aconteceu há uma meia dúzia de anos. Levaram-me uma botija de gás, que tinha sido deixada mesmo em frente à minha porta, dentro do primeiro andar de um prédio. Descobri cheguei a casa e não vi a botija que esperava que já lá estivesse. Quando questionei a quem de direito quando chegava a minha encomenda, que já estava paga, disseram-me que tinha sido entregue. Os larápios deixaram-me, na sua vez, um vasilhame vazio. Ladrões conscienciosos, que pelo menos quiseram poupar-me ao transtorno de pagar o extra de quando se compra uma botija sem ter outra igual sem nada para dar em troca.

Já morava sozinha nesta altura. Ou melhor, era a primeira vez que morava totalmente sozinha, porque fora de casa da mãe já tinha estado antes, quando fui estudar fora. E nesse dia senti-me revoltada e perdida. Sem saber bem o que tinha feito merecer aquele assalto e aquela invasão de privacidade, que foi alguém ir ao canto onde eu morava e ter procurado algo de valor que pudesse ali interessar, naquele T0. Por norma, nesta entreajuda entre seres humanos, eu só tinha que me preocupar em deixar o dinheiro do gás no café ali ao lado. E depois o senhor fazia o favor de me carregar a botija até mesmo à porta, num prédio que não tinha elevador. E a senhora do café ali pegado dava-lhe o dinheiro e ficava-me com o recibo de pagamento. Foi assim que se conseguiu averiguar que tinha sido roubada.

Consta-se que foi um casal esquisito, que morava do outro lado do corredor, que discutia muito. Nunca vi nem um nem outro, apesar de os ouvir. Nas discussões, e também quando faziam as pazes. Se calhar eles também nunca me viram, e, a terem sido eles, nunca tiveram que enfrentar o meu ar de desapontamento e de reprovação, por ter sido lesada por vizinhos, estes sem qualquer espírito de solidariedade.

Às vezes acho que é isto que acontece quando magoamos alguém, mas nunca temos que encarar com os lesados. Seguimos a nossa vida, sabendo mais ou menos o que aconteceu. Poderemos ter feito mal ou não. É como fazer um exame e nunca saber a nota final. Com o passar do tempo, deixa de interessar. Já fizemos outras coisas, já conhecemos mais pessoas, já deixámos uma pedra em cima do passado. E não damos margem a reclamações. Como as garantias dos electrodomésticos, que só valem num determinado período. Depois, cada um que se amanhe com as avarias que possa ter.

Ao fim ao cabo, somos obrigados a seguir, e deixa de fazer sentido pensar em acções, em que lesámos ou fomos lesados. Já não há nenhum papel válido para mandar para a marca, fazer reparações, se houver lugar a elas. Ao fim ao e cabo é como tomar a decisão de, em vez de tentar remediar, partir para a compra de um aparelho novo.

Tal como eu fiz com a botija de gás. Sem outra solução, tive que comprar uma nova, se me quis governar. Mas lembro-me muitas vezes deste furto. Se calhar, os culpados também se lembram. Ou talvez não. O que é certo é que todos tivemos que viver com isso. Com mais ou menos consequências.

 

A máquina da felicidade

Nos últimos dias do ano somos sempre invadidos pelo balanço anual dos nossos amigos nas redes sociais. Há sempre algo filosófico a dizer, algo que mudou mesmo muito, algo bonito para mostrar, uma mensagem de esperança e, às vezes, de esconjuro dos últimos doze meses, que por algum motivo cósmico nunca identificado, não correram de feição. Há fotografias bonitas, onde aparece o melhor do ano velho. Reparem como é difícil falar do final do ano e do ano novo sem repetir a palavra “ano”. Por isso, vamos combinar que, destas linhas para a frente, 2019 passa a ser “o velho” e 2020 “o novo”, só por uma questão de praticidade.

Pergunto-me se queremos mesmo saber como foi o velho das outras pessoas, ou o que querem para o novo. Até porque, bem, nunca ninguém iria desejar um péssimo novo e, à partida, não vai ameaçar o novo com cobras e lagartos, e por isso não temos que nos preocupar com o bem-estar alheio, porque estamos todos a pensar no mesmo. Tudo que é novo, nós queremos. Porque novo é melhor do que o velho, que já é usado e já tem efeitos do desgaste.

Ainda assim, há uma coisa que me mete espécie – onde é que estão os desejos reais, do dia-a-dia? Só assistimos a pessoas que querem passar mais tempo com os amigos e a família, que querem viajar, que querem continuar a ir ao ginásio (de preferência, dia 1 de janeiro também), que querem, abstractamente, ser felizes. E isso é, de facto, somente abstracto, porque a felicidade é tanta coisa diferente.

Comecei a ter esta perspectiva daquilo que a felicidade é, ou posso ser, quando comecei a assimilar que com a idade esta concepção também muda. Desta vez, com o velho termina também uma década. E eu mudei de década, em termos de idade, e entrei nos 30. Nasci em 1989, já no final do ano, e por isso estou condenada a mudar assim as décadas ao sabor dos calendários. Claro que também quero todas as coisas bonitas que versam nas redes sociais, mas há outras que também quero e que me trazem felicidade. Felicidade que nunca tinha conhecido. Por exemplo, no final desta década (em que, em jeito de reflexão, marcou a minha passagem da vida de estudante para a classe trabalhadora), concretizei um sonho que vinha a marinar há alguns meses.

Assim, antes do velho acabar, comprei uma máquina de secar roupa. É um aparelho que me tem feito tão feliz como todas as fotografias de felicidade pura e sem poses que tenho visto nas redes sociais. E ainda tem a vantagem de ser uma felicidade com cheirinho e quentinha, apesar de talvez um pouco mais ruidosa do que o que imaginava.

Reparem que consegui, através do nosso combinado, evitar repetir a palavra “ano”, mas não arranjei outra para expressar correctamente “felicidade”. Afinal, tudo se resume a ser feliz, seja como for, até com a compra de uma máquina de secar.

A minha mãe costuma fazer sempre um brinde na Passagem de Ano, que é assim: “De hoje a um ano! Que corra pelo mesmo cano!”. E faço meus estes votos para 2020. Fora o Velho, venha o Novo. Estaremos todos preparados, à espera, carregadinhos de sonhos e de vontade de sermos felizes.

 

As nossas lembranças

A minha primeira memória nítida tem 25 anos. A minha mãe a olhar para mim, eu com quatro anos, acabada de chegar do cabeleireiro com o cabelo, na altura pêlo de rato meio loiro, cortado à tigela. Ela à porta de casa, num misto de expressão choque-normal, perguntou: “O que é que te fizeram, filha?”. E eu, que até então estava radiante a olhar-me pelo espelho do retrovisor do nosso carro branco (na altura não fazia mal não ter cadeirinhas e ir no lugar do pendura), enquanto ouvia meu pai, que me tinha levado a cortar o cabelo, a dizer que estava muito bem, chorei. “Estou feia, mãe?”. E toda a minha alegria se transformou num pranto, suponho que para deleite da família, que me deve ter explicado, tal como se explica uma criança de quatro anos, que não faz mal porque o cabelo volta a crescer. Tenho fotografias com o famoso corte de cabelo, em que apareço a sorrir, bastante feliz. Curiosamente, não me lembro do dia desse retrato ao pé das roseiras, mas lembro-me do dia em que cortei o cabelo. Até de estar sentada na cadeira, com aquela toalha enorme à minha volta, e de ver o meu pai pelo espelho, a dizer que podia cortar “mais um bocadinho”. Hoje, 25 anos mais tarde e vários traumas com cabelos curtos depois, uso o cabelo por cima do ombro, e gosto. Não é à tigela, mas é bastante curto. Deduzo que seja então verdade que o tempo é relativo e que cura tudo.

O tempo apaga também algumas pessoas, que em algum momento fizeram parte das nossas vidas. Devemos apagar algumas por falta de espaço de armazenamento, porque não nos fazem grande falta ou não nos foram particularmente próximas. De outras, simplesmente nos fomos afastando, muitas vezes sem uma zanga pelo meio ou sequer razão óbvia. E vamos esquecendo detalhes que costumávamos saber de cor, porque ficam fora de mão do uso diário das nossas faculdades. Vão ficando cada vez mais distantes, cobertas de nevoeiro. Num sábado à noite fazia-se uma espécie de reflexão sobre pessoas assim, que tinham feito parte do crescimento, mas que algumas já não figuravam. Alguns deixaram mesmo de falar, apesar de continuarem a cruzar, às vezes, as mesmas ruas. Não se sente mágoa ou ressentimento. Cada um ficou no lugar onde não fazia mal ficar. Todos podemos fazer este exercício, dos colegas da primária, dos amores do secundário, dos amigos em comum, gandas malucos, que não fazemos ideia de onde andarão, apesar de termos passado momentos que achávamos que nos iam unir pela vida fora. De outros, nem do nome nos lembramos bem, e temos que nos recorrer dos amigos que ficam, e que têm mais espaço de armazenamento. Podemos até sentir uma certa nostalgia, uma vontade súbita de retomar contacto. Penso que raramente, ou nunca, o faremos. E muitas vezes por um motivo tão simples e racional como saber que não vamos encontrar essas pessoas no mesmo comprimento de onda, nem nós estamos onde todos estávamos quando fazíamos parte do mesmo círculo.

É que as relações, todas elas, parecem ser circunstanciais. Disseram-me isto, mais do que uma vez. Não quis crer. Até que comecei a ser mais realista. Ainda assim, essas circunstâncias, às vezes, também dependem de nós.

Almoços de domingo

Ao domingo custa-me, genuinamente, trabalhar. Ter que sair, estar longe de casa. Já tive esta conversa muitas vezes. Uma delas, precisamente, antes das nove da manhã de um domingo, enquanto abastecia o carro e partilhava a dor de estar a trabalhar com outra pessoa que estava na mesma posição. É difícil porque, para a maioria, é dia de estar com a família, de almoçarem todos juntos. E eu não gosto de falhar o almoço de domingo.

Desde miúda que estou habituada a que o almoço de domingo seja reforçado, especial, com direito a sobremesa e a bebidas com gás. É assim, desde sempre, onde muitas vezes podia escolher a ementa, ou ouvir as sábias sugestões dessa chef famosa que muitos poderão conhecer como Maria Fernanda, mas a quem eu chamo simplesmente mamã.

Recentemente, num domingo destes de trabalho, fui surpreendida com uma espécie de piquenique ao ar livre, oferecido por pessoas muito simpáticas, a duas horas e tal de viagem casa. Foi muito agradável, mas não se comparou às favas com chouriço que pedi no domingo seguinte, sinónimo de folga. Ora, neste último domingo ao serviço, mas com tempo para o almoço de domingo, ainda que fora do meu restaurante particular preferido, resolvi meter mãos à obra, –que é como quem diz, à cozinha – com direito a escolher o menu, que seria picanha e os seus devidos acompanhamentos. Mas, infortunadamente, não acautelei o almoço de domingo a tempo, o que percebi que é uma coisa que toda a gente faz, à minha excepção. Percorri todos os sítios disponíveis, e não encontrei a chicha que queria. “Tivemos hoje de manhã, mas já acabou. Amanhã é ferido. Só voltamos a ter terça-feira”. Como pude ser tão ingénua? É claro que mais pessoas acautelam um almoço de domingo especial, para a família. Terei, acaso, pensado quer era a única? Falhei na elaboração de um verdadeiro almoço de domingo, no caso para duas pessoas e dois gatos. Insatisfeitos, e cada vez com mais fome, acabámos por ter picanha para o almoço de domingo, com direito a salada temperada com vinagre caseiro de vinho, queijo e doce e abóbora e uma deliciosa tarte de caramelo e limão para o grande final. Tudo num restaurante, é certo, mas foi um almoço de domingo como deve ser. Os gatos comeram frango cozido. Nada mau.

É ao pensar nestes pequenos hábitos que me apercebo o quão grandes são. Sim, o ser humano é um bichinho de hábitos. E, entre eles, lá está o almoço de domingo, ao qual é doloroso falhar. Curiosamente, só percebemos a importância destes pequenos rituais quando, por algum motivo, não estamos lá. Às vezes algo que parece tão banal é, afinal, algo essencial, ainda que não o soubéssemos. Acontece o mesmo pessoas ou lugares. Damo-nos ao luxo de acharmos que não tem importância, desvalorizamos. Puxamos simplesmente para a frente, entre o comodismo e a mera resignação. Até que um dia, não estamos, alguém deixou de estar, ficou para uma próxima, que pode muito bem nunca acontecer. Sim, enganem-se a vocês mesmo, e digam que não tem importância. Depois, arrependam-se o resto da vida por essas vezes.

Estou quase lá

Está na altura de começar a enfrentar os factos – dentro de alguns meses vou fazer 30 anos. Vou deixar os tenros vintes, para entrar numa nova década. Pode não parecer nada significativo, e se calhar não é.

Mas a verdade é que no espaço de mais ou menos 15 anos, vejo-me a anos luz do meu “eu” mais jovem. Com uns 15 anos, as pessoas de 30 pareciam extremamente fixes. Era onde estava a malta com mais pinta, super decidida e super independente, com empregos, obrigações, e horas livres só ao fim-de-semana. Eram adultos, e nós não. Agora, os de 30 estão na minha faixa etária, e, pergunto-me, se os adolescentes encaram os trintões como adultos, como antes, ou em que patamar estamos.

Já é mais difícil fazer directas. Aliás, não me consigo lembrar da última vez que fiz uma. Ademais, não vejo nenhuma necessidade de tamanha loucura. Tornei-me nesta pessoa que precisa, de verdade, de dormir. Mas custa menos levantar com poucas horas de sono. Acho que é o peso da responsabilidade a falar, na maioria das vezes, porque ninguém se levanta cedo sem uma boa razão. Pelo menos, eu não. Ou então há um rácio entre a idade e as horas de cabeça à almofada que vai diminuindo, como quando as crianças deixam de fazer sestas. Contudo, gosto de sestas.

Sinto que já não posso fazer coisas descabidas o tempo todo. Temos que pensar em agir como um adulto, apesar de não saber há quanto tempo entrei nesse mundo, e por isso às tantas já falhei este ponto. O que é certo é que cada vez mais pessoas me tratam por “senhora” e menos por “menina”.

Ainda é legítimo usar camisolas estampadas com frases engraçadas? Não sei, mas gostava de saber, porque gosto de frases engraçadas.

Começo a dar também importância a coisas que nunca pensei que fossem tão, passo a redundância, e à falta de melhor palavra, importantes. Como panos de cozinha – tenho gasto dinheiro que antes consideraria desperdiçado neste tipo de objectos. E sabem que mais? Foi bem empregue. Há ainda o fascinante mundo dos utensílios de cozinha. A que cheira o raio do detergente para a roupa? Na mesma divisão, as indispensáveis toalhitas que impedem a transferência de cor na lavagem na máquina. Dispensadores de sabonete líquido a condizer com o suporte da escova de dentes. Enfim, toda uma nova dimensão que se está a abrir.

Passar a roupa a ferro também começa a parecer algo necessário e não um detalhe. E o factor “roupa que não é preciso passar” começa a ter tido em conta na hora de comprar.

Sinto que as pessoas olham para os de trinta como alguém com quem já é permitido partilhar aflições da vida, como, claro está, dramas domésticos que envolvem toalhitas das cores. E outros dramas, que agora há maturidade para entender e comentar, como gente grande, de igual para igual.

A sociedade tem determinado que se é jovem até mais tarde e que se começa a ser velho mais tarde. Isso é bom, por um lado, mas por outro complica tudo. Na minha idade, os meus pais (e certamente os vossos, se estão na mesma idade) estavam casados há anos e com filhos. Poucos de nós fazem disso uma prioridade aos 30, e nascem menos bebés. Até porque somos “bebés” até mais tarde. Então, é como haja bebés para cuidar.

Eu não me sinto um bebé. Nem velha. Sinto-me com quase 30 anos. Seja lá o que isso for.

A estranheza das coisas

Às vezes o que é simples causa uma estranheza medonha. Outras vezes arranja-se maneira de dar um nó ao cérebros dos incautos simplistas com palavreado caro, e, quase sempre, desnecessário.
Por exemplo, há muito tempo que não me chamo Tânia Rei. Chamo-me Tânia Reis, por mais que eu teime (doida!) que o meu apelido só tem três letrinhas, sem ‘s’ no fim. Até já tive esta conversa caricata ao telefone: ‘Estô sim? Bom dia! Estô a falar com a sô dona Tânia Reis?’. Do outro lado, respondo, enfadada (porque era uma daquelas linhas onde têm o nosso nome à frente, porque somos clientes daquela marca, e aí começamos a ponderar porquê pagar um serviço que nem consegue ter alguém que saiba ler o meu nome no contrato): ‘Bom dia. Sim, mas é só Rei, sem ‘s’. ‘Do outro lado, novamente, nada convencido: ‘Bom dia sô dona Tânia Reisss. O meu nome é fulano de tal e estou a ligar...’. Bom, claramente ele pensou ‘Aqui está uma atrasada mental que nem o nome dela sabe, coitada. É algo que me chateia, ter que explicar como me chamo, quando há por aí nomes bem mais complexos, que me esforço por dizer e escrever bem. Mas o raio do ‘s’... Lá está sempre a perseguir-me.
Ora, adiante. No mundo do descomplica e complica, dei por mim a pensar que tinha que ir tirar um curso de culinária, mas antes disso um curso de ‘o que raio diz nesta receita?’. Dei por mim a olhar para aqueles livrinhos de sugestões para a cozinha, mas sem entender o que era suposto cozinhar. Um açúcar mascavado, umas folhas de gelatina (isto é complexo, acreditem, porque algumas marcas não dizem como devemos desfazer aquilo corretamente), ou umas essências em vagem, ainda entendo. Agora, o que vem a ser couve kale, tofu firme ou biovivos, que se diz que podem ser q.b? Na horta da minha mãe sempre houve couves, mas nenhuma dessa raça. Não sei ver se é tofu, quanto mais se está firme. Continuo sem saber o que vêm a ser biovivos (até porque dá a sensação que estamos a comer algo que não devemos, não é? Está demasiado vivo). E também não sei o que são canónigos, molhos que metem ‘k’ e ‘y’ no nome ou sementes que não imagino o que poderia sair dali se fossem plantadas. Conclusão, tenho cada vez mais dificuldade em fazer receitas novas baseadas numa ia ao supermercado, porque cada vez está mais complexo saber o que necessário comprar. Sinto-me um alquimista à volta de um caldeirão, uma poderosa feiticeira que vai correr os inimigos a biovivos até ao outro lado da fronteira.
Tenho a ideia de que é possível comer bem e saudável sem ter que gastar o abecedário todo ou falar alemão misturado com grego e latim. Não sei, para mim isto são tudo mariquices modernas às quais não cedo, mais não seja porque não consigo passar da fase das instruções.
Enfim, aqui estão duas situações que me deixam enervadíssima. Acabei de escrever com os nervos esfrangalhados, só de pensar que, possivelmente ainda hoje, alguém me vai acrescentar o ‘s’ no nome ou que vou perder tempo a pesquisar comida estranha.
Por isso, aqui fica o meu sábio conselho: Não compliquem o que é simples, mesmo que pareça demasiado simples. Não empolem o complicado. Às vezes o truque está só em trocar o ardiloso por uma solução terra a terra (é o que faço na cozinha, e resulta).