Tânia Rei

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Sobre a casa

Quando era pequena odiava sair de casa. Não era sair para o quintal, ou sair para ir comer um gelado ao café, ou brincar com os amigos. Não. “Sair” no sentido de “dormir fora de casa”. No início, parecia sempre uma boa ideia. Dormir fora, noutra cama ou até no chão, num local improvisado. Algo diferente, num ambiente diferente. Ah! Que coisa maravilhosa.
Mas depois, chegava a parte de vestir o pijama e arranjar-me para dormir, efectivamente. E aí, meus amigos, caía na dura realidade - não estava na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Pasmem-se, eu já sabia de antemão que era isso que ia acontecer. Mas só naquele momento parecia real. Só ali se concretizava. E descobria, afinal, que tudo o que eu queria era estar em casa. Quando toda a euforia de estar num sítio diferente do habitual e sem os meus mais próximos se esvaía, só queria voltar ao aconchego diário.
Há um clássico familiar, quando eu tinha uns 5 anos. Não sei bem, mas ainda era pequena. E fui passar uns dias a casa dos meus padrinhos. No início, pareceu-me uma óptima ideia. Ia, consequentemente, passar uns dias por lá. A minha mãe arranjou-me a mala. Provavelmente foi assim que aconteceu. Se escolhi alguma coisa, foram os brinquedos. O que me lembro, e que se conta como uma espécie de lenda, é que ainda nem a viagem tinha 5 minutos quando eu, já ensonada, disse “se estivesse em casa, a minha mãe já me tinha feito a cama”. Naquele momento, já não me devia parecer boa ideia ter deixado o meu lar, e assaltavam-me pensamentos em que os meus pais estavam tristes, à janela, a aguardar de forma impaciente o meu regresso. Em que estavam abalados com o facto de não terem a criança para ir deitar. Se calhar, nem era assim que se processava e até era um alívio uns dias de descanso de mim, mas o que é certo é que eram estas as imagens projectadas pelo meu cérebro.
A conclusão é que é bom viver aventuras, ver coisas novas e criar novas memórias, mas poder regressar a casa rapidamente. Hoje conservo esta dificuldade em deixar a casa para ir para outros locais, ainda que saiba que é temporário. Sempre, ou quase sempre, por períodos curtos. Muitas vezes ainda nem parti e já estou a sonhar com o momento do regresso. Quando passa o frenesim de empacotar os pertences, averiguar o que é preciso, ver se nenhuma torneira ficou a correr ou se não deixei o ferro de passar ligado à tomada, ir já não me parece uma ideia tão promissora como parecia antes, durante o planeamento, em que tudo eram expectativas.
O ideal é ir ver coisas novas e voltar logo. Voltar para o aconchego, onde sei onde estão as coisas e onde está tudo o que preciso. Na minha cabeça, este é o ideal. Nem sempre é possível assim, até que finalmente alguém invente o raio do tele-transporte. Como é que ninguém está a investir nisso? Não sei. Se eu fosse cientista ou de uma dessas novas engenharias, era o que queria inventar - o tele-transporte. Se eu tivesse 5 anos, num banco de trás do carro dos meus padrinhos, era o que me parecia bem. Ficar no meu ninho, onde eu conheço e me sinto bem. Onde está tudo o que preciso. Na minha casa. De preferência, na minha casa de quando tinha 5 anos, com a minha família para me aconchegar nos lençóis. 

 

O estranho caso da botija e respectivas comparações

Uma das coisas mais caricatas que

já me aconteceu

foi o furto de uma botija de gás. Isto aconteceu há uma meia dúzia de anos. Levaram-me uma botija de gás, que tinha sido deixada mesmo em frente à minha porta, dentro do primeiro andar de um prédio. Descobri cheguei a casa e não vi a botija que esperava que já lá estivesse. Quando questionei a quem de direito quando chegava a minha encomenda, que já estava paga, disseram-me que tinha sido entregue. Os larápios deixaram-me, na sua vez, um vasilhame vazio. Ladrões conscienciosos, que pelo menos quiseram poupar-me ao transtorno de pagar o extra de quando se compra uma botija sem ter outra igual sem nada para dar em troca.

Já morava sozinha nesta altura. Ou melhor, era a primeira vez que morava totalmente sozinha, porque fora de casa da mãe já tinha estado antes, quando fui estudar fora. E nesse dia senti-me revoltada e perdida. Sem saber bem o que tinha feito merecer aquele assalto e aquela invasão de privacidade, que foi alguém ir ao canto onde eu morava e ter procurado algo de valor que pudesse ali interessar, naquele T0. Por norma, nesta entreajuda entre seres humanos, eu só tinha que me preocupar em deixar o dinheiro do gás no café ali ao lado. E depois o senhor fazia o favor de me carregar a botija até mesmo à porta, num prédio que não tinha elevador. E a senhora do café ali pegado dava-lhe o dinheiro e ficava-me com o recibo de pagamento. Foi assim que se conseguiu averiguar que tinha sido roubada.

Consta-se que foi um casal esquisito, que morava do outro lado do corredor, que discutia muito. Nunca vi nem um nem outro, apesar de os ouvir. Nas discussões, e também quando faziam as pazes. Se calhar eles também nunca me viram, e, a terem sido eles, nunca tiveram que enfrentar o meu ar de desapontamento e de reprovação, por ter sido lesada por vizinhos, estes sem qualquer espírito de solidariedade.

Às vezes acho que é isto que acontece quando magoamos alguém, mas nunca temos que encarar com os lesados. Seguimos a nossa vida, sabendo mais ou menos o que aconteceu. Poderemos ter feito mal ou não. É como fazer um exame e nunca saber a nota final. Com o passar do tempo, deixa de interessar. Já fizemos outras coisas, já conhecemos mais pessoas, já deixámos uma pedra em cima do passado. E não damos margem a reclamações. Como as garantias dos electrodomésticos, que só valem num determinado período. Depois, cada um que se amanhe com as avarias que possa ter.

Ao fim ao cabo, somos obrigados a seguir, e deixa de fazer sentido pensar em acções, em que lesámos ou fomos lesados. Já não há nenhum papel válido para mandar para a marca, fazer reparações, se houver lugar a elas. Ao fim ao e cabo é como tomar a decisão de, em vez de tentar remediar, partir para a compra de um aparelho novo.

Tal como eu fiz com a botija de gás. Sem outra solução, tive que comprar uma nova, se me quis governar. Mas lembro-me muitas vezes deste furto. Se calhar, os culpados também se lembram. Ou talvez não. O que é certo é que todos tivemos que viver com isso. Com mais ou menos consequências.

 

A máquina da felicidade

Nos últimos dias do ano somos sempre invadidos pelo balanço anual dos nossos amigos nas redes sociais. Há sempre algo filosófico a dizer, algo que mudou mesmo muito, algo bonito para mostrar, uma mensagem de esperança e, às vezes, de esconjuro dos últimos doze meses, que por algum motivo cósmico nunca identificado, não correram de feição. Há fotografias bonitas, onde aparece o melhor do ano velho. Reparem como é difícil falar do final do ano e do ano novo sem repetir a palavra “ano”. Por isso, vamos combinar que, destas linhas para a frente, 2019 passa a ser “o velho” e 2020 “o novo”, só por uma questão de praticidade.

Pergunto-me se queremos mesmo saber como foi o velho das outras pessoas, ou o que querem para o novo. Até porque, bem, nunca ninguém iria desejar um péssimo novo e, à partida, não vai ameaçar o novo com cobras e lagartos, e por isso não temos que nos preocupar com o bem-estar alheio, porque estamos todos a pensar no mesmo. Tudo que é novo, nós queremos. Porque novo é melhor do que o velho, que já é usado e já tem efeitos do desgaste.

Ainda assim, há uma coisa que me mete espécie – onde é que estão os desejos reais, do dia-a-dia? Só assistimos a pessoas que querem passar mais tempo com os amigos e a família, que querem viajar, que querem continuar a ir ao ginásio (de preferência, dia 1 de janeiro também), que querem, abstractamente, ser felizes. E isso é, de facto, somente abstracto, porque a felicidade é tanta coisa diferente.

Comecei a ter esta perspectiva daquilo que a felicidade é, ou posso ser, quando comecei a assimilar que com a idade esta concepção também muda. Desta vez, com o velho termina também uma década. E eu mudei de década, em termos de idade, e entrei nos 30. Nasci em 1989, já no final do ano, e por isso estou condenada a mudar assim as décadas ao sabor dos calendários. Claro que também quero todas as coisas bonitas que versam nas redes sociais, mas há outras que também quero e que me trazem felicidade. Felicidade que nunca tinha conhecido. Por exemplo, no final desta década (em que, em jeito de reflexão, marcou a minha passagem da vida de estudante para a classe trabalhadora), concretizei um sonho que vinha a marinar há alguns meses.

Assim, antes do velho acabar, comprei uma máquina de secar roupa. É um aparelho que me tem feito tão feliz como todas as fotografias de felicidade pura e sem poses que tenho visto nas redes sociais. E ainda tem a vantagem de ser uma felicidade com cheirinho e quentinha, apesar de talvez um pouco mais ruidosa do que o que imaginava.

Reparem que consegui, através do nosso combinado, evitar repetir a palavra “ano”, mas não arranjei outra para expressar correctamente “felicidade”. Afinal, tudo se resume a ser feliz, seja como for, até com a compra de uma máquina de secar.

A minha mãe costuma fazer sempre um brinde na Passagem de Ano, que é assim: “De hoje a um ano! Que corra pelo mesmo cano!”. E faço meus estes votos para 2020. Fora o Velho, venha o Novo. Estaremos todos preparados, à espera, carregadinhos de sonhos e de vontade de sermos felizes.

 

As nossas lembranças

A minha primeira memória nítida tem 25 anos. A minha mãe a olhar para mim, eu com quatro anos, acabada de chegar do cabeleireiro com o cabelo, na altura pêlo de rato meio loiro, cortado à tigela. Ela à porta de casa, num misto de expressão choque-normal, perguntou: “O que é que te fizeram, filha?”. E eu, que até então estava radiante a olhar-me pelo espelho do retrovisor do nosso carro branco (na altura não fazia mal não ter cadeirinhas e ir no lugar do pendura), enquanto ouvia meu pai, que me tinha levado a cortar o cabelo, a dizer que estava muito bem, chorei. “Estou feia, mãe?”. E toda a minha alegria se transformou num pranto, suponho que para deleite da família, que me deve ter explicado, tal como se explica uma criança de quatro anos, que não faz mal porque o cabelo volta a crescer. Tenho fotografias com o famoso corte de cabelo, em que apareço a sorrir, bastante feliz. Curiosamente, não me lembro do dia desse retrato ao pé das roseiras, mas lembro-me do dia em que cortei o cabelo. Até de estar sentada na cadeira, com aquela toalha enorme à minha volta, e de ver o meu pai pelo espelho, a dizer que podia cortar “mais um bocadinho”. Hoje, 25 anos mais tarde e vários traumas com cabelos curtos depois, uso o cabelo por cima do ombro, e gosto. Não é à tigela, mas é bastante curto. Deduzo que seja então verdade que o tempo é relativo e que cura tudo.

O tempo apaga também algumas pessoas, que em algum momento fizeram parte das nossas vidas. Devemos apagar algumas por falta de espaço de armazenamento, porque não nos fazem grande falta ou não nos foram particularmente próximas. De outras, simplesmente nos fomos afastando, muitas vezes sem uma zanga pelo meio ou sequer razão óbvia. E vamos esquecendo detalhes que costumávamos saber de cor, porque ficam fora de mão do uso diário das nossas faculdades. Vão ficando cada vez mais distantes, cobertas de nevoeiro. Num sábado à noite fazia-se uma espécie de reflexão sobre pessoas assim, que tinham feito parte do crescimento, mas que algumas já não figuravam. Alguns deixaram mesmo de falar, apesar de continuarem a cruzar, às vezes, as mesmas ruas. Não se sente mágoa ou ressentimento. Cada um ficou no lugar onde não fazia mal ficar. Todos podemos fazer este exercício, dos colegas da primária, dos amores do secundário, dos amigos em comum, gandas malucos, que não fazemos ideia de onde andarão, apesar de termos passado momentos que achávamos que nos iam unir pela vida fora. De outros, nem do nome nos lembramos bem, e temos que nos recorrer dos amigos que ficam, e que têm mais espaço de armazenamento. Podemos até sentir uma certa nostalgia, uma vontade súbita de retomar contacto. Penso que raramente, ou nunca, o faremos. E muitas vezes por um motivo tão simples e racional como saber que não vamos encontrar essas pessoas no mesmo comprimento de onda, nem nós estamos onde todos estávamos quando fazíamos parte do mesmo círculo.

É que as relações, todas elas, parecem ser circunstanciais. Disseram-me isto, mais do que uma vez. Não quis crer. Até que comecei a ser mais realista. Ainda assim, essas circunstâncias, às vezes, também dependem de nós.

Almoços de domingo

Ao domingo custa-me, genuinamente, trabalhar. Ter que sair, estar longe de casa. Já tive esta conversa muitas vezes. Uma delas, precisamente, antes das nove da manhã de um domingo, enquanto abastecia o carro e partilhava a dor de estar a trabalhar com outra pessoa que estava na mesma posição. É difícil porque, para a maioria, é dia de estar com a família, de almoçarem todos juntos. E eu não gosto de falhar o almoço de domingo.

Desde miúda que estou habituada a que o almoço de domingo seja reforçado, especial, com direito a sobremesa e a bebidas com gás. É assim, desde sempre, onde muitas vezes podia escolher a ementa, ou ouvir as sábias sugestões dessa chef famosa que muitos poderão conhecer como Maria Fernanda, mas a quem eu chamo simplesmente mamã.

Recentemente, num domingo destes de trabalho, fui surpreendida com uma espécie de piquenique ao ar livre, oferecido por pessoas muito simpáticas, a duas horas e tal de viagem casa. Foi muito agradável, mas não se comparou às favas com chouriço que pedi no domingo seguinte, sinónimo de folga. Ora, neste último domingo ao serviço, mas com tempo para o almoço de domingo, ainda que fora do meu restaurante particular preferido, resolvi meter mãos à obra, –que é como quem diz, à cozinha – com direito a escolher o menu, que seria picanha e os seus devidos acompanhamentos. Mas, infortunadamente, não acautelei o almoço de domingo a tempo, o que percebi que é uma coisa que toda a gente faz, à minha excepção. Percorri todos os sítios disponíveis, e não encontrei a chicha que queria. “Tivemos hoje de manhã, mas já acabou. Amanhã é ferido. Só voltamos a ter terça-feira”. Como pude ser tão ingénua? É claro que mais pessoas acautelam um almoço de domingo especial, para a família. Terei, acaso, pensado quer era a única? Falhei na elaboração de um verdadeiro almoço de domingo, no caso para duas pessoas e dois gatos. Insatisfeitos, e cada vez com mais fome, acabámos por ter picanha para o almoço de domingo, com direito a salada temperada com vinagre caseiro de vinho, queijo e doce e abóbora e uma deliciosa tarte de caramelo e limão para o grande final. Tudo num restaurante, é certo, mas foi um almoço de domingo como deve ser. Os gatos comeram frango cozido. Nada mau.

É ao pensar nestes pequenos hábitos que me apercebo o quão grandes são. Sim, o ser humano é um bichinho de hábitos. E, entre eles, lá está o almoço de domingo, ao qual é doloroso falhar. Curiosamente, só percebemos a importância destes pequenos rituais quando, por algum motivo, não estamos lá. Às vezes algo que parece tão banal é, afinal, algo essencial, ainda que não o soubéssemos. Acontece o mesmo pessoas ou lugares. Damo-nos ao luxo de acharmos que não tem importância, desvalorizamos. Puxamos simplesmente para a frente, entre o comodismo e a mera resignação. Até que um dia, não estamos, alguém deixou de estar, ficou para uma próxima, que pode muito bem nunca acontecer. Sim, enganem-se a vocês mesmo, e digam que não tem importância. Depois, arrependam-se o resto da vida por essas vezes.

Estou quase lá

Está na altura de começar a enfrentar os factos – dentro de alguns meses vou fazer 30 anos. Vou deixar os tenros vintes, para entrar numa nova década. Pode não parecer nada significativo, e se calhar não é.

Mas a verdade é que no espaço de mais ou menos 15 anos, vejo-me a anos luz do meu “eu” mais jovem. Com uns 15 anos, as pessoas de 30 pareciam extremamente fixes. Era onde estava a malta com mais pinta, super decidida e super independente, com empregos, obrigações, e horas livres só ao fim-de-semana. Eram adultos, e nós não. Agora, os de 30 estão na minha faixa etária, e, pergunto-me, se os adolescentes encaram os trintões como adultos, como antes, ou em que patamar estamos.

Já é mais difícil fazer directas. Aliás, não me consigo lembrar da última vez que fiz uma. Ademais, não vejo nenhuma necessidade de tamanha loucura. Tornei-me nesta pessoa que precisa, de verdade, de dormir. Mas custa menos levantar com poucas horas de sono. Acho que é o peso da responsabilidade a falar, na maioria das vezes, porque ninguém se levanta cedo sem uma boa razão. Pelo menos, eu não. Ou então há um rácio entre a idade e as horas de cabeça à almofada que vai diminuindo, como quando as crianças deixam de fazer sestas. Contudo, gosto de sestas.

Sinto que já não posso fazer coisas descabidas o tempo todo. Temos que pensar em agir como um adulto, apesar de não saber há quanto tempo entrei nesse mundo, e por isso às tantas já falhei este ponto. O que é certo é que cada vez mais pessoas me tratam por “senhora” e menos por “menina”.

Ainda é legítimo usar camisolas estampadas com frases engraçadas? Não sei, mas gostava de saber, porque gosto de frases engraçadas.

Começo a dar também importância a coisas que nunca pensei que fossem tão, passo a redundância, e à falta de melhor palavra, importantes. Como panos de cozinha – tenho gasto dinheiro que antes consideraria desperdiçado neste tipo de objectos. E sabem que mais? Foi bem empregue. Há ainda o fascinante mundo dos utensílios de cozinha. A que cheira o raio do detergente para a roupa? Na mesma divisão, as indispensáveis toalhitas que impedem a transferência de cor na lavagem na máquina. Dispensadores de sabonete líquido a condizer com o suporte da escova de dentes. Enfim, toda uma nova dimensão que se está a abrir.

Passar a roupa a ferro também começa a parecer algo necessário e não um detalhe. E o factor “roupa que não é preciso passar” começa a ter tido em conta na hora de comprar.

Sinto que as pessoas olham para os de trinta como alguém com quem já é permitido partilhar aflições da vida, como, claro está, dramas domésticos que envolvem toalhitas das cores. E outros dramas, que agora há maturidade para entender e comentar, como gente grande, de igual para igual.

A sociedade tem determinado que se é jovem até mais tarde e que se começa a ser velho mais tarde. Isso é bom, por um lado, mas por outro complica tudo. Na minha idade, os meus pais (e certamente os vossos, se estão na mesma idade) estavam casados há anos e com filhos. Poucos de nós fazem disso uma prioridade aos 30, e nascem menos bebés. Até porque somos “bebés” até mais tarde. Então, é como haja bebés para cuidar.

Eu não me sinto um bebé. Nem velha. Sinto-me com quase 30 anos. Seja lá o que isso for.

A estranheza das coisas

Às vezes o que é simples causa uma estranheza medonha. Outras vezes arranja-se maneira de dar um nó ao cérebros dos incautos simplistas com palavreado caro, e, quase sempre, desnecessário.
Por exemplo, há muito tempo que não me chamo Tânia Rei. Chamo-me Tânia Reis, por mais que eu teime (doida!) que o meu apelido só tem três letrinhas, sem ‘s’ no fim. Até já tive esta conversa caricata ao telefone: ‘Estô sim? Bom dia! Estô a falar com a sô dona Tânia Reis?’. Do outro lado, respondo, enfadada (porque era uma daquelas linhas onde têm o nosso nome à frente, porque somos clientes daquela marca, e aí começamos a ponderar porquê pagar um serviço que nem consegue ter alguém que saiba ler o meu nome no contrato): ‘Bom dia. Sim, mas é só Rei, sem ‘s’. ‘Do outro lado, novamente, nada convencido: ‘Bom dia sô dona Tânia Reisss. O meu nome é fulano de tal e estou a ligar...’. Bom, claramente ele pensou ‘Aqui está uma atrasada mental que nem o nome dela sabe, coitada. É algo que me chateia, ter que explicar como me chamo, quando há por aí nomes bem mais complexos, que me esforço por dizer e escrever bem. Mas o raio do ‘s’... Lá está sempre a perseguir-me.
Ora, adiante. No mundo do descomplica e complica, dei por mim a pensar que tinha que ir tirar um curso de culinária, mas antes disso um curso de ‘o que raio diz nesta receita?’. Dei por mim a olhar para aqueles livrinhos de sugestões para a cozinha, mas sem entender o que era suposto cozinhar. Um açúcar mascavado, umas folhas de gelatina (isto é complexo, acreditem, porque algumas marcas não dizem como devemos desfazer aquilo corretamente), ou umas essências em vagem, ainda entendo. Agora, o que vem a ser couve kale, tofu firme ou biovivos, que se diz que podem ser q.b? Na horta da minha mãe sempre houve couves, mas nenhuma dessa raça. Não sei ver se é tofu, quanto mais se está firme. Continuo sem saber o que vêm a ser biovivos (até porque dá a sensação que estamos a comer algo que não devemos, não é? Está demasiado vivo). E também não sei o que são canónigos, molhos que metem ‘k’ e ‘y’ no nome ou sementes que não imagino o que poderia sair dali se fossem plantadas. Conclusão, tenho cada vez mais dificuldade em fazer receitas novas baseadas numa ia ao supermercado, porque cada vez está mais complexo saber o que necessário comprar. Sinto-me um alquimista à volta de um caldeirão, uma poderosa feiticeira que vai correr os inimigos a biovivos até ao outro lado da fronteira.
Tenho a ideia de que é possível comer bem e saudável sem ter que gastar o abecedário todo ou falar alemão misturado com grego e latim. Não sei, para mim isto são tudo mariquices modernas às quais não cedo, mais não seja porque não consigo passar da fase das instruções.
Enfim, aqui estão duas situações que me deixam enervadíssima. Acabei de escrever com os nervos esfrangalhados, só de pensar que, possivelmente ainda hoje, alguém me vai acrescentar o ‘s’ no nome ou que vou perder tempo a pesquisar comida estranha.
Por isso, aqui fica o meu sábio conselho: Não compliquem o que é simples, mesmo que pareça demasiado simples. Não empolem o complicado. Às vezes o truque está só em trocar o ardiloso por uma solução terra a terra (é o que faço na cozinha, e resulta).

 

Olá. Tudo bem?

Olá. Tudo bem?

Já há muitos meses que não estava convosco. Meses. É muito tempo. Por exemplo, este ano ainda não tínhamos estado juntos. Há amizades que acabam por isso mesmo, porque há meses que não sabemos nada desses incautos amigos que deixam de dar notícias. E a nossa vidinha continua, sem que tenhamos muito tempo para perseguir o desaparecido. Agora com as redes sociais, sabemos que o tal que não diz nada continua a gozar de boa saúde, o que nos permite ignorar o facto de não nos falar com outra naturalidade e menos preocupação. Simplesmente, deduzimos (e bem, na maior parte das vezes) que deixamos de lhe nutrir interesse.

No meu caso, neste em específico, não foi o que aconteceu. Eu queria estar convosco, fiz alguns esforços, mas não consegui.

Há uns dias, falava do ‘síndrome da folha em branco. Jurei que nunca o tive. Mas, em reflexão, vejo que é mentira. Comecei a escrever crónicas em 2013. Já lá vão alguns anos. Cheguei a acumular várias publicações, online e em papel. E as coisas pareciam fáceis. Tinha sempre assuntos. Era como que se bastasse olhar para uma pedra no chão e visse logo ali brotar um tema super interessante. Agora já não sou assim. Em 2013 era mais nova e tinha mais tempo livre para observar os outros e a vida em geral. Agora acho que tenho menos amigos, o que logo à cabeça reduz as inspirações, porque tenho menos vidas para dissecar.

Há seis anos tinha menos peso e mais paciência. Paciência para pensar também. Agora gosto mais do mastigado, para poupar alguns minutos. Antes também me preocupava menos com um possível impacto das barbaridades que debitava - até porque a finalidade era, e continua a ser, entreter, e não mudar mentalidades.

Reparo que, tal como eu, a maioria anda sem tempo nem paciência. Até queriam falar, mas não têm assunto. E para abrir a boca, ou, neste caso, dar ao dedo no teclado, é preciso ter algo mesmo muito importante para dizer. Ou assim achamos. Se não for de vida ou morte, se não for gigantesco, ficamos calados, que poupamos uns minutos a todos. E esses minutos podem ser usados para algo tão importante como, por exemplo, ver as redes sociais para sabermos daqueles amigos com os quais não falamos há meses, por não termos nada de jeito para lhes dizermos.

Pergunto-me se a vida na internet é tão emocionante como a vida real. Se o que vemos e lemos é mesmo assim. Mesmo quando se partilha que se está num grande dilema, numa luta pelo bem sem precedentes, numa saga para salvar a nossa idoneidade. Se calhar, só queremos que nos passem a mão na cabeça e que nos digam ‘já passou’.

Por norma, só encontramos um chorrilho de comentários a dizer: ‘És grande! vais conseguir!’, ‘força! mantém-te como sempre foste!’, ‘És um exemplo, pá. Orgulho.’. Mas, se calhar, o que fazia falta era um ‘olá, tudo bem? vamos tomar um café’ mais amiúde. ‘Já há muitos meses que não falamos. Vamos viver na vida real mais próximos?’. Se calhar - e só se calhar - o que nos falta é mesmo viver mais tempo junto aos que gostamos e menos tempo no mundo apressado onde achámos que o virtual pode atenuar a falta reiterada da presença física.

Bicho papão e outros vilões

Este fim-de-semana fui a um concerto do Sebastião Antunes & Quadrilha. Além da ‘Cantiga da Burra’, que toda a gente sabe de cor, e de mais um punhado de músicas bem conhecidas, uma delas, que desconhecia, deixou-me particularmente pensativa. No refrão diz assim: ‘Ninguém fala do Homem do Saco/Ninguém espreita por baixo do colchão/Já ninguém acredita na Coca nem no Bicho Papão’. Ora, em primeira análise, é verdade. Os miúdos de hoje são muito menos crédulos. Com dois anos sabem mexer em tudo o que é aparelho electrónico, com três já sabem números e letras e começaram a falar inglês. Não resta muito tempo para ter 
medo do Bicho Papão, e, acredito, aos quatro até já conseguem articular uma resposta válida para nos convencer, a nós, adultos, de que todos esses seres não passam de mentiras, de rábulas. O Sebastião foi dizendo, na introdução da ‘Conto do Bicho Papão’, que este que dá nome à canção anda triste porque já ninguém acredita nele. E, instintivamente, imaginei uma figura enorme, grotesca e verde (sim, verde parece-me a cor de quem come tudo o que encontra), sentada no canto de uma gruta ou de um armário particularmente grande, a chorar virada para a parede porque, de repente, os meninos já não tremem quando, entre uma colher de sopa e outra, os pais chamam 
convictos o Bicho Papão para vir tomar conta daquele menino mal-comportado que não gosta de vegetais. Na letra surge uma hipotética solução para todo este drama, que traz o Bicho Papão em poltronas de psicólogos: ‘Ai seu pudesse inventar um jogo electrónico/Voltava a ser falado, voltava a assustar/Imaginem lá qual não era a sensação/ De uma consola com o jogo do regresso do Papão’. Não acredito que isso pudesse resolver o drama vivido pelos vilões de antigamente. Provavelmente, o Papão seria convertido numa espécie de tamagotchi dos tempos modernos, sem pingo de piedade por todos os gritos lançados, outrora, por inocentes crianças. A não ser, claro, que fosse de uso 
parental. E aí os progenitores poderiam dizer, na hora da sopa: ‘Ai não comes? Vou já abrir a app do Papão e dizer que há um menino nesta morada que está a precisar de um valente susto para começar a gostar de brócolos’. E o Papão ia anotando os pedidos, bem como o motivo da queixa, e ia visitando as famílias, uma a uma. Lembro-me de aprender, algures na universidade, que as crianças têm medos inatos – de serem comidas, abandonadas e do escuro. E por isso todos os contos para aquela faixa etária se baseiam nesta informação. Assim assegura-se a fórmula perfeita para toda e qualquer estória. Eu não acreditava no Bicho 
Papão. Fazia-me sentido que ele comesse crianças, porque são mais tenras, mas sempre achei que devia ser grande. E uma coisa grande vê-se bem. Por isso, como nunca o vi, pensava que eram uma moda lá de outros países longínquos. Já com o Homem do Saco era pior. É que na minha aldeia passava um senhor, que vivia de modo indigente, nunca cheguei a perceber porquê. Era o David, gostava de se meter com os miúdos por entre piscadelas de olho coniventes dos pais e andava com uma saca de serapilheira às costas. Ora bem, podia não caber lá uma criança...inteira pelo menos, achava eu. E, sabem que mais? Afinal a sopa não era assim tão ruim.

O que os animais têm para nos dizer

Vou contar-vos uma estória muito especial. Os protagonistas são o Sampaio (como o Jorge) e o Jeremias (o fora-da-lei, como a música de outro Jorge, que se assina Palma no fim).
São dois amigos incríveis. O Sampaio é mais velho alguns meses, e isso faz toda a diferença. Ele protege o Jeremias, trata dele, deixa de comer para satisfazer o mais novo, se assim for preciso. E, não raras vezes, o Sampaio faz de almofada ao Jeremias, antes de dormirem os dois profundamente por horas e horas sem fim.
O Sampaio parece que adivinha que vos quero falar deles. Saltou para o meu colo enquanto vos escrevia, com ar de supervisor, e ficou a pedir mimos, que obedecem a regras já pré-acordados - só ao pé das orelhas e da cabeça. Entretanto, ficou preso nos fios do rato do computador, e foi embora, desnorteado. Há-de voltar, ainda antes do final do texto.
Foi o Sampaio que trouxe o Jeremias para nossa casa. O Sampaio veio sozinho, porque a casa parecia um lugar mais acolhedor do que a rua. São dois gatos pretos, o Jeremias ainda bebé.
O Sampaio era ainda muito franzinote quando começou a entrar pela janela que apanhava aberta. Aproveitava quando ninguém estava a ver. Não se deixava agarrar, mas aceitava comida de bom grado. Demorou mais de um mês até que deixasse de ser bufanito e que deixasse de fugir de manhã pela mesma janela, depois de ter dormido uma boa noite de sono no meio da roupa suja. A paciência compensou. Vieram umas festinhas modestas, até que ganhássemos a confiança do desconfiado sem-abrigo.
Já éramos amigos e já o Sampaio tinha morada fixa quando o inesperado aconteceu. O Sampaio gostava muito de andar nos telhados, e às vezes envolvia-se em lutas feias, que perdia sempre. Aliás, ainda tem uma cicatriz no nariz desses tempos, que teima em não desaparecer, como que a lembrar o sucedido, tal e qual um aviso.
Veio uma manhã em que o Sampaio bateu na janela para ir à rua muito cedo. Fartou-se de miar, pedindo que o seguíssemos. Mas como iríamos caminhar com o gato no telhado? Vieram outros gatos, maiores do que o Sampaio. Mas naquele dia, ele não teve medo. Mesmo sem corpo suficiente para enxotar os intrusos, correu destemido em direcção ao perigo, todo eriçado. E ganhou.
Mais tarde, percebemos o que ele protegia e o que o enchia de coragem. Era um pequeno Jeremias, que se abeirou da mesma janela pela qual o Sampaio tinha entrado nas nossas vidas. O Sampaio empurrou o Jeremias com o nariz para a nova casa. Ele pareceu compreender, porque deixou de oferecer resistência a ser puxado para dentro.
O Sampaio, agora gato de estimação, quis abrigar um gato de rua. Outro gato indefeso que lhe merecia muita estima. O Sampaio tem feito as vezes de mãe, de pai, de irmão. E o pequeno cresce a olhos vistos, sempre sobre o olhar protector do mais velho, companheiro (quase) incansável de tropelias e brincadeiras.
O Sampaio é um gato. É um gato preto. O Jeremias também. Dois gatos de rua que, afinal, ensinam muito sobre a vida a todos os seres humanos.