Tânia Rei

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Eufemismos da vida

Apesar de ser espinhosa e complicada de alcançar, encontramos na Língua Portuguesa palavras, expressões e verbos que são muito auto-explicativas. Estava a ver um programa de televisão onde me chamou a atenção o empregar de um verbo talvez pouco usual, mas que entra, claramente, neste grupo - é ele o verbo desviver. Desviver é, sem margem para qualquer dúvida ou motivo de especulação, o contrário de viver. Sem grande ciência e usando pouco mais do que uma regra de três simples, entendemos que alguém que desviveu está morto. Desviver é, ainda que exatamente o mesmo, menos mau do que morrer. E morrer é pior do que falecer, finar ou perecer. Estar morto é, por esta mesma ordem de ideias, muitíssimo mais grave do que ser defunto. Desviver pode ter outro significado, que também é literal. Algo como fazer com a nossa fita do tempo o que fazíamos para reciclar as velhinhas cassetes VHS. Puxar tudo atrás e gravar outro filme por cima daquele que já nos tinha ocupado demasiados domingos à tarde. Portanto, viver outra vida. É, seguimento de raciocínio, um verbo sobre a vida, seja em ausência ou alterada. Desviver transmite uma sensação de desespero num dos significados e de esperança no outro. Se para desviver não há remédio, desviver o passado acalenta a esperança de poder fazer diferente, virar noutra encruzilhada e quebrar qualquer enguiço que se apresente. É curioso que desviver possa querer dizer tanto deixar como voltar a viver. São coisas que parecem estar em extremos opostos, acabar a oportunidade ou renová-la. Contudo, são caminhos diferentes de um mesmo ciclo. Depois de tudo desvivido e vivido outra vez, tudo indica que se desviva no deselance. Pode parecer uma charada, mas faz-me sentido. Há aqui uma péssima notícia que lamento ser eu a dar. É que, antes de desvivermos, a possibilidade de podermos desviver é algo remota. Emendar um erro de forma eficaz e sem mácula, sem ficar a parecer que passámos uma borracha azul movidos a raiva sobre o papel incauto, sucede poucas vezes. É uma chance que poucos teremos. Mesmo apagar aquela mensagem que foi por engano no Whatsapp antes de ser lida na barra de notificações. Mais difícil será poder corrigir um erro e, por cima, acertar em cheio no suposto certo. A vida é complicada. Viver é complicado. Desviver, nem tanto, pois, diria alguém famoso, que para desviver basta, pasmem-se, estar vivo (acrescentei estes clichês só para confundir um pouco mais os caros leitores, com estas palavrinhas todas iguais, juntas e repetidas. Mas já vimos que desviver também pode ser complexo, mediante o significado. Vamos vivendo e desvivendo. Que vivamos até tudo ficar desvivido. Desvivamos até vivermos tudo. Que façamos o melhor possível, se não para sempre ao menos o tem- po suficiente para tornar a nossa passagem indelé- vel, tudo antes de chegar a nossa hora de desapa- recer.

Haja vontade

Quando é que se aperceberam de que estão rodeados por pessoas extraordinárias? Talvez ainda nem se tenham dado conta. Tentem fazer esse exercício hoje - olhar para as pessoas como pessoas. Saborear-lhes a alma, ver-lhes as entranhas. Há uma famosa frase que diz que ninguém é tão ignorante que não possa ensinar nem ninguém tão sábio que não possa aprender. Todas as pessoas com quem nos cruzamos deixam algo em nós, se der-mos chance. Quando não dermos, ficamos a perder. Num presente em que tudo é uma rápida sucessão de eventos e onde nunca temos tempo na ânsia de avançar, tem-nos faltado apreciar os outros seres humanos. Apreciar, na verdadeira acepção da palavra. Quando foi a última vez que pararam para dar da vossa disponibilidade a alguém? Que se detiveram para ouvir e fazer perguntas? Ainda sabem como é ter uma conversa onde ambos estejam presentes e empenhados, sem termo? Estaremos mesmo com menos tempo disponível, fruto do ritmo de vida agitado que levamos? Ou essa é a nossa boa desculpa? A vida vai acontecendo à nossa volta, mesmo que não façamos nada por isso. Com ou sem efeitos borboleta pelo meio, vai correndo. E nós sempre a dizer que hoje não tivemos uma oportunidade para, que não deu porque, que se meteram outras coisas. E os ponteiros avançam e perdemos as pessoas. Como fumo, vão desaparecendo. Desapareceram sem que, sequer, déssemos por isso. É que “hoje não tive uma oportunidade para”, “não deu porque”, “meteram-se outras coisas”. Com elas vão lições e vivências que nunca vamos entender. É que a prioridade nunca são as pessoas. A bateria está sempre apontada para um lado menos claro e nem sempre definido. Há sempre algo que parece mais imediato. E as pessoas... bem... isso logo se há-de ver. Têm parado para dar apreço aos vossos entes queridos? Fazer-lhe perguntas sobre o mundo, sobre o que os move, sobre coisas aleatórias da vida? Sabem o que eles fazem de melhor? Já os viram em todas as suas luas? E por que motivo escolhemos manter algumas pessoas e descartar outras? Qual é o critério, se nem lhes vimos a essência? A vida é um lugar incrível para se morar, em especial rodeados de vizinhos. Viver num enorme bairro é melhor do que viver num condomínio fechado. Que bom é poder bater na porta desses vizinhos e chamá-los para uma festa, onde, a meio da dança, olhamos para o lado e vemos. Vemos, de verdade, e ficamos felizes, por saber quem é o vizinho que ali está, a segurar-nos pela mão. O relógio estica ou encolhe conforme quisermos. Não nos falta tempo - falta vontade. Haja vontade. As pessoas extraordinárias estão à nossa espera, mesmo aqui ao lado, com a mão esticada à espera que a agarremos para irmos bailar.

“O tal” possível

Este texto é inclusivo. Pode ser lido por solteiros ou comprometidos. Não quero traçar já aqui uma linha, o que me iria fazer perder leitores. E isso era uma grande chatice. Sem querer parecer alarmista, mas… já vi- ram quantas relações amorosas correm mal? Não possuo estudos estatísticos, estou só a deixar aqui esta afirmação com um objetivo definido - causar coceiras, inquietações e deixar-vos a pensar precisamente nisso que estão a pensar neste momento: quantas histórias sobre términos e falsas partidas vos foram relatadas ou experienciaram? Todos, em algum momento da nossa existência, pensámos em encontrar “o tal”. A pessoa que definimos na nossa imaginação, que tem tudo com que sempre sonhámos e que, de caminho, ainda gosta de nós da mesma forma porque só assim estão reunidas condições para viver um amor eterno e sem sobressaltos. Nos filmes, “o tal” é sempre o óbvio. Só que andam sempre às turras até que um belo dia acordam e descobrem que, afinal, “o tal” é o tal que estava ali mesmo à frente do nariz, bom de ver. E que era escusado o tempo que foi dedicado a ignorar ou a afastar o que tinha de ser. Bem diz o ditado, o que tem de ser tem muita força. Mas isto de viver em tempo real e sem guiões nunca foi bem algo certo, como o são as fórmulas matemáticas. Portanto, às vezes não tem de ser nada, ou, pelo menos, nada acontece. Então e se forem tão fra- quinhos como eu com os números, as chances de dar ruim dão astronómicas. Vai daí, penso que muitos dão desistência desta causa algures durante o processo, vencidos pelo cansaço e prontos para encontrar um lugar para descansar o coração. Contentam-se com “o tal” possível, que defino como alguém que “não era bem isto que tinha em mente mas que faz as vezes com bastante eficácia”. E assim se acaba com quem nos deixa meio felizes, quem apresenta qualidades, sim senhor, mas nem sempre as que gostaríamos . Muitas das vezes, “o tal” possível é aquele que sobrou, o que apareceu no tempo certo, o que gostou de nós e não nos causa transtornos. Tento decidir se isto é bom ou não. Se chega para encher uma vida ou não. O amor tende a dar trabalho, assim como as pessoas, no geral. Não é qualquer um que está para isso, com tanta preocupação que há para nos ocupar a cabeça, como… bem, não me ocorre agora nenhuma, por isso preenchem, por favor, caros leitores, o espaço das reticências como a vós vos fizer mais sentido, como contas para pagar no final do mês ou o preço da alface. Se calhar andamos a ver tudo mal e talvez não haja só um “o tal”. Talvez nós próprios de- vêssemos ser o nosso primeiro “o tal”, como um espelho. Voltando ao dizer popular, esse lugar-comum onde há espaço para todos, “se não gostar de mim, quem gostará?” Por isso, antes de em- barcar em qualquer sen- da épica pela metade da laranja, vamos sabo- reando com veemência a que já temos - a nossa essência. O ponto de partida está lançado. O resto logo se vê.

Um coração que não bate. Só apanha

Nestes dias de chuva, a minha Mãe andava empenhada numa batalha perdida à partida. Lavou o chão da varanda e tinha esperança que este pudesse secar em tempo útil. A água continuava a vir do céu puxada pelo vento e a humidade era palpável no ar. Claro que no azulejo também. Uma guerra entre duas Mães (a minha Mãe e a Mãe Natureza) que tinha já um ganhador desde o início. E, claro está, o chão não secou. A minha Mãe continuou a reclamar, apesar de cada vez menos, à medida que se ia resignando às condições meteorológicas. Contudo, mantinha alguma da esperança inicial, creio. A esperança é uma coisa, ao fim ao cabo, estúpida. Porque nos empresta uma certeza irrealista de que algo pode mudar e conspirar a nosso favor. Por vezes, temos só que nos resignar aos desígnios que as circunstâncias nos oferecem. Nas lides domésticas e no resto da nossa existência. É a esperança que nos coloca perante as piores situações que podemos imaginar. E acho que nem funciona, se não tivermos sorte. A esperança é o que nos faz ir. A sorte é o que nos faz vingar. O tal vento que muda e alinha os astros para nós, para tudo correr de feição. Raramente acontece, além de que nada disto é certo nem tão pouco de crença geral. Há quem siga sem expec- tativas, há quem nem acredite na sorte. Pior ainda: haverá uma franja populacional que é da equipa da frase feita “a sorte constrói-se”. Isto será mentira, na medida em que só podemos controlar aquilo que a nós nos diz respeito e todas as histórias têm, pelo menos, dois lados. E, quase sempre, controlamos muito mal. Às vezes pelas tais circunstâncias. Outras tantas só por falta de capacidade de gestão. Associado a tudo isto há sempre um sentimento de frustração, de tristeza e de angústia. A vida seria mais simples se fosse como nós queremos? Seria. Sem mais comentários. Não acho nada que os obstáculos nos tornem mais fortes ou resilientes. Tornam-nos mais amargos, inflexíveis e cépticos. Dizemos que acreditamos que coisas boas vão chegar só porque é preciso dizer alguma coisa. Para mentirmos a nós próprios e aos outros. As coisas boas que poderão chegar vão trazer novas complicações. O que vale é que a experiência vai acumulando e com isso aumenta também a leitura prévia que somos capazes de fazer para responder à questão: “Como é que será que este novo evento me pode magoar?”. Afinal, e em jeito de resumo, há corações que não são feitos para bater. Estão destinados só a apanhar.

As memórias são seguras

As memórias são o nosso único espaço seguro. Mesmo as memórias más. Porque se excluiu o factor surpresa. Por mais que possam doer, sabemos o desfecho. Escusamos de ficar ansiosos, à espera do porvir. Nas nossas memórias podemos ser miseráveis , sim, ou felizes, a gosto. O bastante é focar-nos num acontecimento em específico. Os entendidos dizem que o nosso cérebro não guarda tudo o que vivemos. É como um disco rígido com capacidade limitada, que depura o que não tem interesse nenhum. Por acaso, é pena. Assim poupava-nos, tantas vezes, a uma ginástica mental para nos lembrarmos onde pusemos as chaves do carro ou se desligámos o ferro de engomar. Muitas séries futuristas debruçam-se sobre esta matéria - as nossas memórias e forma de as guardar. Aí, nas telas, é possível rever acontecimentos ao detalhe, com recurso a chips e máquinas. Para reparar em coisas que as nossas falhas humanas não conseguem perceber de uma só vez - a vez em que as vivemos. Também quando o assunto é magia estão muitas vezes presentes. Como a possibilidade de voltar atrás no tempo para mudarmos o seu rumo ou de as armazenar num local à parte, numa espécie de memória externa. Até, e o mais relevante, de as apagarmos. Exercício coletivo: apagariam ou alterariam alguma memória, se vos fosse possível? Muitos dirão que não. Que são as nossas memórias, boas ou más, que nos definem. Que, sem elas, seríamos conchas vazias. A memória é também o que nos livra dos perigos, tantas vezes. Lembrámos da vez em que nos queimámos com água quente e assim aprendemos a importância de avaliar a temperatura. Por exemplo. Outros dos caros leitores, por sua vez, iriam eliminar algo que passa em repetição na cabeça e que queriam, simplesmente, esquecer, para poder ter uma vida mais descansada. Ou mudar algo. O arrependimento não mata, mas mói. Pode ser difícil lidar com a bagagem deixada pela memória. Ou na memória, como preferirem. Teimamos em revisitar o que não vai voltar. Ou em pensar demasiado, tentando apanhar detalhes que, entretanto, vão ficando desfocados. É como tentar acertar com a fechadura de casa depois de emborcar uns copos. Acaba por parecer um esforço hercúleo patético para o qual não estamos capacitados e vamos sempre acabar a prometer a nós mesmos nunca mais o repetir. Felizmente, as memórias são só isso mesmo. Memórias. Vivem dentro de nós, fechadas. Não há tecnologia ou magia para as ma- terializar, apagar ou mo- dificar. Acaba por ser um problema sem solução. É ir fazendo contas para amenizar. Choramos ao lembrar algumas. Sorrimos com outras. Choramos a rir, também. Mas são como fantasmas, não são cor- póreas. Já não nos podem fazer bem nem mal. Já não estão no mesmo plano. As memórias são um lugar seguro, imutável. O único. Todos os dias somos, contudo, empurrados para fora dessa bolha para vi- vermos o presente. E, se o hoje são as memórias de amanhã, diria que tudo o que nos resta é trabalhar para que o espa- ço seguro futuro da nossa mente não seja um cemi- tério sombrio. Ou, a haver algumas sepulturas, que sobre elas consigamos depositar uma coroa de flores, sem pesar.

Uma vida desinspirada

A falta de inspiração é algo que me tem acontecido. Devo confessar que tenho dado por mim, não raras vezes, a ponderar seriamente em abandonar a escrita. Por consequência, teria que abandonar o trabalho, as redes sociais, a vida social e, enfim, num resumo, tornar-me eremita. Mais ou menos por esta ordem. Enquanto escrevo estas que podem ser as minhas últimas linhas de sempre (não há muita rede nas cavernas), ouço Jeff Buckley. Pode não ser uma banda sonora alegre. Mas é boa. O que me parecem atributos a ter em conta por quem está neste barco - triste, porém, nunca descuidando a qualidade. A falta de inspiração tem reflexos claros no resto da existência - tudo sabe a pouco, parece que falta sempre alguma coisa; o tempo passa com um vagar irritante. É mais difícil estar vivo, de forma produtiva, quando não vislumbramos um rasgo de novidade no horizonte. Ainda não estou mesmo decidida. Esta poderá não ser a minha despedida. Tirem essa cara de lamentação, vá! Sempre imaginei a minha retirada para os Himalaias mais teatral, sabem? Não assim, uma coisa meio apagada e sem glamour. Acho que tudo o que queria dizer, em boa verdade, é que é OK termos dias sem arco-íris e purpurinas. Sem fogo-de-artifício. Um dia em que, anormalmente, não tivemos que salvar o mundo, e pudemos ficar no sofá, a preguiçar. Os dias só mais ou menos farão, com certeza, dar valor aos óptimos. Mas... Creio que é suposto valorizar os chamados dias normais. Se calhar, analisando de forma mais profunda, é mais ajuizado valorizar todos os dias - maus, normais ou óptimos. Porque é sinal que tivemos direito a mais um dia. E quem tem mais dias, estatisticamente, vive mais. Pode não parecer grande coisa, quando não vemos um grande propósito. Mas, a acumulação de dias dá-nos a dádiva do futuro. E pode vir a ser maravilhoso. Espio pelo canto do olho a mala já começada para rumar às montanhas. Será que as grutas modernas têm aquecimento central? É melhor levar uma mantinha. Já não me parece tão boa ideia como no início destas linhas...Lá é longe. Tem neve. É grande. Tudo alto. Nem conheço lá ninguém! Haverá bonitas cavidades rochosas disponíveis para alugar antes em Montesinho? E se optar por uma ilha tropical? Poderei conviver melhor com os mosquitos do que com certas pessoas? Bem...É melhor uma pesquisa mais aprofundada antes de decisões tão radicais. A vida é, afinal de contas, uma questão de perspetiva. Pode ser que amanhã me sinta mais inspirada. Aliás, já me sinto mais inspirada, na verdade. É que, assim, sem dar por conta, estamos no fim desta crónica. Até uma próxima, caros leitores. Vou ali tirar a manta da mala de viagem.

A evolução do consumo de álcool por causa dos males de amor

Superar um desgosto de amor nem sempre é uma tarefa fácil. O fim pode ser difícil de digerir. Talvez porque não queríamos que tivesse sido assim. Talvez porque ficámos descontentes com a forma como tudo se processou. Talvez porque ficámos tão chateados que queríamos ser um polvo, para poder dar oito socos de cada vez ao agora ex. Voltando à síndrome do estômago amoroso sensível, para ajudar a desfazer todos os nós na barriga, o ser humano inventou o álcool. Uma arte que se foi aprimorando ao longo dos milénios. E assim fica explicada a variedade de bebidas capazes de nos deixar ébrios que temos hoje à disposição. Se, por um lado, temos uma carta de pinga jeitosa, agora temos também a internet. Algo que quando os nossos antepassados se meteram na destilaria não poderiam imaginar que iria revolucionar o mundo das comunicações. E aqui está uma combinação que me deixa nauseada só de pensar. Um bêbedo meio apaixonado ou em recuperação tende a ter imensas (demasiadas?) coisas a dizer ao outro. A fase de adaptação pode ser tumultuada. Inventaram o vinho antes da escrita (faz sentido). Por isso, porventura houve um momento da História em que a única maneira de desabafar os males embriagados seria encontrar o visado ou pintar uma parede. Avancemos, e poderíamos mandar cartas, com a letra toda tremida. Quando a missiva chegasse, até já a ressaca tinha passado. Mais tarde, quiçá, ligavam para o telefone fixo. A seguir, o pager. Telemóveis, com mensagens escritas. Ou toques na madrugada, para os mais forretas. E agora, com o raio dos smartphones e os dados móveis podemos humilhar-nos em qualquer lado, num instante, enquanto emborcamos o equivalente a drenar o Oceano Pacífico. Somos agora sofredores por amor mais perigosos, porque temos mais destreza e, obviamente, mais recursos. Mas o que muita gentinha não dava para ser possível possível malhar numa garrafa de uísque como em cereal maduro, só a ostentar um semblante introspectivo. Em vez disso, provavelmente acaba é a ostentar um olhar vidrado, a mirar um ecrã, enquanto digita uma mensagem ou grava um áudio em voz arrastada que começa com “só acho engraçado que...”.

A vida é dar e receber, para repôr a prateleira

Se a vida fosse uma prateleira de onde todos só tiramos, sem haver repositores, ra- pidamente se esgotariam os recursos disponíveis. Seria, talvez na óptica de muitos, o ideal. Não uma vida gasta de recursos, porque isso era uma mera consequência na qual nem tinham pensado, mas poder só tirar. E tirar, tirar, tirar. Sem dar nada em troca. Como naquelas barraquinhas de troca de livros, em que o convite é para levar um e deixar outro no seu lugar. Sempre desconfiei que o rácio entre quem tira e deixa não é o mais saudável. E só vão ficando livros porque, em boa verdade, os que gostam de ler também não abundam. Ou deixam um livro do qual nem gostam nada, os despojos do que receberam certa vez nos anos. Na vida é mais ou menos igual, só vai ficando alguma coisa porque muitos não sabem do que andam à procura. Então pode acontecer que deixem só porque estão indecisos sobre se querem ou não. E nesse entretanto, provavelmente, outro pegou. E é mais ou menos quando vamos às compras com fome - só queremos levar, nem interessa bem o quê. Estaremos esfomeados de vida? Não creio. Apenas temos ânsias de ter - experiências, coisas, pessoas. Tudo a orbitar em torno das nossas cabeças gigantes, sem realmente saborear. Aquilo que a vida nos dá pode ser facilmente medido com a pergunta - o que é que isto me acrescentou? Isto é, sou agora melhor pessoa? Estou mais sábio, mais maduro? Estou melhor preparado para os desafios futuros? E podemos ver o reverso, o que damos - o que é que eu acrescento ao outro? Ajudei alguém a ser melhor pessoa? Tornei alguém mais sábio, mais maduro? Preparei alguém para os desafios futuros? Constato, cada vez mais, que apenas se procura uma vida vazia. Um desenrasque, com o único propósito de ir respirando e, bem, o resto logo vemos. O consumo imediato, sem estar predisposto a viver, de verdade. E assim se esgotam recursos, se não temos nada para dar, como se fôssemos uma laranja seca - esgotamos experiências, coisas, pessoas. E ficamos outra vez (e cada vez mais sozinhos). “Mas eu não me importo de ficar so- zinho!”. Não, claro que não, até porque, claramente, nem toda a gente gosta da vida da mesma maneira. Refiro-me “sozinho”, sem experiências, coisas ou pessoas que acrescentem. É nesse momento que, olhando para a frente, damos de caras com uma prateleira vazia, onde já não resta mais nada para tirar.

“Palavras que rimam resultam sempre”

"Palavras que rimam resultam sempre”. A frase não é minha, como conseguem perceber pelas aspas. Mas é um conselho sábio, lá isso é. A rima conquista, é uma verdade, porque nos fala ao coração. E nota-se que perdemos algum tempo no dicionário. Ainda que a poesia nunca tenha sido a minha cena na escrita (porque exige uma sensibilidade que eu, claramente, não possuo), gosto dela e de palavras que rimam. E gosto mesmo quando não rimam. Gosto de trava-línguas e lengalengas. Gosto de ditados populares e de slogans. Gosto, em resumo, da palavra. Misturada, triturada, amassada, cozida, assada, frita, com arroz ou só uma saladinha verde. Usando palavras repisadas por aí - “um gesto vale mais do que mil palavras”. Será? É capaz uma acção de apagar mil palavras? Isto é um contra-senso, quando firmamos palavras em papéis, para tornar a imortalizar. E onde fica o “palavra de honra”? Ainda que tudo o que acabei de descrever seja um acto. Como é, afinal? Ficamos com as palavras e esquecemos os actos? Ou ligamos só ao que é feito e nunca ao que é dito? É pena que ninguém tenha feito - ainda - um manual. Assim saberíamos quando deveríamos falar ou quando deveríamos fazer. Este plano tem buracos: algumas coisas não se podem fazer sem se explicar e outras fazem-se mas não se explicam. Mas eu cá não gosto do que não se explica. Por mim, o ideal seria, e até já vos disse, que a vida tivesse legendas. Um acompanhamento feito por palavras que seja capaz de entender. Se eu escrevesse poesia, todas as minhas palavras seriam clichês. Onde o “amor” rima com “calor” ou “dor” ou “ardor”. E “paixão” com “atenção”. Por extenso, não tenho limites. Gosto, afinal, da palavra solta. E gosto que me falem a cantar, com métrica e léxico rico. Acima de tudo, gosto que me falem com detalhe. Tudo explicadinho, como numa receita culinária, não gostasse eu tanto da palavra cozinhada. Afinal, se calhar o que o mundo precisa, em geral, é que nos digam rimas por- menorizadas e que não tenham atitudes que nos façam mal. Se assim fosse, viveríamos um eterno poema. Com rima ou sem rima.

A vida amorosa é como o corredor dos iogurtes do supermercado

E ali estava eu: tão perdida no corredor dos iogurtes como na vida, em geral. O costume. É aqui que começa a nossa viagem - num espaço ladeado por arcas de refrigeração. Quase poético, eu sei. Onde nos pode levar? Talvez, e se formos em linha recta, à secção dos frescos, no máximo. Não criem grandes expectativas. Expectativas normais, diria, levava eu, enquanto puxava o cestinho das compras. Queria iogurtes de coco. São os meus preferidos de todos. Parecia tão fácil. Acreditem ou não, não foi. Até havia o sabor pretendido, mas sem gordura, ou de soja, ou sem açúcar ou com misturas. E eu naquele momento estava capaz de matar por algo só normal, entendem? Descobri que existem mais iogurtes do que aqueles que seriam necessários. Como de abóbora e laranja. Eram precisos? O Marketing dirá que sim. Eu não paguei para saber. Já bufava eu como uma chaleira a ferver ao lume quando encontrei - benza-os Deus! - iogurtes normais de coco. Mas... (há sempre um) vinham num pack com mais seis, emparelhados, de limão, framboesa e banana. Destes últimos nem sequer gosto. Se comer, é por frete. Os outros, nem nunca provei. Por isso vou manter-me céptica-normal até os degustar. Reportarei resultados. Nesta senda, ocorreu- -me isto - a nossa vida amorosa é como o corredor dos iogurtes do supermercado. “Tudo o que vemos exposto tem prazo de validade?”, pergunta- ram-me. Pode ser, mas não é por aí que vamos. Tantas opções, algumas mais ou menos duvidosas, pelas quais podemos enveredar, se quisermos. Uma busca incessante, no meio de tanta variedade. E acabamos sempre por escolher. Tanta vez teria sido melhor cortar os lacticínios da alimentação. Ou optar pelo vegan. Só que, escolhemos. E não serei a desbravadora, ao levar para casa uma catrefada sem saber se estou capaz de fazer todo o conteúdo do pack. Só que havia ali qualquer coisa que fazia o meu âmago pipilar - o raio dos iogurtes de coco, pelos quais estava a salivar. Não me julguem. Quem nunca? Foi assim que acabei com oito iogurtes em casa, sendo que gosto apenas, garantidamente, de dois. Meia dúzia foram por arrasto, sem saber o que reservam ao meu palato, que é muito refinado e habituado a amarguras. Se não gostar, posso sempre atirar ao lixo, renunciar. Não assinei nenhum papel, se é que me entendem. Ou, em boa verdade, é preguiça e pressa. Deveria, sim, ter esperado pelo pack de iogurtes perfeito, aquele que me enchesse as medidas, que fizesse o pleno. Enfim, agora já está. Porque, vejam se me en- tendem, ali estava eu: tão perdida no corredor dos iogurtes como na vida, em geral. O costume.