Eufemismos da vida
Apesar de ser espinhosa e complicada de alcançar, encontramos na Língua Portuguesa palavras, expressões e verbos que são muito auto-explicativas. Estava a ver um programa de televisão onde me chamou a atenção o empregar de um verbo talvez pouco usual, mas que entra, claramente, neste grupo - é ele o verbo desviver. Desviver é, sem margem para qualquer dúvida ou motivo de especulação, o contrário de viver. Sem grande ciência e usando pouco mais do que uma regra de três simples, entendemos que alguém que desviveu está morto. Desviver é, ainda que exatamente o mesmo, menos mau do que morrer. E morrer é pior do que falecer, finar ou perecer. Estar morto é, por esta mesma ordem de ideias, muitíssimo mais grave do que ser defunto. Desviver pode ter outro significado, que também é literal. Algo como fazer com a nossa fita do tempo o que fazíamos para reciclar as velhinhas cassetes VHS. Puxar tudo atrás e gravar outro filme por cima daquele que já nos tinha ocupado demasiados domingos à tarde. Portanto, viver outra vida. É, seguimento de raciocínio, um verbo sobre a vida, seja em ausência ou alterada. Desviver transmite uma sensação de desespero num dos significados e de esperança no outro. Se para desviver não há remédio, desviver o passado acalenta a esperança de poder fazer diferente, virar noutra encruzilhada e quebrar qualquer enguiço que se apresente. É curioso que desviver possa querer dizer tanto deixar como voltar a viver. São coisas que parecem estar em extremos opostos, acabar a oportunidade ou renová-la. Contudo, são caminhos diferentes de um mesmo ciclo. Depois de tudo desvivido e vivido outra vez, tudo indica que se desviva no deselance. Pode parecer uma charada, mas faz-me sentido. Há aqui uma péssima notícia que lamento ser eu a dar. É que, antes de desvivermos, a possibilidade de podermos desviver é algo remota. Emendar um erro de forma eficaz e sem mácula, sem ficar a parecer que passámos uma borracha azul movidos a raiva sobre o papel incauto, sucede poucas vezes. É uma chance que poucos teremos. Mesmo apagar aquela mensagem que foi por engano no Whatsapp antes de ser lida na barra de notificações. Mais difícil será poder corrigir um erro e, por cima, acertar em cheio no suposto certo. A vida é complicada. Viver é complicado. Desviver, nem tanto, pois, diria alguém famoso, que para desviver basta, pasmem-se, estar vivo (acrescentei estes clichês só para confundir um pouco mais os caros leitores, com estas palavrinhas todas iguais, juntas e repetidas. Mas já vimos que desviver também pode ser complexo, mediante o significado. Vamos vivendo e desvivendo. Que vivamos até tudo ficar desvivido. Desvivamos até vivermos tudo. Que façamos o melhor possível, se não para sempre ao menos o tem- po suficiente para tornar a nossa passagem indelé- vel, tudo antes de chegar a nossa hora de desapa- recer.