As memórias são o nosso único espaço seguro. Mesmo as memórias más. Porque se excluiu o factor surpresa. Por mais que possam doer, sabemos o desfecho. Escusamos de ficar ansiosos, à espera do porvir. Nas nossas memórias podemos ser miseráveis , sim, ou felizes, a gosto. O bastante é focar-nos num acontecimento em específico. Os entendidos dizem que o nosso cérebro não guarda tudo o que vivemos. É como um disco rígido com capacidade limitada, que depura o que não tem interesse nenhum. Por acaso, é pena. Assim poupava-nos, tantas vezes, a uma ginástica mental para nos lembrarmos onde pusemos as chaves do carro ou se desligámos o ferro de engomar. Muitas séries futuristas debruçam-se sobre esta matéria - as nossas memórias e forma de as guardar. Aí, nas telas, é possível rever acontecimentos ao detalhe, com recurso a chips e máquinas. Para reparar em coisas que as nossas falhas humanas não conseguem perceber de uma só vez - a vez em que as vivemos. Também quando o assunto é magia estão muitas vezes presentes. Como a possibilidade de voltar atrás no tempo para mudarmos o seu rumo ou de as armazenar num local à parte, numa espécie de memória externa. Até, e o mais relevante, de as apagarmos. Exercício coletivo: apagariam ou alterariam alguma memória, se vos fosse possível? Muitos dirão que não. Que são as nossas memórias, boas ou más, que nos definem. Que, sem elas, seríamos conchas vazias. A memória é também o que nos livra dos perigos, tantas vezes. Lembrámos da vez em que nos queimámos com água quente e assim aprendemos a importância de avaliar a temperatura. Por exemplo. Outros dos caros leitores, por sua vez, iriam eliminar algo que passa em repetição na cabeça e que queriam, simplesmente, esquecer, para poder ter uma vida mais descansada. Ou mudar algo. O arrependimento não mata, mas mói. Pode ser difícil lidar com a bagagem deixada pela memória. Ou na memória, como preferirem. Teimamos em revisitar o que não vai voltar. Ou em pensar demasiado, tentando apanhar detalhes que, entretanto, vão ficando desfocados. É como tentar acertar com a fechadura de casa depois de emborcar uns copos. Acaba por parecer um esforço hercúleo patético para o qual não estamos capacitados e vamos sempre acabar a prometer a nós mesmos nunca mais o repetir. Felizmente, as memórias são só isso mesmo. Memórias. Vivem dentro de nós, fechadas. Não há tecnologia ou magia para as ma- terializar, apagar ou mo- dificar. Acaba por ser um problema sem solução. É ir fazendo contas para amenizar. Choramos ao lembrar algumas. Sorrimos com outras. Choramos a rir, também. Mas são como fantasmas, não são cor- póreas. Já não nos podem fazer bem nem mal. Já não estão no mesmo plano. As memórias são um lugar seguro, imutável. O único. Todos os dias somos, contudo, empurrados para fora dessa bolha para vi- vermos o presente. E, se o hoje são as memórias de amanhã, diria que tudo o que nos resta é trabalhar para que o espa- ço seguro futuro da nossa mente não seja um cemi- tério sombrio. Ou, a haver algumas sepulturas, que sobre elas consigamos depositar uma coroa de flores, sem pesar.