Manuel João Pires

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Bate soft, softemente

Ora bons dias, como têm passado, estamos todos presentes então vamos lá começar que não temos assim tanto tempo. O conceito da aula de hoje é soft power, que é como quem diz poder leve. Hoje em dia explica muito do que a China anda a fazer por aí. Digamos que soft power é a imagem que temos junto dos outros e é sobretudo chegar aos outros sem parecer que queremos alguma coisa deles ou que somos aquele amigo interesseiro que páginas tantas na hora de pagar repete sempre o mesmo truque do “epá, esqueci-me da carteira”. Esqueçam este último exemplo que não serve para o caso. O conceito de soft power surgiu de um economista americano já nos medievais anos 90 do século passado e significa levar os outros países a quererem o mesmo que nós, a quererem ser nossos amigalhaços e a abrirem-nos as portas de casa, mas sem ser a pontapé ou através do uso da força. Por contraponto com o poder duro, inflexível, do quero posso e mando surge agora este conceito mais floreado de poder. Vamos a exemplos práticos: Ultimatum inglês, invasões francesas, vinda da Troika = hard power, poder duro, onde só há duas hipóteses: sim ou sim. Como dizem os espanhóis “ou vai pelo civil ou vai pelo criminal”. Por outro lado, emerge um novo tipo de poder, não pela força ou pela imposição mas pela simples compra ou participação em empresas/instituições e sectores estratégicos. Mais baseado no dinheiro, no capital propriamente dito. Não me interessa que tipo de governo ou como vos governais, o que fazeis ou deixais de fazer é lá convosco, só vim aqui para comprar este bocadinho. E assim comprando, assim adquirindo um bocadinho aqui outro ali vou possuindo. Está à venda eu compro e assim vou aumentando a minha área de influência a nível mundial. Às vezes nem é que eu quisesse, mas o preço é uma ninharia, até é um favor que vos faço. Por isso também há quem diga que apesar de formalmente parecer mais discreto e mais bem-intencionado não deixa de ser imperialismo. Há posse e um domínio efectivo, mas quase parece que não. Não é necessário levantar grandes ondas. Ora, a este tipo de poder falta juntar a imagem e, infelizmente, o dinheiro nem sempre ajuda a compor a ideia que os outros constroem de nós. É por isso que a China nos últimos anos se tem empenhado fortemente em difundir uma imagem diferente fora de portas, mais leve e prazerosa, desligada dos vários preconceitos que muitas vezes lhe são associados. Aprender línguas estrangeiras para se aproximar do outro (o inglês é obrigatório desde o primeiro ano de escolaridade – antigamente era o russo), abertura a produtos e posturas ocidentalizadas, espalhar o Instituto Confúcio (centro de ensino da língua e cultura chinesa) por todo o mundo – Portugal tem três – ou difundir directivas para os turistas chineses – suplantaram os EUA como país com mais turistas no mundo – se comportarem segundo a conduta lá de fora e respeitarem as filas ou não cuspirem no chão... Tudo isso em prol de uma forte campanha centrada na imagem a transmitir para que os outros povos se tornem mais receptivos. Para que os países não se casem com os chineses só por amor ao dinheiro, mas que haja também algum amor envolvido. Só amor. Torna sempre tudo mais fácil. Aquela coisa de o mundo não ser de todo um lugar de equilíbrios assenta aqui como uma luva. Reparem. Nós portugueses andamos sem cobres para power, mas temos a imagem do nosso lado. Sol, bom tempo, praia e campo, comida boa e hospitalidade. Os portugueses são gajos porreiros que não se metem em confusões e ainda sabem dar uns pontapés na bola. A sério, somos um dos países do mundo cujo passaporte permite entrar em mais países sem precisar de visto, 172 – Alemanha em primeiro com 177. Num mundo de desequilíbrios este soft power é mais um produto meio sub-reptício dos tempos modernos, cheios de tiradas de bastidores, de coisas que não se descobrem, de papéis e panamás do lado de lá da cortina. Por isso talvez este poder leve seja um pouco como os produtos light. Nem sempre nos podemos deixar iludir. Temos de ler com atenção as letras minúsculas para ver se as calorias, os conservantes ou as gorduras causadoras de mau colesterol continuam lá. É que às vezes só muda a embalagem. Por hoje ficamos por aqui. Podem sair. Cuidem-se. Até para a semana.

O pulo do gato

Minha gente, como têm passado? Bem, certamente. Espero que os cestos de uvas tenham rodado pesados pelas mãos de quem teve o saudável privilégio de os carregar, caíram umas águas e os ouriços despontam a bom ritmo. Bons prenúncios. A época de vindimar é sempre altura de fazer contas, neste novelo de ciclos em que se vai desenrolando a vida de cada um e de todos sem excepção. Poucas coisas há mais prazerosas do que colher os frutos. A alegria tão natural de alcançar o resultado final, intensificada pela noção de todo o árduo esforço por que se passou para tão revigorante fim, e isto aplica-se aos desafios por que passamos a todos os níveis. A importância das colheitas enquanto acto desde sempre inerente à condição humana constitui uma matéria presente em muitas vertentes, representações artísticas desde que o homem anda por cá, celebrações e festividades que cosem a matriz cultural de cada lugar ou por exemplo os infindáveis provérbios e parábolas que os homens souberam usar para se fazerem ouvir e perpetuar uma série infindável de úteis conselhos e saberes, e que vindos de há muito tempo se mantêm bem à tona da língua. Alguém escrevia há um par de dias que por mais que digamos em Janeiro que “ano novo, vida nova” e nos queiramos convencer de que uma nova fase recomeça, é em Setembro que verdadeiramente se entra em mais um ciclo, em mais uma temporada, depois das férias, depois do Verão, é o mês primeiro de mais uma etapa a enfrentar. Já não são propriamente as colheitas que durante toda a humanidade marcaram este virar do ano, mas uma série de outros factores que continuam a vincar essa mudança. Ainda a natureza, sempre a natureza, acima de tudo o mais. “São as águas de Setembro fechando o Verão”. Por isso, onde quer que vos encontreis, um bom recomeço e um bom novo despertar para mais uma temporada. Saúde!
Mas ainda não termino por aqui. Vou pegar na deixa adaptada de António Carlos Jobim e dar um pulo para o lado de lá do Oceano. Vou contar-vos uma história, partilhar algo convosco, afinal que piada tem andarmos por aqui se não partilharmos as coisas que vivemos e com as quais nos vamos cruzando. Há pouco tempo li um livro de um autor brasileiro que tenta explicar a origem de algumas palavras e expressões do português. As explicações dadas não são muito longas nem citam fontes, por isso nem sempre parecem muito fidedignas, mas é louvável a intenção do autor, escrita engraçada, boa leitura de Verão. O pulo do gato. Fábula originária de Minas Gerais, Sudeste brasileiro. Resumindo e por vezes citando: havia uma onça que vivia admirada com a agilidade do gato. Curiosa, resolveu pedir-lhe umas aulas. O gato aceitou ensiná-la. Um dia, achando que já havia aprendido tudo, a onça resolveu atacar e pegar o gato como refeição… mas o gato sumira. Dias depois, ao encontrá-lo, a onça perguntou: “pois é compadre, esse pulo você não me ensinou.” E o gato, muito astuto: “Pois é comadre, é ele que me mantém vivo!” Em jeito de moral da história depreende-se que nem sempre o chefe ensina tudo ao aprendiz, há que manter alguns segredos do ofício pois não se pode abrir o jogo completamente. Nem abrir o jogo todo nem abrir muito a guarda. Afinal quem nunca deu um pulo de gato? Ou quem nunca pulou que nem onça a pensar que o gato já não escapava? Outra leitura, a de que às vezes há coisas que convém manter meio encobertas, quanto menos pessoas souberem melhor. Lembro-me de uma praia sempre deserta onde só se chegava a muito custo, quase melhor por mar do que por terra, e que depois de ser capa de uma dessas revistas de viagens e coisas para fazer se inundou de gente e de lixo, segundo soube. Perdeu a piada para todos. São os pulos do gato. Coisas que acontecem aos vivos. Coisas que convém ficarem na manga. Coisas que se passam na língua portuguesa. É maravilhoso pertencer a uma mesma língua que nos pode contar histórias de vivências comuns, de gentes distantes que vivem lá longe onde o Outono começa em Março, e através da qual podemos trocar estas histórias que uns inventaram e outros não se lembraram de criar. Permuta e partilha de vivências e culturas como crianças a trocar autocolantes repetidos depois da escola. Lindo. (…) É uma ave no céu, é uma ave no chão, é um regato é uma fonte, é um pedaço de pão… São as águas de Março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração…pa padaba pa padaba pa…

Andar a ver estrelas

Ora boas tardes, como estão, que não vos faltem sombras frescas para melhor fruírem das tardes de verão. E esses dias e noites de festa, aldeias, vilas e cidades cheias de movimento, animação, comida, bom convívio. Uma alegria. Eu que estou numa terra sub-tropical, onde a humidade anda meses a fio acima dos 80, muitas vezes nos 97, 98%, e o calor se mistura com uma massa de ar húmido onde não há sombra que lhe faça frente. Sol ou sombra, o mesmo sufoco, só o ar condicionado para nos trazer redenção. A minha vida pela sombra bem fresca de uma árvore ou de um pátio de xisto. E se não for demais que venha acompanhada de uma manta onde me possa estirar para uma boa sesta. Mas atenção que também por aí estive. E desfrutei de tudo isso um pouco. Pouco tempo, mas preciosíssimo. Encontrar quem não se via há muito, ver como é que os castanheiros estão de ouriços, ir à lenha, até javali regado a vinho caseiro e concertinas com toda a aldeia sentada à mesa. Não tem preço. Mas o que mais guardo e do que mais sinto falta sabem do que é? Pois sim, do céu. Do céu trasmontano. De manhã à noite é de uma pessoa andar sempre de cabeça no ar. Esse céu de verão de um azul sempre vivo, com um fulgor laranja quase fogo ao amanhecer, com os vários tons roseados ao fim da tarde, é indescritível. E a estrela boieira ou do pastor a iniciar as hostes ainda antes do dia findar e depois todo aquele espectro de estrelas ali mesmo por cima de nós, as constelações todas definidas, desde as ursas à cassiopeia… É deslumbrante. E o luar, claro, a iluminar as noites. Não há luar como o de Janeiro mas o de Agosto dá-lhe pelo rosto. Enfim, desculpem a maçada, são coisas de quem só tem disso uma vez por ano, de outra forma, nem damos tanta importância a esses sublimes pormenores sob os quais vivemos todos os dias. Outra coisa de que gostei particularmente nesta época estival em que o tempo pede para isso foram as caminhadas. Ainda aqui há meses falava de serões e sedentarismo. Qual quê. No Verão acaba a janta, dá-se uma lavadela à loiça e é ver toda a gente a sair para caminhar. Juntam-se os grupos, às vezes por bairros, os que se despacham primeiro vão chamar os outros à porta, uns mais novos outros mais velhos e aí vão eles. Um dia seguem ladeira acima o outro dia mudam o percurso e vão costanilha abaixo, uns mais rápido em ritmo acelerado - uma espécie de profissionais da caminhada que levam os tempos e as distâncias muito a sério, são os que normalmente vão muito adiantados, depois param, viram-se para trás e dizem “Oh, eles andam sempre tão devagar”. Depois esperam um nadinha pelos outros mas ainda antes deles se juntarem “oupa” voltam a arrancar para diante. E os detrás mais pelo convívio, por norma mais velhos, com as pernas e as articulações mais pesadas e o passo mais demorado pelas conversas, a contarem uma história que se lhes passou na juventude a cada um dos locais por onde passam, com o casaquito pelas costas. Às vezes cruzam-se uns grupos com os outros em direcções opostas. Muito bom! Aproveitar enquanto não vem o frio e toda a gente se torna a fechar em casa. E apanhando esta onda das caminhadas têm-se organizado muita coisa, são voltas, percursos, desde passeios matinais com o pretexto de visitar montes e moinhos a rotas nocturnas a recriar os passos dos contrabandistas mas sem os fardos às costas nem os carabineiros à perna. Há os que disparam e só querem saber de chegar ao fim o mais ligeiro que conseguem e há os que vão apreciando o passeio e a companhia dos parceiros. Profissionais e amadores das caminhadas e dos caminhos. E tudo isto, por norma, a culminar num belo repasto no ponto de chegada e numa camioneta que traz todos de volta à casa de partida. Saúde, convívio, cultura… e barriga cheia. Que mais podem querer. Sim senhor, são iniciativas bonitas de se ver. Pessoalmente prefiro as da noite pela fresca, na desportiva, porque andar a ver estrelas, essas estrelas, é coisa que não tem igual. Um abraço!

O caminho faz-se…

Manhã cedo. A lua passa o testemunho ao sol antes de se desvanecer. As casas de pedra, o tanque e a amoreira envoltos numa sombra a clarear. Nos pés as botas que não falham. Quando os calos doem, lembram-se sempre das velhas botas. Pois são essas mesmas. Na mochila duas laranjas, uma para cada um, uma garrafa de água, pouco mais. O caminho começa nos paralelos durante alguns metros, não muitos, só enquanto percorremos o centro da aldeia. Nas horas seguintes seguimos pelo alcatrão, pela estrada antiga que passa por Vale de Frades. Aqui havia um caminho, subia aquela ladeira e cortava para a direita lá em cima onde estão aqueles pinhos. Mas agora já não anda ninguém pelos termos e os caminhos perdem-se. Dantes andava tudo limpinho, não se via uma erva. Passo a passo. Do lado esquerdo uma corriça, as vacas madrugadoras aproveitam o fresco para comer. Os cães de gado vêm à parede ver quem passa e detêm-se desconfiados até que nos deixem de ver. A estrada sobe, desce, uma ou outra pequena recta. Aqui nesta estrada andei eu a partir pedra, mais ali à frente já te digo onde quando lá passarmos. Vieram uns homens lá de baixo do Porto para abrir o caminho e eu, meu pai e mais um punhado de homens de cá a partirmos pedra com uma marra de manhã à noite. A mim só me davam meia jorna, puxava pelos costados tanto como os outros mas ainda não tinha idade para ganhar jorna inteira. Eram outros tempos. O alcatrão só veio muito depois já eu tinha feito a tropa. Avançando sempre. Passamos por uma aldeia e um homem no seu andar moroso, regador na mão, responde-nos “então ainda tendes uma boa caminhada pela frente”. Saímos da povoação, isto antes não chegava até aqui, a aldeia ficava toda lá em baixo do outro lado da ribeira, depois começaram-se a fazer as casas novas, estas ruas já não as conheço. Andamos mais um par de quilómetros, viramos à direita e chegamos a um lugar chamado Trapo. No Trapo era onde se apanhava a camioneta para Bragança, onde na altura chegava a estrada. A paragem ainda lá está. Feita de granito e relativamente bem conservada para o estado de abandono em que vive. Tem uma lareira. Às vezes até trazíamos um pouco de lenha connosco para nos aquecermos. Eu nunca tinha visto uma paragem com uma lareira. Acho que pouca gente deve ter visto tal coisa. Achei uma coisa tão diferente e curiosa, meio pré-histórica. Um monumento. [à atenção da CM Vimioso] Paramos mais à frente para dividir uma laranja. Por pouco tempo que ainda vamos a meio. Pela estrada seguimos até Pinelo, perguntamos ‘depois da ponte qual é o caminho’. Pela direita dizem-nos uns. Pela esquerda garantem outros. Vamos andando. Um cruzeiro e depois outro. Os dois assinalam 1952. Deixamos a aldeia e o alcatrão ao cabo das 9 horas pelo anunciar sumido dos sinos da igreja. As subidas começam a puxar pela barriga das pernas, o sol aquece e os casacos guardam-se na mochila. Chegamos a um alto e vemos a ponte romana lá muito em baixo. Parece minúscula. Depois da ponte uma encosta grande, espera-nos uma subida íngreme, inclinadíssima. Mas primeiro é preciso descer até lá ao fundo. Afinal a ponte não é minúscula, pelo contrário, imponente e de uma altura respeitosa. De estilo romano. Como é que se faziam obras daquelas num sítio daqueles não se percebe bem. São coisas que ficarão sempre meio incompreendidas. O Rio Maçãs corre bravio e vigoroso este Verão. Bem haja ele. A partir daqui é sempre a subir, não há volta a dar. Bebemos um gole de água e escolhemos o caminho da direita. O passo mais lento na subida. Encontramos um casal a regar umas árvores recém-plantadas. De onde vindes e de quem sois. Feitas as apresentações e descobertas as afinidades não é por aqui era pela esquerda. Mas podeis atalhar por esta propriedade e apanhá-lo ali ao fundo. Atalhamos, retemperamos forças e subimos. Às tantas quase de gatas de tanta inclinação. Sol, suor e pó. Assim é o caminho e assim é a vida. Estamos já a entrar pela vila, começam os paralelos mas a encosta ainda não acaba. Chegados ao cimo, olhamos para trás. Para quem goste do género a paisagem é simplesmente deslumbrante. Agreste. Natural. A ponte vista de outro lado, o vale em baixo, os montes ali desde o princípio dos tempos. Os olhos ficam rendidos mas as pernas já não podem parar. Atravessamos a vila e regressamos ao alcatrão. Três quilómetros, dizem-nos. Acumula-se o cansaço e a ânsia de que cada curva seja a última, até que o antevemos ao fundo. Uma súbita energia e eis que já cá estamos. Missão cumprida. Valeu a pena, pelas paisagens e pelo resto. Trocamos um abraço. Eu e meu pai chegamos ao São Bartolomeu. Caminhando.

A salto

Meus caríssimos amigos. Bons olhos vos vejam. Essa vida como vai? Às portas do Verão não tem porque ir mal. Haja saúde que o resto vem por acréscimo. Pois é. Passaram há poucas semanas 50 anos após a Revolução Cultural. Ao contrário do que se possa pensar, apesar de ainda haver um punhado de fiéis veteranos dos princípios (e fins) de Mao Zedong, a China faz por esquecer esse período. Os meios de comunicação foram orientados a não assinalar a data e o governo já reconheceu o redondo falhanço por mais que uma vez. O que ficou conhecido como o “Grande Salto em Frente” não foi mais que um aparatoso trambolhão e uma época de acentuado retrocesso. Não sou eu que o diz, “o partido” dixit. São tempos e feridas que continuam bem vivas. Matou-se literalmente o saber e o conhecimento e mandaram-se as pessoas para o campo para produzir o progresso e a boa ventura. Mas os campos nem sempre dão frutos quanto mais progresso, as ideologias não puxaram carroça e dezenas de milhões de pessoas morreram à fome, sem ter o que comer. Conheço muitas histórias, mas posso cingir-me só à pequena amostra dos meus alunos. Alguns dizem-me que os seus avós comeram relva do chão e vasculharam solos e pedras à procura de algo onde meter o dente. Homofagia também? Não interessa. Vem dessa altura o ditado deles “no céu, na terra e na água só não se comem os aviões e as pedras” e é essencialmente por culpa desses tempos que hoje se vive este clima de salve-se quem puder. Primeiro o EU, depois o resto, não é comigo. O caminho é o crescimento, económico, as pessoas não têm tempo para pensar no outro, na comunidade, na verdade não têm tempo para nada a não ser ganhar dinheiro, fazer fortuna. E ostentá-la. Nem sequer para os filhos. São os avós que criam os filhos porque os pais têm de trabalhar, enriquecer. Só no bairro onde vivo, diria, 70% dos bebés ou crianças vivem só com os avós (muitas vezes só um avô/avó) e os outros 30 com os avós e com os pais ao mesmo tempo. Isto é assim em toda a China desde há poucas gerações. Os pais relegam as crianças para os avós quase desde que nascem com semanas. Às vezes vivem no estrangeiro, outras vezes cá dentro mas muito longe e apenas visitam os filhos nas festividades. Depois, chegados à idade escolar, voltam a perfilhar as crianças. E não poucas vezes os pais acabam por ser seres meio estranhos habituados que estavam ao convívio com os avós. Conheço uma professora de São Paulo cujo trabalho é integrar estas crianças na sociedade e no meio escolar brasileiro. Crianças que 1. São levadas para um país/língua/cultura totalmente diferentes à entrada da idade escolar e 2. A relação com os pais é praticamente nula, pessoas que mal conhecem. Fácil de ver que é um trabalho que requer acima de tudo um enorme coração. Bem, não era exactamente disto que eu queria falar, mas as conversas são como as cerejas (em Portugal, porque aqui são caríssimas, quase um luxo). Por estas bandas persegue-se a fartura a todo o custo para que não dê em fome novamente. O modelo? O norte americano. Sim, é verdade. Na tecnologia, no sistema educativo, no estilo de vida… Como se nos EUA tudo fosse um perfeito mar de rosas. Não importa. Eles estão em primeiro, são quem mais riqueza possui, por isso são objectivo a perseguir com obstinação. Se o sucesso é isso, se é disso que o mundo gosta, façamos igual. Quanto à ditadura é relativo. Talvez fosse difícil manter a integridade e governar tanta gente de outro modo. Além disso, a saúde da Europa, instável, violentada, meio falida (e falida é que não) e outras Trumpalhadas têm dado muita força ao governo e criado nas pessoas o sentimento de que as coisas estão a ser bem feitas, afinal, dizem, a Europa precisava de rédea mais curta. Enfim, a verdade é que o sonho chinês existe e as pessoas sentem que o podem alcançar se dedicarem todos os segundos da sua existência a esse nobre propósito de produzir riqueza. Tudo o resto é perda de tempo. Lembro-me que quando cheguei, pouco conhecedor da sociedade, a algumas perguntas respondiam-me quase ofendidos “claro que não, nós já não somos essa China, fechada, isto não é a Coreia do Norte”. Ok, peço desculpa. Às vezes em Portugal as pessoas ainda me perguntam coisas como se na China há McDonalds. Três pontos: Primeiro, antes de se olhar a cores, olhe-se para o que realmente importa. Se dá dinheiro. Se sim, claro que há. Segundo, o que é de fora e norte americano não só é bem vindo como é bom. Tem qualidade, é referência, moderno, chique, para quem pode. Terceiro “claro que sim, nós já não somos essa China, fechada, isto não é Coreia do Norte”. Outros tempos pairam como nuvem negra, a revolução cultural já lá vai. Fugir. Saltar sem olhar para trás.

Publicidade ao intervalo

Como vai a viola meus caros? Essas cores e aragens da Primavera? Já andava há uns tempos para vos saudar com esta da viola. Tinha um tio-avô que cumprimentava assim as pessoas. Nunca percebi bem se era apenas algo dele ou até que ponto é que fora corrente pelo Nordeste esta expressão. De qualquer dos modos sempre me soou engraçada e original. Possuía outras originalidades que destaco e já mal se usam. Tinha uma intuição única para encontrar ninhos e camas de lebres e outros animais. Parecendo que não são cada vez menos os homens que têm esse nível de sintonia e intimidade com a natureza. Saber o que nos contam os ventos, os voos dos pássaros, os sinais das plantas, os animais que vão e os que vêm, as cores do céu de dia, as direcções nos céus limpos de noite, e um longo rol de coisas que pura e infelizmente me ultrapassam. O homem como alguém que vive na e para a natureza. Enfim, passo a publicidade familiar. Dito isto nem parece que vos venho falar de futebol depois do clímax de uma época como há muito não se via e discutia. E daqui a nada olhos e corações em França. Barrigada. A China quer apostar a fundo no futebol. A última das pretensões num país que tem tantos praticantes federados de pingue-pongue como nós de habitantes. Depois vem o badminton e não sei se me estou a esquecer de algum mas surge o basket num país que segue o modelo económico-social dos Estados Unidos da América com a mesma avidez com que um cão faminto corre atrás do bife que tem à frente. Tanto que os pingue pongues, os badmintons e outros jogos com tradição começam a ser vistos pelos jovens como algo antiquado, old school, dos tempos antigos. Agora quem vai a jogo é o futebol. A China quer apostar forte e não é só ao gastar muitos milhões em jogadores e treinadores para a superliga chinesa que só começou nos anos 90. Não esquecer que há uma China antes, onde o que era estrangeiro não tinha lugar, e outra depois dos anos 80 quando perceberam que um certo comunismo estava perto de ser expulso por acumulação de amarelos e poderiam perfeitamente lutar pela conquista do título nas quatro linhas do capitalismo. A China está a investir imenso na formação de base. Luís Figo tem cá vinte e tal escolas de futebol a funcionar e como ele muitos ex-jogadores famosos e clubes do mundo inteiro, inclusive os nossos. Saiu recentemente uma lei para o futebol marcar presença obrigatória nas escolas. Dizem que querem organizar um mundial a breve/médio prazo… e ganhá-lo… Por tudo isto a China é um país excelente para treinadores de futebol. Diria mais, a China é o país, sobretudo para os jovens treinadores com espírito aberto e vontade de descobrir e (fazer) desenvolver. Costumava jogar futebol, na verdade agora não tanto, e até fiz de treinador com a equipa da minha universidade. Quando posso jogo também noutras frentes com estrangeiros, inclusive. Proliferam ringues de futsal e futebol 7 um pouco por toda a parte. Aqui os jogadores são folhas em branco, precisam de aprender tudo, perceber o próprio jogo, coisas tão elementares como fazer um passe minimamente acertado, o guarda redes sair da linha de golo ou dominarem uma bola. Tudo! Desafiante. Por outro lado precisam de trabalhar o colectivo, o espírito de equipa e respirar futebol, perceberem que é um jogo com uma mentalidade diferente dos outros. Uma vez o André Lima, treinador de um clube de Cantão e agora também da selecção de futsal chinesa e ex-jogador e treinador em Portugal onde foi várias vezes campeão, disse-me “repara que são bons nos desportos individuais mas não se destacam em nenhum desporto colectivo”. É verdade, a sociedade chinesa é profundamente competitiva e individualista, por norma as pessoas não vivem com o hábito de cooperar, da solidariedade, da ajuda ao próximo, para além do plano familiar. Por isso é um desafio também trabalhar esse lado colectivo (numa equipa de futebol como numa sala de aula). Os chineses quando querem evoluir em algo que não é deles vão buscar profissionais de fora para se instruírem. As condições dadas são apelativas - até pelo feedback dos treinadores da Fundação Luís Figo - a necessidade é enorme e o que há a fazer e a aprender é quase tudo, um autêntico livro em branco. Jovens treinadores portugueses estão à espera de quê? Incluam China no vosso itinerário. Agora é o momento. E é isto. Fim de publicidade (absolutamente gratuita).

Debaixo da Lua

Bons dias estimada e bela gente. Que estas palavras vos encontrem de boa saúde e que Maio granaio tenha dado as boas vindas às andorinhas e aos dias compridos com fins de tarde quentes já que este ano parece estar a deixar tudo para mais tarde. Diz que nem as cerejas vão chegar a tempo das feiras e das festas que as celebram. Pois é, este vosso e modesto escriba tem andado atarefado entre trabalhos e estudos, leituras e investigação, uns sítios e outros. Depois do ano novo chinês ainda não nos tínhamos encontrado. Parece que este é o ano do macaco, que costuma trazer fortuna e boas oportunidades. Se assim for, tanto melhor, de qualquer modo se o ano não for macaco já é bom o suficiente. Ultimamente tem-se falado muito da Ásia e da China em concreto, por várias razões, umas melhores que outras, embora a maioria ande em redor do mesmo. Investimentos nas instituições públicas, bancos, imobiliário hotelaria, propriedades, etc., até o tão nosso sagrado e profano futebol. Ao contrário do que se possa pensar, obter um dos nossos vistos gold, em termos económicos, não é particularmente inacessível. 500 mil euros por um imóvel, a via mais comum, não é muito caro para a classe alta nem sequer para a classe média um pouco mais desafogada. Conheço duas mãos cheias de cidadãos que os têm, já ensinei português a alguns, e conheço muitos mais que não os tendo se admiram com o quão alcançáveis, digamos baratos, são esses vistos. É um país de disparidades, bem certo. Grandes, enormes, já aqui falei disso, mas o que é certo é que se não fosse alguma burocracia pelo meio teríamos certamente uma incursão ainda mais massiva. O que interessa aos chineses não é o clima nem ter o seu cantinho à beira mal plantado, até porque se há coisa que detestam é bronzear-se, mal surgem dois raios de sol e escondem-se debaixo das sombrinhas para manter a alvura da pele, padrão de beleza das mulheres. Pele morena era sinónimo de trabalho, no campo. Um padrão aristocrata, portanto. Mas voltemos ao financeiro, o que interessa aos chineses é o visto propriamente dito. Um documento que lhes permita uma liberdade quase total por entre o discutido Espaço Schengen. Ponto final. O que lhes interessa, acima de tudo, é poder ter a Europa na mão e por ela andarem a seu belo prazer. Entrarem e saírem sem montanhas burocráticas de cada vez que aí querem dar um salto. E depois do visto o céu é o limite, tanto podem ir a Paris provar um copo de vinho e um croissant como comprar a loja de vinhos ou a Croissanteria. E por aí fora. Isso é lá com eles. Alguns nem acham piada a Lisboa. Cidade velha, antiga, sinuosa. Sem betão e aço em altura a mostrar desenvolvimento e maços de notas frescas nos bolsos. Nova Iorque, Hong Kong, Singapura, Tóquio, ruído, fumo e arranha céus, isso sim é cidade para novo rico chinês ver. Abreviando. Estamos habituados a produzir barato na China - mesmo nós, que pouco produzimos - mas aqui os salários e os direitos começam a crescer e vão surgindo nas grandes marcas os “Made in Bangladesh, Camboja, Vietname, Tailândia”, outras presas para melhor sugar. Há países que para aqui vieram em força e cujos seus salários mínimos já são mais baixos que os de cá. Há notícias frequentes de empresas que mudam de ares. Também nós já representámos esse agridoce papel, de nos mastigarem e deitarem forem, como dizia a música. Mas temos sempre memória turva para nos recordarmos de como éramos antes de entrarmos para as Europas. A muitos custa a engolir que o país do barato, da má qualidade e onde tudo se copia nos venha agora explorar e comprar aos bocados como se os indigentes de um terceiro mundo pertencessem fatalmente a uma casta de subalternidade de que não se poderão nunca libertar por mais que tentem e se transfigurem. Aquilo a que durante séculos se soía chamar “negócio da China”, com um acentuado traço pejorativo, são agora os negócios de Portugal – e de outros países que tais. São as actuais regras do jogo global, as regras de todos os jogos. Quem tem milhões toca guitarra, quem não tem procura ou estende a mão para os ter. Quer queiramos quer não, quer nos pareça menos bem ou menos mal. A caravana passa e nada há a fazer, afinal é assim que nos vamos arrumando, neoliberalmente. Talvez seja o pior dos males, excepto todos os outros, claro. Tal como dizia Churchill da democracia… Enfim, paciência. É a vida.

TRABALHO DE CASA

O Ambiente está a mudar. É um chavão que ouvimos com regularidade invocado ora como desculpa ora como acusação ou até como sentença e dito de forma mais ou menos convicta. Mas quem está mesmo convicta da verdade dessa conclusão é a comunidade científica. O degelo das calotes polares, o avanço do mar, muitas vezes com derrube das falésias, os fenómenos atmosféricos extremos de cada vez mais frequentes “el niño”, etc, são a parte visível das alterações climáticas que os ambientalistas atribuem ao aquecimento global do planeta. Não queria deixar de registar, aqui, a assertividade da sabedoria popular em abono desta tese. O facto de os nossos agricultores estarem a plantar oliveiras (árvore da terra quente) onde outrora só havia castanheiros e carvalhos (árvores da terra fria) revela que eles se movem ao ritmo de um certo pulsar cósmico, indizível, mas que sentem. Tal como as aves migrantes que, quando chega a hora, mudam. Que sexto sentido os compeliu a mudarem de paradigma agrícola, pese embora a falta de formação e informação? Que estranha sensibilidade é essa! Mas aqui, como sempre, o empirismo e a ciência andam de mãos dadas.
O aquecimento global é tido como consequência do acréscimo dos gases com efeito de estufa na composição do ar atmosférico, com especial relevância para o dióxido de carbono ou anidrido carbónico (CO2). Este, por sua vez, é resultado de qualquer combustão sendo que o grosso vem da queima dos combustíveis fósseis. Ora os combustíveis fósseis, carvão, petróleo ou gás natural, são, desde a revolução industrial, os motores de qualquer economia e por isso o seu consumo tem subido exponencialmente. É no início desse consumo desenfreado que os ambientalistas tomam como ano zero do aquecimento global, o espaço temporal 1850-1900. E é com base nos modelos matemáticos criados para este estudo (aquecimento global), tendo em atenção o período entre os anos 1000-1400 em que houve um arrefecimento de 0,2⁰C com a consequente descida da agua do mar de 8cm, que os ambientalistas projetam para 2100, caso se mantenha o paradigma do crescimento económico assente na demanda energética, um aumento de 4⁰C na temperatura global em relação ao ano 0 (1850-1900) com a consequente subida das aguas do mar em 1,3m. INCOMPORTÁVEL, dizem.
AnchorCriam então o COP, acrónimo inglês que quer dizer Conferência das Partes. Reuniu a 1ª vez em 1994. De então para cá tem reunido variadíssimas vezes, aliás vinte e uma, tirando sempre boas conclusões mas nunca nada de substantivo em termos de resoluções. (é difícil pedir a um pais subdesenvolvido que tenha contenção no consumo de petróleo porque o Planeta está em risco. Ele responderá naturalmente “em risco estamos nós”. E nem sabemos o que responderia a China.)Até que chega 2015. Já ninguém tinha grandes esperanças nas resoluções de mais um COP mas eis que os ambientalistas têm a sorte dos audazes numa ajuda de ouro do Papa Francisco. Este acabava de lançar uma Encíclica sobre o ambiente, Laudato Si, onde o Papa convoca os católicos e por arrastamento todos os outros, já que o tema corta transversalmente todas as religiões, para a defesa da nossa casa comum ou seja o Planeta. Claro que com esta ajuda inestimável, o COP21 foi um sucesso. A ponto de os 187 países votarem por unanimidade as conclusões, com caracter vinculativo, do COP21 o que chegou a emocionar o anfitrião, Laurent Fabius.. A meta é chegar ao ano de 2100 sem que a temperatura média do planeta tenha um acréscimo superior a 2⁰C face ao ano 0. É uma meta ambiciosa uma vez que precisamente em 2015 o acréscimo da temperatura média do planeta, pela 1ª vez ultrapassou 1⁰C. (mais precisamente 1,02 ⁰C).
O que é que sobra de isto tudo? Os Países vão apostar em força nas energias renováveis, sejam elas eólicas, hídricas, fotovoltaicas, de marés, de geiser, de forno solar, nos motores eléctricos, a hidrogénio, etc. Mas o que é que se pode fazer a partir de Bragança que possa aliviar a carga térmica deste 3º calhau a contar do Sol? Correndo o risco de ser repetitivo direi que os moinhos, verdadeiro “leitmotiv” deste artigo, não sendo uma panaceia, podem contribuir para esse desiderato. Falo nos moinhos por várias razões, algumas até sentimentais: Custa-me ver essas peças da nossa arqueologia industrial votadas ao abandono; Custa-me que não consigamos afectar o seu potencial de serventia às necessidades actuais; Custa-me ver presas assoreadas, onde o aluvião atinge já o perfil de equilíbrio, e com os paredões em ruina; Custa-me ver os logradouros dos moinhos, as nossas praias de outrora, cheios de silvas e plásticos. Mas não tem que ser assim. Os moinhos que produziram energia mecânica podem perfeitamente hoje produzir energia eléctrica. Para tanto basta trocar a mó por um gerador. Haveria ganhos não só pela produção energética, de energia limpa e renovável, mas também pela requalificação de autênticos nichos balneares.
É evidente que esta reafectação, se for aplicada a um caso só, pouco interesse tem e possivelmente nem terá viabilidade económica. Teria que ser uma jogada de conjunto e com uma coordenação. Há fundos Europeus para estes investimentos que, além de estarem na ordem do dia, como se manifesta, têm RETORNO.
Não que eu acredite muito no cumprimento de acordos entre 187 países e com uma vigência até ao fim do século. Mas se acontecer era bonito sermos apanhados com o nosso trabalho de casa feito.