Minha gente, como têm passado? Bem, certamente. Espero que os cestos de uvas tenham rodado pesados pelas mãos de quem teve o saudável privilégio de os carregar, caíram umas águas e os ouriços despontam a bom ritmo. Bons prenúncios. A época de vindimar é sempre altura de fazer contas, neste novelo de ciclos em que se vai desenrolando a vida de cada um e de todos sem excepção. Poucas coisas há mais prazerosas do que colher os frutos. A alegria tão natural de alcançar o resultado final, intensificada pela noção de todo o árduo esforço por que se passou para tão revigorante fim, e isto aplica-se aos desafios por que passamos a todos os níveis. A importância das colheitas enquanto acto desde sempre inerente à condição humana constitui uma matéria presente em muitas vertentes, representações artísticas desde que o homem anda por cá, celebrações e festividades que cosem a matriz cultural de cada lugar ou por exemplo os infindáveis provérbios e parábolas que os homens souberam usar para se fazerem ouvir e perpetuar uma série infindável de úteis conselhos e saberes, e que vindos de há muito tempo se mantêm bem à tona da língua. Alguém escrevia há um par de dias que por mais que digamos em Janeiro que “ano novo, vida nova” e nos queiramos convencer de que uma nova fase recomeça, é em Setembro que verdadeiramente se entra em mais um ciclo, em mais uma temporada, depois das férias, depois do Verão, é o mês primeiro de mais uma etapa a enfrentar. Já não são propriamente as colheitas que durante toda a humanidade marcaram este virar do ano, mas uma série de outros factores que continuam a vincar essa mudança. Ainda a natureza, sempre a natureza, acima de tudo o mais. “São as águas de Setembro fechando o Verão”. Por isso, onde quer que vos encontreis, um bom recomeço e um bom novo despertar para mais uma temporada. Saúde!
Mas ainda não termino por aqui. Vou pegar na deixa adaptada de António Carlos Jobim e dar um pulo para o lado de lá do Oceano. Vou contar-vos uma história, partilhar algo convosco, afinal que piada tem andarmos por aqui se não partilharmos as coisas que vivemos e com as quais nos vamos cruzando. Há pouco tempo li um livro de um autor brasileiro que tenta explicar a origem de algumas palavras e expressões do português. As explicações dadas não são muito longas nem citam fontes, por isso nem sempre parecem muito fidedignas, mas é louvável a intenção do autor, escrita engraçada, boa leitura de Verão. O pulo do gato. Fábula originária de Minas Gerais, Sudeste brasileiro. Resumindo e por vezes citando: havia uma onça que vivia admirada com a agilidade do gato. Curiosa, resolveu pedir-lhe umas aulas. O gato aceitou ensiná-la. Um dia, achando que já havia aprendido tudo, a onça resolveu atacar e pegar o gato como refeição… mas o gato sumira. Dias depois, ao encontrá-lo, a onça perguntou: “pois é compadre, esse pulo você não me ensinou.” E o gato, muito astuto: “Pois é comadre, é ele que me mantém vivo!” Em jeito de moral da história depreende-se que nem sempre o chefe ensina tudo ao aprendiz, há que manter alguns segredos do ofício pois não se pode abrir o jogo completamente. Nem abrir o jogo todo nem abrir muito a guarda. Afinal quem nunca deu um pulo de gato? Ou quem nunca pulou que nem onça a pensar que o gato já não escapava? Outra leitura, a de que às vezes há coisas que convém manter meio encobertas, quanto menos pessoas souberem melhor. Lembro-me de uma praia sempre deserta onde só se chegava a muito custo, quase melhor por mar do que por terra, e que depois de ser capa de uma dessas revistas de viagens e coisas para fazer se inundou de gente e de lixo, segundo soube. Perdeu a piada para todos. São os pulos do gato. Coisas que acontecem aos vivos. Coisas que convém ficarem na manga. Coisas que se passam na língua portuguesa. É maravilhoso pertencer a uma mesma língua que nos pode contar histórias de vivências comuns, de gentes distantes que vivem lá longe onde o Outono começa em Março, e através da qual podemos trocar estas histórias que uns inventaram e outros não se lembraram de criar. Permuta e partilha de vivências e culturas como crianças a trocar autocolantes repetidos depois da escola. Lindo. (…) É uma ave no céu, é uma ave no chão, é um regato é uma fonte, é um pedaço de pão… São as águas de Março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração…pa padaba pa padaba pa…
O pulo do gato
Manuel João Pires