Manuel João Pires

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Somos todos velhos e doentes

Bons dias, meus caros. Aqui vamos nas sete semanas de quarentena com ordem para continuar. Nó górdio absoluto para ver se o dito deixa de fazer estragos. As escolas e grande parte dos serviços só devem reabrir em Abril. Agora as autoridades receiam mais os que vêm de fora do que os que estão dentro. Volte-face nesta autêntica série ou filme de co-produção mundial no qual todos somos actores e espectadores e em que, apesar de vencedor antecipado do melhor argumento original, todos torcemos para que a longa-metragem acabe quanto antes. Já sabem, seguir as recomendações das autoridades, ler o essencial (e oficial) e levar a vida com tranquilidade. Válido para todos pois o vírus não escolhe idades.

Tem havido uma injustiça nesta história do vírus que pretendo aqui abordar. Assim como com outras questões sociais que têm marcado os dias de hoje, deveríamos pensar em mobilizar-nos contra as ínúmeras vezes em que ao longo da novela coronavírus se disse com toda a naturalidade e até com um certo sentimento de alívio por entre conversas informais, debates com especialistas e especialistas em debates, a seguinte frase: “isto só mata é velhos e doentes”. Peço desculpa, queria ter dito aliás, “isto poderá ser mais crítico para pessoas de maior idade ou que tenham o sistema imunitário previamente debilitado”. Aos próprios visados, em nome dos restantes cidadãos portugueses, e do mundo em geral, gostaria de apresentar as minhas sinceras desculpas por esta desumanização em relação às vossas insignes pessoas e aos grupos sociais a que os caríssimos pertencem. Eu sei que estão habituados a que ninguém vos passe o mínimo cartucho. Também sei que já estão acostumados a ver o vosso nome vir à baila quando o assunto são vacinas e demais surtos de gripe. Mas desta vez têm sido, quanto muito, apenas números no meio disto tudo. Nem sequer vos procuram para uma entrevistazinha que seja à entrada de um centro de saúde nem na fila da farmácia. Mas vendo bem as coisas, é melhor ser um número do que não ser nada, tal como a atenção e consideração que a sociedade por norma vos dedica. Desde que o número seja maior que zero, claro. Creio, no entanto, que se vocês eventualmente fossem outro tipo de pessoas ou mesmo outro tipo de animais, talvez existisse um mínimo de sensibilidade para convosco. Se não, comparemos outras variáveis para analisar esta temática. Vejamos se teria o mesmo indiferente impacto: Não te preocupes, este vírus só mata sul-americanos que consideram Portugal um país esquisito por não conseguirem ter uma empregada em casa. Esquece, quem precisa de ter medo são as mulheres que vivem sozinhas e passam o tempo a pôr fotos de gatinhos maltratados no Facebook. Não, isto só te pode matar se tiveres o cabelo às cores e argolas no nariz. Não quero saber porque isto só é grave para os gatinhos das mulheres que vivem sozinhas. Nada disso, quem morreu até agora foram só gajos que participaram no festival da canção nos últimos anos. Estou tranquilo porque às vezes até lavo as mãos e eu li que 70% da malta que palmou costumava tirar fotos a fazer posições de ioga ou a comer saladas com pitaia, ruibarbo e cenas assim. Não perco tempo com o coronavírus porque quase todas as vítimas mortais foram infectadas através do seu podcast ou do canal no youtube. Podes dormir descansado porque quase todas as baixas foram de indivíduos que trabalhavam em espaços de coworking. Eu estou tranquilo porque eu não vejo televisão e isto só é potencialmente mortal para quem vê o telejornal. Eu não tenho receio porque só tem morrido quem frequenta festivais literários ou possui coelhinhos de estimação. A maior parte do pessoal apanha isso e cura-se a não ser que tenha tatuagens parolas e com cenas budistas. Eu estou na boa porque isto é como a SIDA, só dá nos mariconços. Realmente, não sei se alguma das frases anteriores seria passível de causar indignação em massa. Massa tenra, claro. Uma fervurita nas redes sociais e já está. Nunca passa disso, infelizmente. Bem, mas se acharmos que sim, é melhor pararmos um pouco para pensar como se sentirão as pessoas doentes ou com mais idade no meio disto tudo. É que estas pessoas são muitas, parecendo que não. E são também os nossos pais, avós, familiares, amigos e a comunidade em geral. Creio que deveria haver mais sensibilidade e consideração na maneira menosprezível como mencionamos estas pessoas na história do coronavírus. Até porque um dia seremos nós e não sei se vamos gostar de ouvir, nem se nos iremos sentir mais tranquilos por ver que a tranquilidade ou o disfarçar do nervoso miudinho dos outros passa por perceber que somos nós quem está na linha da frente para lerpar. Um pouco de consciência e bom senso não mata nem faz mal a ninguém. Apoveito pra deixar uma palavra de conterrâneo apreço a todas as gentes do nordeste com muitos anos de vivências e experiências acumuladas e àqueles a quem a saúde esteja de momento a pregar alguma partida. Força, minha gente! Estamos juntos nesta caminhada. Um grande e apertado abraço para todos vós!

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

 

Aqui o vírus deu positivo

Caros amigos, tenho de vos dizer em primeira mão que deu positivo. Quem tem acompanhado as palavras que aqui vou debitando sabe que tal como quase toda a China estou de quarentena. Desde 22 de Janeiro, precisamente. Eram para ser 15 dias mas já lá vão seis semanas. Mês e meio sem sair de casa a não ser para ir buscar compras à porta do condomínio. Entre a vizinhança há quem o faça apenas de máscara (obrigatória), e quem vá equipado de fato, luvas e óculos de proteção. Os elevadores têm caixas de lenços de papel, película a cobrir os botões e um constante cheiro a lixívia que faz uma pessoa agradecer por estar de máscara. As encomendas e entregas ficam lá fora, a entrada do bairro vedada a não-moradores, mas as portas dos prédios encontram-se todas abertas de par em par para ninguém ter de tocar num puxador que seja. Os funcionários registaram as pessoas, há uma espécie de “cartão da quarentena” que inclui há quanto tempo uma pessoa está em casa e os sítios por onde andou antes disso. Volta e meia vêm bater à porta para medir a temperatura. Ou vai ou racha. As coisas estão timidamente a voltar à normalidade. As pessoas começam a perder o receio e até já começam a partilhar o mesmo elevador em vez de ficarem à espera do próximo para irem sozinhas. Os restaurantes estão a reabrir, mas ouvi dizer que cheios de regras, máscaras, distância de segurança entre mesas, parece que até estão a pedir o tal “cartão de quarentena” que eu referi. A malta dos pequenos negócios está com a corda ao pescoço, tem de voltar ao activo sim ou sim. Na sociedade chinesa há aspectos que nestas alturas são particularmente úteis, como a disciplina e a perseverança ou até a tecnologia que permite não ser necessária mais do que uma aplicação tipo whatsapp para pagar e receber em casa o que quer que seja. No entanto, apesar da prisão domiciliária, do cataclismo de informação e deste modo Transtorno Obsessivo Compulsivo de levar o quotidiano, deu positivo. Há muita coisa que ainda não se conhece e o que se vai sabendo varia entre o oito e o oitenta. Aí em Portugal acabou de chegar, demorou mas não foi por falta de força de vontade vossa. Vocês bem o evocaram, temeram-no, mas reversamente ansiavam a sua chegada como quem pedia de uma vez por todas “ponha, ponha, ponha”. Deve ter sido o único país que colecionou avidamente a suspeição de não-casos, mas que agora já pode temer genuinamente e não mais sentir-se excluído de participar nesta trama mundial. A Directora Geral da Saúde fala do tema olhos nos olhos com a maior clareza e transparência, sem ponta de alarmismo ou agitação, mas ninguém se dá por convencido, muito menos satisfeito. Escava-se a catástrofe conspirativa e o encoberto apocalipse. A comunicação social só quer saber quando chegará o juízo do tal “um milhão” e com ele a “semana do pico” final. O nosso negativismo, a nossa capacidade e imaginação para sofrer por antecipação é patológica. Portugalógica. Não há mindfulness nem terapeuta que nos possa salvar. Provavelmente não será nada de especial, mas sofremos, atormentamo-nos, antevemos o maior dos calvários prestes a abater-se implacável sobre a humanidade. Os asiáticos serenos na sua forma contida de aceitarem o que a vida lhes traz, os italianos na rua, beijoqueiros como sempre e os portugueses a desesperar, martelando forte as tábuas dos seus caixões sem tirar os olhos aflitos dos ecrãs. No início eram os chineses e a cerveja mexicana. Os sorrisos amareleceram de medo. Agora é o pânico, o princípio do fim, os americanos e os chineses, isto está lá tudo nas sagradas escrituras, ou nos clássicos de ficção científica. Visto daqui parecem os olhos de uma criança em dia de levar a pica. Fiquem descansados, não sofram, vão ver que é só um beliscão. Depois disto o papá compra um gelado.

A sério, todo esse excesso de informassões e emoções só atrapalha, sobretudo quando se está no olho do furacão. O que há a fazer é cerrar fileiras e preparar para o que der e vier. Ainda que por aí, volvido tanto tempo, não creio que venha nada de mais. No fundo é muito simples, meus caros. Por experiência própria vos digo que tudo o que devem fazer são apenas três coisas: confiar no trabalho das autoridades; seguir à risca as normas de prevenção recomendadas; e levar a vida normal e tranquilamente evitando ao máximo estar a bater na tecla do vírus. Certo, eu também sou português e sei que confiar em autoridades e seguir normas à risca pode ser pedir demasiado e que o bombardeamento sobre o tema é ininterrupto e surge de todas as frentes. Mas vocês conseguem, acreditem. É simples e é daquelas coisas que um a um e multiplicadas por muitos acabam por resultar numa vitória para todos. Espera, ganda frase que saiu daqui. Até vos dou uns segundos para a voltarem a ler. Caros amigos do nordeste, parece que acabámos de descobrir o vosso coronavírus coach. Só precisam de ter calma, estou cá para vos motivar. Eu também já tive medo e pânico e bebia em excesso todas as notícias que havia para beber sobre o assunto. Dei por mim no fundo a emborcar às escondidas shots de notícias do Correio da Manhã. Mas após seis semanas de clausura sou um homem com muito mais falta de vitamina D, muito mais forte a nível de confeção de bolos e também muito mais confiante em termos de praticar running no corredor. O deu positivo era mesmo sobre isto. Calma, minha mãe. Queria ter-vos falado destas seis semanas inesquecíveis que apesar de duras, num bairro sitiado que embora do tamanho para aí de uma vila portuguesa – e com mais gente que muitas cidades – chegou a ter 12 casos (oficiais), num tempo em que ainda pouco ou nada se sabia. Foi puxado, mas está a ser positivo como história de resiliência, como história desta pequena família, das coisas que marcam uma vida e que e nos dão uma grande força para a caminhada. Era disso que vos queria falar hoje, mas fica para a próxima porque o vírus apareceu aí a meio da escrita e o texto tomou outro caminho. É boa altura para puxar por nós e remarmos na mesma direção. É a parte boa desta história, conhecermos todas as forças que temos, percebermos que unidos podemos vencer tudo. Usa-se muito “sair da zona de conforto” por tudo e por nada. Mas acreditem que é bem possível sair da zona de conforto sem sequer sair de casa. Tem de dar positivo, minha gente, não há outra hipótese. Força, Portugal.

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

 

A voz do povo

Como nos filmes os bons são os primeiros a cair. Não há boa trama que não deixe os maus escaparem a todos os tiros da chuva até caírem no final com a maior apoteose possível. Os outros perecem por entre cenas prematuras e secundárias. Há duas semanas faleceu o primeiro médico a denunciar a existência do novo vírus. Nessa altura, fins de Dezembro, o médico oftalmologista, Dr. Li Wenliang, 34 anos, desconfiou do resultado das análises de um doente e partilhou num grupo de wechat com outros médicos do mesmo hospital que aquela situação poderia ter dimensões bem preocupantes. Colocou algo do género “resultados estranhos, será que o SARS ainda anda por aí?” e aconselhou logo a pôr de quarentena esses primeiros doentes infectados. No dia seguinte foi prontamente visitado e advertido pelas autoridades por estar a incorrer no crime de difundir rumores e inverdades potencialmente alarmistas. Com a mesma prontidão com que lhe foram bater à porta, retractou-se e pediu desculpa em nome dos bons costumes. Por esses mesmos dias apanhou o vírus talvez porque ainda não houvesse a informação nem os cuidados que se adoptam agora. Ao longo de um mês lutou estoicamente afirmando sempre que iria recuperar para pôr mãos à obra e tratar todas os doentes e todas as vidas que tinha pela frente. No dia 6 de Fevereiro perdeu a batalha. Paz à sua alma. Basicamente a sinopse do filme é esta. Mas a sinopse revela pouco sobre a sinuosidade do argumento. O enredo tem partes fáceis de perceber, as autoridades de Wuhan tinham consciência deste problema desde finais de Dezembro, mas só no dia 22 de janeiro é que impuseram o nível de emergência, ao mesmo tempo que quase todas as províncias da China. Ou seja, só quando todo o país e já o mundo sabiam do problema e após tanta gente ter andado a circular livremente sem qualquer restrição. Pensavam que iam dar conta do recado, mas só quando viram que já não tinham mão na coisa é que decidiram chamar por socorro. Tipo aquela gente que afirma hoje cozinho eu, toda confiante, mas depois acaba invariavelmente por pedir ajuda de ombros encolhidos quando o bacalhau com natas começa a parecer-se com uma grande massa de suco gástrico. Logo aqui, que se percebia que a malha iria ser forte mas ainda não se sabiam as linhas com que se cosia, a população chinesa ficou com um pó daqueles aos governadores de Wuhan (capital) e de Hubei (província). Acontece que na altura ainda nem se conhecia a história do Dr. Li e do facto de ter avisado os colegas para a transmissão pessoa a pessoa do vírus. Se lhe tivessem dado ouvidos talvez não tivessemos chegados a este ponto, mas na altura a primeiríssima medida preventiva foi fazê-lo assinar um papel na polícia a admitir que tinha errado nas declarações e a pedir desculpas públicas por isso. É curioso ver nas redes sociais a onda de comentários que assinala esta triste perda. Numa situação destas o pessoal estica um bocado a corda. As pessoas estão a unir grandes esforços, tanto as que estão em casa como as que têm de estar no terreno, o povo tem sido inexcedível, cumprindo responsável e diligentemente o seu papel, quando do outro lado se viu uma borratada de todo o tamanho. Uma borratada com tentativas de emendas piores que o soneto em si e que levou um mês até entrar nos eixos. Nestas alturas a língua e dos dedos acabam por ficar um pouco mais soltos. Quem souber ler, lê que a verdade foi silenciada, colocam-se poemas de Bertold Bretch e de autores soviéticos, escrevem-se cartas de despedida onde se lê a palavra mártir, sussurram-se novelas com personagens principais e estórias de nepotismo e inoperância de umas quantas instituições que revelaram toda a sua improficuidade quando delas foi realmente necessário. Há até quem sugira que este dia fique consagrado como o dia do doutor Li.

Umas vezes demora, outras nem por isso, mas o tempo gosta de trazer a razão à tona de água. Mesmo que a razão morra ao chegar à praia e nada altere, nada acrescentando aos dias do presente, a história não costuma esquecer-se de pequenos detalhes nem de grandes homens. Esta é uma das partes deste filme ainda em rodagem que interessa reter. Já vi palavras da moda como denunciante ou whistleblower associada ao Dr. Li, mas são apodos que não lhe assentam mesmo nada bem. Ele não era alguém que vivia escondido atrás de um computador para revelar (a troco de algo) os podres de que o mundo é feito. Era um médico que referiu a verdade e que a defendeu nos termos em que nalguns sítios deste mundo é possível defendê-la. Um profissional que cumpriu a sua deontologia e que primeiramente alertou para os perigos que estavam para vir. Um homem atingido pelos ingratos ossos do ofício que ansiava vivamente a hora de saltar da cama para poder voltar a curar pessoas com as suas próprias mãos. Nem mais, nem menos. Chamar-lhe denunciante é politizá-lo, é tirar-lhe o que o seu curto mas significativo legado tem de melhor, toda a sua humanidade. E quem está há mais de um mês confinado em casa no meio de um ping-pong de informação e desinformação ou lá fora a trabalhar arduamente para subjugar esta batalha sente de alguma forma que perdeu um dos seus. Chamar-lhe denunciante é como chamar menino a um homem com a fibra e com os valores que poucos conseguem trazer a este mundo. Que estas palavras recordem a melhor parte deste filme e que registem a admiração pelo exemplo deste jovem médico. Amigo Li, onde quer que estejas, que nunca percas a força e a motivação para poderes continuar a ajudar pessoas e a salvar todas vidas que não pudeste salvar aqui. E já agora que possas ter um pouco mais de voz do que a que tiveste por cá. Um forte abraço.

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

Ponto da situação

Boas tardes, boa gente. Cá estamos, continua a clausura. A China está toda de quarentena e as pessoas saem o mínimo possível. O povo tem sido inexcedível, desde os funcionáros dos condomínios, polícias, pessoal médico, até aos professores que estão a dar aulas online. Por todo o país surgiram casos de vírus, espera-se que estagnem ou diminuam. Estamos há três semanas em casa, ir à porta do condomínio e voltar quando há que ir buscar água ou comida. E mesmo assim ir de máscara e de luvas. Sorte que aqui comprar e pagar coisas pela internet é particularmnete fácil, chega tudo a casa num par de minutos. Mas a ordem é de recolhimento quanto possível. Encontramo-nos numa fase que se pode chamar coloquialmente de “vai ou racha”. O futuro ninguém adivinha, mas a verdade é que o povo está a fazer um grande sacrifício, nestas alturas a disciplina e a pertinácia são valores colectivos que dão bastante jeito. Toda a gente está a trabalhar arduamente. Neste momento escolas, bancos, e outros serviços, estão fechados ou a trabalhar online; os autocarros não circulam, muitos restaurantes e supermercados também fechados. Estamos esperançosos que esta contenda seja positiva, que a fase mais crítica do recolhimento passe rápido e que a vida volte à normalidade. Mais do que isto o povo chinês não pode fazer. O ponto da situação é este, não vale a pena avolumar as coisas nem criar mais celeuma aí do que aqui como tem sido hábito. Repare-se no exemplo do que aconteceu em Madrid há poucos dias com o avião que teve problemas na descolagem e andou horas pelas cercanias de Madrid voando a baixa altitude, aterrando depois sem qualquer problema. Os passageiros contaram que o clima dentro do avião era de serenidade e de confiança na tripulação. Admitiram, no entanto, que à medida que os minutos passavam começou a crescer a apreensão e a ansiedade, não pelo que se passava internamente, mas devido a terem contacto com as mensagens de pânico de familiares e amigos juntamente com as mil e uma notícias que se iam conjecturando, ao mesmo tempo que os meios de comunicação punham os olhos furtivos na pista de aterragem à espera da presa. Este episódio é demonstrativo da influência na forma como actualmente interpretamos e agimos em situações que possam envolver perigo e em que somos nós quem se encontra no epicentro desse enredo. Para quem está por dentro é aflição, para os outros é pouco mais do que entretenimento. O medo da situação que enfrentamos nem provém da situação em si mas de toda a enxurrada de informação não filtrada que é derramada em tempo mais que real. Não olhamos para o momento que estamos a atravessar mas para o que se diz dele, o que se supõe dele, o que (mal) se pode prever, ateando muitas vezes emoções e reações que talvez a situação por si nem justifique. Esta nova forma de nós estarmos a ver o que estamos a viver no telemóvel, a saber daquilo por que estamos a passar por quem está do outro lado do mundo num contexto completamente diferente, a ver como os outros interpretam e vivenciam aquilo que só nós próprios experienciamos acaba por ter uma influência indelével no decorrer da própria situação. Por isso, o termo reality show está desactualizado. Nos reality shows por norma não existe uma interação, há alguém que está a ser observado e alguém que oberva e se regozija com isso. O filme Truman Show, com o Jim Carrey, é o paradigma dessa situação. Todo o mundo assistia ao seu dia-a-dia e sabia que a sua vida era um big brother do princípio ao fim, menos o próprio. Com o triunfo das redes sociais o fenómeno social é outro. Inclusive, diferente do que era somente há 10 ou 20 anos. Quem é alvo deste foco, não só tem perfeita noção disso como vai recolher a informação dos que estão a ver, influenciando os seus próprios passos.

É uma interação um pouco intrincada mas muito clara para quem a vive na pele. Até há bem pouco tempo cada situação ia-se percebendo aos poucos, levava semanas, meses, talvez anos a compreender os contornos do que realmente acontecia. Mas agora não há tempo para isso. A informação toda junta é como se fosse uma onda gigante da Nazaré e nós aqueles surfistas lá dentro a cair aos trambolhões até perdermos os sentidos e sermos recolhidos de moto de água para o areal. Despeja-se tudo, o que talvez seja verdade, o que talvez não, o que não interessa a ninguém, os estudos científicos devem ter sido estudados, os especialistas do que ainda não se conhece, os que têm um primo que jura saber, mais o que já deu nos filmes e os que ainda estão por estrear. Tudo actualizado ao segundo, uma coisa e o seu contrário sem ter tempo para se acabar de ler uma nem outra. Ufa, tenham calma, amigos. A vida são dois dias e o entrudo está à porta. Um abraço!

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

Carlos Fino, RTP, Bagdad

Boas tardes, minha gente. Não poderia deixar de escrever sobre o tema do momento estando eu a vivê-lo ao vivo. Não é que um vírus deste tipo seja uma coisa de somenos, do género “nada que duas copadas de aguardente não resolvam” como diriam alguns antigos, mas há que parar com algum excesso de informação e, sobretudo, de falsa informação que não ajuda nada. Sei que é difícil pedir isso a um estado minimamente democrático do século XXI, mas poderíamos tentar.  Há poucos dias estávamos a antever a 3.ª grande guerra com uma ansiedade galopante, mas no espaço de um dia a coisa arrefeceu inesperadamente, agora é a população mundial que já se começou a extinguir inexoravelmente através de um vírus misterioso. Sei que sofremos cada vez mais de pânico e de catastrofismo generalizado como se num devir Orwelliano ruminemos um constante sentimento de que a coisa está prestes a acabar mal a qualquer súbito momento, ou para utilizar uma expressão um pouco mais contemporânea, vivemos num espírito CMTV em que temos pavor do apocalipse  mas queremos conhecer as suas rotinas, o que é as suas ex-mulheres diziam dele, qual a opinião que a clientela da pastelaria onde ele toma o pequeno-almoço têm acerca do indivíduo. Mistura estranha de medo e perversão, sempre com o “direto” no cantinho do ecrã. You are watching Big Bro. Enfim, a distância amedontra como dizia o cônsul de Portugal em Cantão há dias. Ponto da situação: Não é fácil. A China está parada porque é o ano novo chinês, tal como está todos os anos, porque é a única altura em que este país pára realmente – durante 15 dias. Esta semana voltam a abrir as fábricas mais necessárias para a situação, mas a maior parte dos serviços só abrem daqui a duas ou três semanas, após, como se espera, o pico do vírus atingir o seu auge. Além disso, as pessoas encontram-se em casa, reduzindo as saídas ao mínimo, razões pelas quais as cidades se encontram com muito pouco movimento, praticamente desertas. Em termos de habitação, as cidades chinesas mais modernas são formadas, sobretudo, por condomínios nos quais o acesso está bastante controlado a não residentes e são tomadas medidas preventivas, tal como está a acontecer em supermercados e centros comerciais. Existe a obrigatoriedade de usar máscara quando se sai à rua e as pessoas estão a ser avisadas diariamente, nas redes sociais, das medidas de prevenção que devem praticar, usar máscara, lavar as mãos com frequência, usar desinfetantes, evitar multidões e contacto pessoal, etc. Com base no que vejo nesta cidade, e sei que está a ser o padrão um pouco por toda a China, parece difícil o vírus espalhar-se descontroladamente porque as pessoas estão conscientes do que têm a fazer para que isso não aconteça e porque, como disse, as cidades ainda não começaram a carburar depois das férias, algo que está a ser adiado pelas autoridades durante algumas semanas. É certo que falta perceber melhor alguns dados sobre este vírus, o seu verdadeiro grau de contágio, mas espera-se efectivamente que se possa, pelo menos, estagnar a situação até ao retorno à normalidade. Acreditemos que sim, porque a bem da verdade, este país com quase 20% da população mundial está a trabalhar diligente e organizadamente para combater esta situação. Pela internet compram-se alimentos com facilidade e celeridade, quanto às encomendas de máscaras as entregas estão a demorar algumas semanas, mas as fábricas deste produto voltaram ao trabalho mais cedo. Assim como aqueles atentados que levam a vida de centenas pessoas em países a que ninguém quer passar cartucho, isto é, situações que aparentemente nos passam ao lado, vivem-se de forma totalmente diferente quando se está por dentro. Por isso, devemos mostrar algum respeito, alguma contenção, pelo menos. Não é fácil estar a viver uma situação desta natureza, sem sair de casa ou do bairro, com indefinição e algum receio natural. Mas estamos positivos e confiantes, estamos com a China, acreditamos que o homem é capaz de resolver os problemas que cria. Assim é o mundo, assim são as vidas de cada um de nós. Estamos cá para o que der e vier com informação, consciencialização e precaução. Troçar, veicular notícias infundadas e catastróficas, não contribui de modo nenhum. Abraço!

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

 

Velho do Restolho

Boas tardes, minha gente. Neste momento Bragança está nas bocas do povo. É triste porque todos sabemos como estas notícias negativas se colam à imagem de uma cidade. Claro que estas coisas também acontecem no coração de Lisboa e com muito mais frequência. O problema é que Lisboa aparece nas notícias por tudo e por nada. Bragança não. E ninguém está para ver a forma como os estudantes africanos têm feito parte da cidade, trazendo vida e cultura, integrando-se e moldando a comunidade. Tudo se reduz, preconceptualiza. Francamente, não parece que a questão racial tenha estado no centro da questão. Mas é natural que surja essa inevitável leitura. O que não é tão natural é uma geração à qual não falta nada, que não precisou de lutar por nada, mas que continua a reagir com a mesma futilidade que gerações anteriores. Tanta formação, tanto conhecimento, tanta app, para sermos tão ou mais boçais que os que nos antecederam. Tanta aparente mudança nas últimas décadas, e uma malvadez, uma animalidade incontida e voraz a crescer perversamente. Que vergonha. Vergonha de nós enquanto cidadãos, enquanto grupo social. Vergonha de nós que não aprendemos nada com o tempo, nem com a história, nem com coisa nenhuma. Nos pós-guerras, nos pós-25 de Abril, nos pós-Europa, tanta coisa que era para “sempre” e que “nunca mais” e olha para nós às voltas, diluídos, a tropeçar nos mesmos buracos, às portas de tudo outra vez. Da violência, da segregação, das guerras, da miséria. Um mundo maioritariamente sub-desenvolvido e uma minoria assente na futilidade, distraída, atenta não ao conteúdo das coisas mas perdida nos fait-divers, na superficialidade de tudo, no parecer, espreitando a vida dos outros, indignando-se por entre caixas de comentários. Não discutimos assuntos, discutimos o que disse A ou B; não debatemos ciência, enumeramos “estudos” sobre parvoíces; não praticamos a interacção, o entendimento, o voluntariado, colocamos “posts”. Mas discutimos futebol, visceralmente. Vivemos passivos, de ombros encolhidos, desligados uns dos outros. Devoramos séries e documentários, fazemos viagens para longe, vamos onde toda a gente já foi, mas não procuramos conhecer, interagir, não aprendemos nada que não esteja nas parangonas do Google. Tudo é para fazer ver aos outros. Não nos mobilizamos, não fazemos nada porque tem de ser, porque valores mais altos se levantam. Não temos ideais a que nos agarrar, coisas por fazer, que defender. Sobram umas coisas importadas e meio postiças guardadas no frigorífico das redes sociais. Os ideais foram desaparecendo, escasseando ao longo das últimas décadas. Já há 30 anos os Ban desesperavam por um. Já há de tudo em todo o lado. E nem precisamos de lá ir porque nos trazem a casa. Já estamos na CEE. Teoricamente já temos a paz, o pão, habitação, saúde e educação. Na prática não sei, não importa. Vamos estar sempre a queixar-nos de qualquer das formas. Isto é uma vergonha, diz-se na assembleia, nas ruas e nos hospitais. Lá fora é que é bom! Ninguém nos bate no quentinho das pastelarias e dos centros comerciais. Que mais queremos? Não te chateies, amigo, daqui ao Verão é um pulinho. E este Verão há futebol. O FMI já veio e reveio, o José Mário Branco já foi. Pois é, quartel em Abrantes e quem se lixa é o je. Portugal nação valente e moral: Viva o feminismo, o ambiente e os animaizinhos de estimação! Foi-se o ultramar, mas somos ricos em sol e em lítio. Abaixo a exploração do lítio! Abaixo as barragens! Vou andando que tenho de ir meter o euromilhões. Deixa passar o tuk-tuk. This is ginjinha in chocolate glass. Very good e just one euro, amigo. Bem-vindos os que cá vêm para se reformar! O problema é quem tem de levar isto para frente, é só parasitas. Esta semana estou de baixa, era um maço de tabaco e duas raspadinhas, se faz favor. Aqui em Macau emigração altamente qualificada, advogados, engenheiros e arquitectos, iguais aos portugueses analfabetos e terceiro-mundistas das bidonvilles francesas de há 60 anos. Sem tirar nem pôr. Casais portugueses falam em inglês para os filhos, “o meu filho não entende português” dizem ensoberbados de parolo orgulho português. Negam uma língua a um filho porque é chic (ser burgesso) como os dos bidonvilles também negavam porque era tudo menos chique falar uma língua de gente burgessa, coitados. Pobre povo, nação vãmente. Memória curta, perna longa. Não aprendemos nada, não evoluímos nada. Só mudamos a fatiota. A roupa do Zé Povinho é da H&M. Ai Portugal, não ensinemos aos nossos filhos alguma coisa que valha a pena, alguma coisa que vá para além do superficial. Não falemos do tempo, das histórias, de querer conhecer e interagir com todos, de nutrir empatias e gerir emoções, lutar contra os avassaladores ventos de indiferença e de futilidade. O que será dos tempos vindouros? Chamai-me Velho do Restolho. Chamai-me o que vos der na gana. “Nomes com quem se o povo néscio engana!”.

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

Conversa da Greta

Ora boas tardes. Parece que o frio chegou em força para esses lados. Essas lareiras já devem chispar: grandes lareiras com boa madeira de carvalho, freixo, tão bom. Bem, talvez não. Ligue-se o aquecimento central. E daí, fiquemo-nos por um aquecedor elétrico ou a gás para aquecer as panturrilhas e pôr as meias a secar. Mas em todo o caso, o ambiente não deixa de pagar. Uma boa manta é capaz de chegar. Em casa da minha avó havia umas mantas daquelas com umas barbas que até picavam, pesadas, uma pessoa mal se conseguia mexer debaixo delas. Memorabilia transmontana. Ou então chamam-se outra vez os Eléctricos de Gimonde, para nos trazerem as brasas a casa através de um meio de transporte amigo do ambiente, embora potencialmente teimoso. Amigos, o que precisamos não é de Conversas da Greta. O que precisamos é de inconsciência ambiental. Reparem, em meados dos anos 60, em Portugal, país transbordante de felicidade fruto dos invejáveis índices de desenvolvimento e de escolaridade, as pessoas estavam consciente e perspicazmente providas de inconsciência ambiental. Por exemplo, nesses tempos, a minha mãe enquanto estudante do Magistério de Bragança, comprava as brasas aos Eléctricos de Gimonde para aquecer a casa e a caldeira de água, estudava romanticamente à luz da vela e não poucas vezes se locomovia a energia asinina. Provavelmente até teria um penico amigo do ambiente debaixo da cama. Não havia plásticos, nem luz, nem água quente. Coisas que no fundo só trazem mau ambiente. Existia uma clara inconsciência ambiental que é imperativo reproduzir. E para o fazermos necessitamos de fazer algo muito simples: parar agora neste preciso momento e começar já a retroceder como se estivessemos dentro de um leitor de VHS. Mas com cuidado para não puxarmos muito a cassete e não irmos parar à Idade Média. Teria as suas vantagens em termos do que ambientalmente se pouparia em talheres, calças à boca de sino e Citroens boca de sapo, mas correríamos o risco de ao ir parar ao medievo levarmos com uma espadachada nas costelas por dá cá aquela palha ou de os médicos usarem aquela técnica de sangria para nos tirarem qualquer enfermidade do corpo. É de inconsciência que precisamos, inconsciência ambiental e inconsciência do mundo em geral. Retroceder quanto muito até ali a uma altura onde já houvesse camas com colchões de molas (os de palha ganhavam muito percevejo e davam cabo das costas) e onde houvesse televisão para apreciar as Conversas em Família e o Festival RTP da Canção. Com jeito poderíamos deixar uma porta entreaberta, ou até um túnel com uma motinha (amiga do ambiente) como aquela que o mexicano usou para se escapulir da prisão, de modo a voltarmos a marcar presença no presente em determinado dia da semana. Por exemplo, aos domingos. Quem quisesse poderia ficar lá atrás a ter um domingo com missa de manhã, futebol à tarde e um passeio na Feira Popular ao fim do dia e quem lhe apetecesse poderia vir ao presente actualizar o Instagram, comer um hamburguer amigo do ambiente e beber uma Coca-Cola BFF do ambiente para atenuar a ressaca. Poderia ainda passar pelo IKEA para comprar um sofá-cama, de forma a dar guarida àqueles que lá atrás já se teriam lembrado de criar um sistema de partilha de quartos para a malta que andasse a viajar e a conhecer mundo de Catamarã, ou para os mais radicais, viajantes de barco a remos ou mesmo através da ainda mais amiga do ambiente, jangada.

Era desta abordagem ao ambiente que o mundo necessitava. Uma consciência que não se preocupasse com o ambiente das redes sociais nem com o ambiente dos ideais da moda. Uma consciência que olhasse para além da elite europeia e de um par de países mais, ou seja, uma consciência que fizesse entrar no diálogo deste tema o restante 90% da população mundial. Os mais afectados por estas questões. Aliás, podemos começar já por dizer aos largos milhões de pessoas de África às Américas, da Ásia a alguma Europa para ficarem onde estão,  #Amisériaéonewchic. Explicar-lhes para deixarem de sonhar com esses luxos poluidores e inimigos do ambiente para as suas famílias, que a Black Friday afinal é uma farsa, a maior Capital do Natal da Europa é só lama e esferovite, e que não há nada mais trendy do que um balde velho e meio furado. Em relação à menina Greta, é de louvar a sua posição e o seu discurso, apesar de bastante wikipediano e de certa forma natural para uma jovem da classe média-alta de um país desenvolvido com fácil acesso à informação. Ao ler as suas palavras creio que existem milhares de jovens portugueses que seriam tão ou mais capazes de defender semelhante discurso e também de assumir este papel, desde que com a devida entourage. Mas, já me esquecia, tudo o que os nossos alunos aprendem nas escolas é a afiambrar nos professores e a fazer vídeos com o telemóvel. Não servem para mais nada. Um abraço e não estraguem o ambiente.

 

Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

 

Com Cidadãos

Caríssimos, a jornada da castanha já vai findada. Parece que foi bom ano, boas notícias para o Nordeste. Um abraço a todos os que dobraram as costas e picaram os dedos nessa labuta que me é familiar. A todos vós que dais o corpo a esta causa e vendeis a castanha a um euro o quilo para chegar aos supermercados quatro ou cinco vezes mais cara, o meu sentido respeito pelo vosso trabalho. Do modo como esta introdução soou talvez faltasse aqui um “apanhadores de castanhas de todo o mundo trasmontano, uni-vos e fazei (mais) cooperativas para não serdes explorados pelo capital”. Por falar em labuta, em coisas que me são familiares e às quais faço questão de prestar homenagem, hoje vou falar de auxiliares de acção médica. Enquadrando, quando tinha pouco mais de 20 anos e saí da universidade, trabalhei em Lisboa na área da formação profissional, onde dei aulas e privei com diversos tipos de instituições. Trabalhei com o pessoal não-médico (não sei se este epíteto está bem conseguido) dos maiores hospitais de Lisboa. Adquiri uma admiração muito grande por toda esta gente trabalhadora, sobretudo a do IPO. Pessoas que trabalham horas a fio a tratar de outras pessoas em estados vulnerabilíssimos que tornam estas últimas meigas, simpáticas, mas também mal-educadas, execráveis ou violentas. Pessoas que lidam com a morte numa base quase diária. E que têm de o fazer com naturalidade em prol da sua própria saúde. Pessoas com um humor peculiar, um humor contra a morte (binómio de que o Ricardo Araújo Pereira fala com frequência). Pessoas pais e mães de família que têm de ser um pouco de tudo, desde médicos a psicólogos, de confidentes a amigos, muitas vezes a única companhia da solidão e do abandono. Pessoas sem terem propriamente formação para isso, apenas a inigualável formação que a vida dá. Pessoas que para sustentar um pouco melhor a família fazem turnos sobre turnos. Pessoas que se levantam de noite, que passam pela casa vazia de algum velho para lhe prestar cuidados, depois por uma clínica para fazer umas horas e acabam o dia a cumprir o turno no hospital. Mal dormem, mal veem os filhos. A roda-viva nunca pára de rodar e mesmo juntando tudo isso ganham uns troquitos que não são nada por aí além. Pessoas cujo dia-a-dia é lidar com os estados mais extremos e debilitados a que o ser humano pode estar sujeito. Pessoas que fazem um trabalho que ninguém inveja. Pessoas trabalhadoras, cansadas, mas que esboçam sorrisos. Cansadas, mas com histórias de vida. Pessoas que ganham o ordenado mínimo. Num mundo perfeito far-se-ia justiça, numa terra dos sonhos, na do Jorge Palma ou noutra qualquer, o salário destas pessoas nunca se poderia cingir ao mínimo. Pessoas que não fazem parte de hashtags nem do que se discute na Assembleia ou noutro lado qualquer. Pessoas carregadoras de piano, como no futebol, que não se dão por elas mas sem as quais a engrenagem não funciona. Classe trabalhadora discreta, no fim da fila, quase sem voz, quase sem existir.

Em muitos momentos recordo estas pessoas, como faziam, as histórias que me contavam, a força que transpareciam, os seus exemplos. Eu, naquele tempo em casa dos papás, bebia assim ao vivo o que é o meu país e o que são as verdadeiras pessoas que o compõem e no qual se alicerça. Por entre o cheiro a hospital aprendi muito sobre a vida. Creio que não faria mal aos nossos jovens conhecerem estas pessoas, contactarem com estas realidades. Nem aos nossos políticos, nem às pessoas que se creem muito pela futilidade de um título ou de um canudo. Não faria mal a ninguém. Aproveito este modesto espaço de antena para endereçar a todos os auxiliares de acção médica o meu respeito pela vossa profissão, a minha perene admiração pelo vosso exemplo. Sinónimo de trabalho, de perseverança, de como é feita a vida crua das pessoas comuns. Como cidadão, obrigado.

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

Portugal a opinar

Meus caros, como têm passado? A castanha a aproximar-se, uma época especial para o Nordeste. Força! Aproveito o resultado das eleições para opinar Portugal. Opinar a partir da Ásia. Opinar de fora. Portugal país de opiniões e opinadores sobre tudo e todas as coisas. As nossas figuras, as nossas referências, os nossos líderes não são empresários, construtores ou investidores. Não são médicos, advogados ou cientistas (pelo menos enquanto tal) nem ninguém particularmente destacável da classe operária. As nossas figuras são pessoas que discorrem opiniões, que sobre qualquer tema têm muito a dizer, sempre prontos a opinar, nobre “bela-arte” portuguesa. Dos partidos que elegeram deputados pela primeira vez a maior parte destes são famigerados opinadores e ninguém sabe dizer ou medir bem o que fazem para além disso. O nosso Exmº Presidente da República conquistou o cargo, principalmente, pelo lugar de opinador-mor do reino que ocupou durante anos a fio. Em todas as áreas, algumas citadas anteriormente, mas também músicos, desportistas, humoristas, etc., muitos são mais conhecidos pela qualidade ou quantidade enquanto opinadores do que propriamente pela sua profissão original. A mestria em desempenhar este papel é um passo fundamental para diversos voos, como se pode verificar cada vez mais claramente através dos resultados eleitorais. Até mesmo aquele clássico de escalada política sob a asa de padrinhos, sem nunca se ter desempenhado nenhuma outra função digna de registo, tipo Passos Coelho, está em desuso. Hoje em dia a opinião pura espalhada pelas redes sociais e sobretudo se alicerçada num assento fixo na televisão (jornal ou rádio) para potenciar o alcance público é o melhor dos trampolins, mais próximo, interpessoal e independente. Lembro-me de estar há uns anos em Guangzhou num mega-restaurante de quatro andares que tinha começado por ser uma tasca de um par de mesas e após 20 anos se tornara um dos melhores restaurantes da cidade. O dono tinha sido recentemente chamado para cumprir um cargo de supervisão ou direcção dessa província (80 milhoes de pessoas) na área da restauração. Os japoneses presentes adiantaram que esse tipo de procedimentos também são comuns no Japão. Primeiro as pessoas destacam-se na sua profissão e depois são chamadas a cumprir cargos directivos relacionados com a sua área. Em Portugal, salvo parcas excepções, a grande função a desempenhar para almejar cargos de poder é essencialmente opinar, falar, escrever. Pouco mais é exigível. Aliás, que competências conhecemos dos nossos políticos para além de os ouvirmos falar? Neste âmbito pode-se perfeitamente chegar a Ministro da Agricultura sem saber nada por aí além do assunto, basta saber semear, regar e adubar opiniões. Lembro-me de há uns tempos ouvir um dos grandes opinadores deste país, Daniel Oliveira, repetir várias vezes num debate “pois, eu já escrevi sobre isso”, eu “estou farto de escrever sobre isso”. Como se escrever fosse sequer mexer uma palha para tratar de um assunto. O que na verdade é só carregar nas teclas de um computador ou abrir a boca à frente de uma câmara, em Portugal já é resolver e fazer muito. Pelo menos tem muto mais valor e reconhecimento. Nós portugueses preferimos o falar ou escrever ao agir ou resolver: estamos sempre com o “vês, eu disse-te”, “eu já sabia que ia ser assim”, “eu já te tinha dito isso”. Somos do opinar como se as coisas se resolvessem assim, como se as coisas fossem de facto mudar substancialmente apenas por isso. Estamos sempre todos aqui, deste lado, na expectativa de que as coisas aconteçam e de que alguém faça alguma coisa para logo desatar a escrever ou a falar disso. Dizemos muitas mais vezes “este fala muito bem”, “aquele é que escreve bem!”, do que este é um excelente ou íntegro profissional. Depois muitos desses opinadores políticos, ainda enchem o peito para dizer coisas como o ordenado mínimo precisa de subir mais umas centenas de euros e outras coisas tais infladas pelas emoções das grandes opiniões, mas confragedoramente reveladoras de desconhecimento da realidade do país e do mundo. Experimentem sair do país para longe das Uniões Europeias e tentem responder às perguntas “o que é que vocês produzem? O que é que sustenta a vossa economia?”. Ainda no outro dia na Malásia (petróleo, gás, segundo maior produtor mundial de óleo de palma, borracha, etc.) me colocaram a questão e as respostas são sempre pálidas. “Não, também não temos marca de carros própria”. Nada. Na verdade não produzimos nada que nos permita o sustento por nós mesmos. Temos um papá maravilhoso que se chama União Europeia e que além da mesada nos dá dinheiro para tudo o que precisemos desde que nos portemos bem. Somos filhos e arautos da liberdade, mas é difícil explicar aos asiáticos como connseguimos ser felizes assim, na mão dos outros, e que liberdade é esta absolutamente dependente de terceiros. Nunca produzimos nada e desde sempre, mesmo nos idos tempos dos descobrimentos, tivemos os nossos melhores recursos nas mãos dos outros ou à sua mercê. Continuamos a não produzir nada mas queremos tudo. De entre as nossas palpáveis e intangíveis riquezas, sobressaem os opinadores. Pela opinião, lutar, lutar. Em cada esquina um opinador, terra da opinião. Povo que lavas no rio a roupa suja das tuas opiniões. Acima de tudo orgulhosamente opinadores, dos quais se destacam os mais insignes, esses senhores e senhoras que mudam o mundo à base de palavras escritas e faladas que o vento não leva e que tornam os portugueses mais felizes, mais confiantes (também mais opinadores) e fazem diariamente de Portugal um país indubitável e teoricamente melhor.

 

* Leitor de Português

Universidade de Sun Yat-sen Guangdong – China

Em cada esquina um árbitro

Caros amigos, como tendes passado? Espero que esteja tudo bem convosco. Não sei como anda tudo por aí, mas há uma coisa que nunca perde actualidade, o futebol. No outro dia estava a ver uma equipa acabada de descer de divisão cujos dirigentes protestavam daquela forma caninamente raivosa tão característica em frente da cara impassiva do senhor árbitro. Nesse momento compreendi que as pessoas do futebol tem uma invejável vantagem em relação aos demais sectores da sociedade portuguesa. Um árbitro. Aquele senhor que anda ali no meio do campo a decidir coisas que acontecem por entre correrias de dezenas de pernas, enquanto, em simultâneo, uns amigos gozões a ver o futebol no café lhe vão dizendo coisas ao ouvido, ora para ajudar, ora para atrapalhar. O meio do futebol tem a sorte de ter um senhor árbitro, melhor, um trio de arbitragem. É um privilégio que convém muito ao português, ter um caixote para onde berrar culpas e cuspir impropérios enquanto assobia para o lado e leva a vida da forma mais desenrascada possível. Deveria haver um árbitro dentro de cada casa portuguesa. O marido é um mandrião, a mulher só sabe ralhar e os filhos acumulam gadgets e negativas: Palhaço! Sim, tu que estás aí sentadinho, ó cegueta, a culpa disto não andar para a frente é sempre tua. Agora sai do sofá que eu quero ver a bola, energúmeno! E pronto, estaria sempre tudo impecavelmente bem se houvesse sempre um árbitro disponível para descarregar a responsabilização. No trabalho, o empregado não faz nenhum, o ordenado não sobe, o chefe aperta cada vez mais. O que fazer? Um árbitro em cada posto de trabalho: És um urso! Sempre a mesma m…, estás comprado, não fazes nenhum, é só cafezinhos e empurrar com a barriga e quem se lixa sou eu! Vai mas é enrolar-te com o chefe, seu larilas, que é que o que tu sabes fazer! Em repartições também daria bastante jeito. Por exemplo, na segurança social. É que mandar vir com a pobre coitada que está do outro lado do computador por vezes custa um bocado. Dá um certo constrangimento porque afinal a culpa não é exactamente daquela pessoa, ainda que haja algumas que se prestam particularmente bem a esse papel. A solução? Um árbitro, claro está: Ó estúpido! Sempre a decidir para o mesmo lado. Eu aqui f… duma perna, de baixa em casa há mês e meio e já é a terceira vez que tenho de cá vir por causa da porcaria do papel, ó monte de esterco. E tu nunca resolves nada! Mesmo no supermercado a presença de um árbitro não seria de enjeitar: Ó boi, sim tu aí, anda cá. Então eu estou aqui há meia hora com a senha do fiambre e chega-me esta gaja não sei de onde e diz que tem uma senha antes da minha. Mas tu andas a comer iogurtes gregos com a testa ó quê? Isso é que é ganhar dinheiro fácil, ó cabeça de porco. Ou ainda: Então aqui nesta caixa está uma fila do c… e as outras caixas estão todas fechadas? Mas andas a brincar com isto ou quê? Queres que eu passe aqui o fim de semana todo a olhar p’rá tua fronha? Estás à espera de quê para mandar abrir as caixas do lado, seu borrego? Inclusive junto às caixas multibanco: ó unha rachada, então andas-me a gastar o dinheiro todo em tabaco e raspadinhas e agora eu como o quê até ao final do mês? Seria muito melhor do que salas de stress para partir a loiça toda ou do que o submundo encantado das caixas de comentários da internet. Teria a incomparável vantagem de ser alguém em carne e osso, um ser humano, disposto a fazer a sua melhor cara de urso e assumir-se omni-responsável por tudo o que deu e dá para o torto. O rosto da culpa, o corpo da incompetência, o saco (de escroto) de todas as falhas resultantes, na grande maioria, do demérito próprio. O português não precisaria de mudar um milímetro na sua vida se em qualquer esquina houvesse um árbitro sempre presente e disposto a ser veementemente mandado para as urtigas enquanto se manteria naquela posição direita e amovível de fim de jogo, fitando impávido os indivíduos nos olhos para que o nível dos impropérios fosse subindo sempre de tom e o cidadão português pudesse descarregar as suas frustrações até ao último perdigoto de saliva. O português andaria muito mais feliz. Porque para o português é sempre o outro, foi sempre o outro. Reparem que, tal como neste texto, os portugueses nunca somos nós. O português é. Isto e aquilo. Já eu não. Aliás, quando falamos há os portugueses e há o eu, que não são farinha do mesmo saco. O eu que fala não só tem pouco ou nada a ver com os outros como é alguém que roça quase sempre a perfeição. Bem vistas as coisas, nem sequer há portugueses, só há eus. Só não há é árbitros por todo o lado porque o português não sabe ter ideias de jeito. E quando tem alguma não dá para se fazer nada por causa… de labregos como este que está aqui ao meu lado vestido de preto!

Um abraço e bom Verão para todos!