Manuel João Pires

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Urreta, redondo vocábulo mirandês

Bons dias, boa gente! Espero que estas palavras vos encontrem de saúde, a beber com a devida moderação, os shots de vitamina D que o sol trasmontano generosamente vos serve. E que o sol deixe correr tantica água nas ribeiras e urretas. Urreta, palavra considerada por muitos estudiosos como a mais exclusiva da língua mirandesa, também vive no português de Avelanoso, onde sobejam urretas na sua toponímia. Em mirandês escreve-se ourreta ou ourrieta. São vários os autores que colocam este termo entre os mais singulares (ou mesmo o mais singular) da língua mirandesa, como Carlos Ferreira, Luís Meirinhos ou Manuela Barros Ferreira. De Urreta se diz que é uma palavra antiga, possivelmente com origem pré-românica, ausente de outras paragens que não na língua mirandesa. Atente-se neste excerto de Manuela Barros Ferreira, extraído de um artigo sobre a situação da língua mirandesa, de 2001: «Na micro-toponímia mirandesa sobressai, pela sua grande frequência relativamente a qualquer outro topónimo, a palavra ourrieta, que designa um pedaço de terra. Segundo uns, trata-se de uma terra húmida, de pastagem, segundo outros, de uma concha de terra arável e segundo outros, de um vale. É pois um nome que se aplica a terras de vário tipo, em geral associadas à abundância agrícola ou pastorícia. Por outro lado, é uma tradição local o considerar-se a palavra urrieta como um legado pré-românico na região.» Vou tentar o exercício de desbravar este bravo vocábulo. A fonética das palavras às vezes diz-nos alguma coisa sobre o significado, sobretudo nas onomatopeias que indicam a reprodução de sons ou ruídos naturais (trrim, trrim, tic-tac, tic-tac, bum!) ou nos verbos onomatopaicos ou imitativos, normalmente ligados a animais (chilrear, zunir, mugir, piar, zurrar, etc.). Noutros casos, alguns sons das palavras também sugerem remeter para o seu sentido (estridente, estrelouçar, estralejar, estrebuchar). Por exemplo, a letra i presente em palavras como fio, fino, fininho, fila dá uma ideia de magreza, finura. Por outro lado, a letra o em ovo, oval, gordo, omni- sugere largueza, volume. Já ou, som produzido mais atrás na cavidade oral, na garganta, alude para algo mais gutural, bruto, cru, rude, rupestre, gruta. Se bem que estas coisas dos sons das palavras e das suas semânticas, lembra um pouco a história do ovo e da galinha. São os sons que remetem para estes significados ou foi um conjunto de significados que cunhou a acepção destes sons? É uma boa pergunta para quem estiver à procura de temas para refletir, mas voltemos às urretas. Através da sua fonética eu arrisco um comentário de pesquisador de bancada e não me admiraria nada que fosse pré-românica, pois é um termo meio rupestre, impolido. Tem o tal som u grotesco de que falámos, mais o duplo r, que ainda reforça mais essa aspereza ou crespidão, e depois tem o -eta que é um diminutivo também bastante cepudo (carreta, meseta, caseta, valeta, motoreta). No conjunto das diferentes partes que o compõem, é um vocábulo que soa bastante pré-tudo. Sobre o seu significado, segundo me explicaram em Avelanoso, as urretas são linhas de água mais superficiais antes de afundarem e se tornarem ribeiros. São locais férteis, relativamente planos, onde variada fauna costuma conviver. São locais menos agrestes e, no caso de Avelanoso, mais abrigados do vento norte o que proporciona vantagens para a biodiversidade. Dizem os entendidos da aldeia que os pássaros habitam muito as urretas, tal como as lebres. Perdizes, chascos ou chinchas la raiz são pássaros que andam por essas zonas e “quem quiser encontrar lebres é nas urretas porque lá têm sempre erva fresca”. Em Avelanoso, onde estas linhas de água correm de Norte para Sul desde a serra, conseguimos encontrar os seguintes topónimos: Urreta la Fonte, Urreta las Cervas, Urreta l’gato, Urreta de Vale Madeiro, Urreta dos Navalhos, Urreta da Malhadica da Borda, Urreta da Calabaça, Urreta do Faleitalão ou Urreta das Três Marras, começando pelas que têm nomes mais peculiares. E ainda Urreta Girão, Urreta l’Inferno, Urreta la Sarça, Urreta das Musgas, Urreta dos Navalhos, Urreta Funda, Urreta de Belhorigo, Urreta da Calabaça, Urreta do Vale da Badia, Urreta da Guirona, e Urreta de Sobrião. Presumivelmente, o nome urreta terá ficado do mirandês, engolido nesta aldeia pelo português a partir do momento em que a freguesia foi ficando fora da jurisdição administrativa das Terras de Miranda. Creio que os nomes de muitas destas urretas são eles próprios exemplos de que se terá falado mirandês em Avelanoso num passado mais distante, tal como vários estudos referem desde Leite de Vasconcelos, a António Mourinho ou Manuela Barros Ferreira. Para todos os efeitos, estamos perante, provavelmente e toponimicamente, a aldeia com mais urretas de Portugal! Por isso, há que explorar este potencial linguístico-paisagístico-turístico de diferentes formas. Deixo algumas sugestões: a criação da Rota das Urretas, o circuito pedestre das Urretas, os passadiços das Urretas, o baloiço das Urretas, o centro interpretativo das Urretas, o ultra-trail das urretas, a pousada das urretas, o festival anual das urretas, praias fluviais, ribeirais, melhor, praias urretais para usufruir das urretas com as devidas comodidades, doçaria tradicional (os urretos), uma urreta salad com agriões, arrabaças e merujas orgânicas colhidas nas próprias urretas. E ainda souvenirs, postais e estatuetas das urretas, talvez uma mascote representada por alguma planta ou passarico como o chincha la raiz. A nível de urretas o potencial é enorme. Avelanoso, capital mundial e europeia das urretas. As autoridades locais não podem fechar os olhos a tamanha singularidade. Há que promover a elevação das urretas a património municipal, nacional e mundial. Avelanoso é uma aldeia rica em urretas, e se «o sonho comanda a vida», as urretas comandarão a vida de Avelanoso porque sonhar não custa. Um forte abraço!

Portugalambando

Bons dias, boa gente! Espero que estas palavras vos encontrem bem, a desfruir dos coloridos ares primaveris. Não sou muito de escrever sobre as mundanices, que facilmente degeneram em imundices, uma vez que Portugal tem gente de sobra nessa crítica função. Estar no conforto da bancada a disperder os que estão nas quatro linhas é desporto-rei nacional. Portugal definido numa foto é aquela dos engenheiros e capatazes a opinar em redor e um desgraçado no meio a fazer por cumprir o que lhe mandam de modo a justificar o salário miserável que lhe dão. Contudo, sabe bem ser um mirone a micar o caso que abalou os monotodias da nação e cujo nome do actor principal da telenovela rima com caramba, muamba ou bailar la bamba. Para mim, o mais incrível não é a criativa mesquinhez do roteiro, a realidade a ultrapassar a CMTV, os governantes e os serviços secretos a serem genuinamente mais inabilitados que um pastor alemão como o canino Inspetor Max. O mais incrível foi algo que se calhar até passou despercebido e mostra bem a charanga que é Portugal: houve uma comissão de inquérito que estava marcada para começar às 14h e só começou depois das 14:30. Uma comissão parlamentar com parlamentares que trabalham no parlamento, pessoas que se supõem serem minimamente distintas das demais em termos de valores e competências, que se atrasam meia hora para uma reunião (que inclui ministros) e que está a ser televisionada em direto para todo o país. Trinta minutos atrasada. O que seria absolutamente chocante e inadmissível em qualquer parte do mundo onde haja respeito e consideração, é apenas “depois do almoço” em Portugal. Isto não é gozar com quem trabalha, isto é dizer a quem trabalha que pode gozar à vontade, como, onde e em cima de quem quiser. Depois de começada a pontual reunião, lestamente se introduziu uma imperativa pausa para um injuntivo cigarrinho. Tudo isto existe, tudo isto é indescritivelmente parvo. Quem abra a porta de Portugal e veja as autoridades governamentais a fazer estas figuras, bem pode imaginar o resto. É como abrir a porta de um tasco do Cais do Sodré nos anos 80. Entrar e dar com a dona no balcão a espapaçar os seios fartos na cara de um qualquer marinheiro da marinha mercante. É que vale mesmo tudo. Esta semana estava a folhear um livro que dizia que o engenheiro que idealizou a ponte de Brooklyn, em Nova Iorque, era tão metódico que não se reunia com ninguém que se atrasasse mais de cinco minutos, mesmo que viesse de longe. No século XIX os norte-americanos já não toleravam atrasos de cinco minutos, em 2023 a nata desnatada de Portugal continua a fazer questão de atrasar o relógio do país meia hora por dia. Talvez até seja justo, afinal, como diz o ditado, o país governa-se em modo “para quem é bacalhau basta”. No meio deste bacalhau com todos, o que me faz confusão neste enredo é haver portugueses que consideram que por trocar o senhor que está lá no topo das governanças as coisas possam mudar significativamente. Querer mandar abaixo alguém por acreditar que tirando o rosa e pondo o laranja, vermelho, azul ou versa-vice, as coisas possam de facto mudar é um dos cúmulos de se ser português. O grande problema, o grande elefante na sala, é que qualquer um desses coloridos amigos será também ele invariavelmente português. E enquanto formos governados por portugueses será difícil. A batida continua a mesma com maior ou menor retoque ou com maior ou menor subida do salário mínimo. Se os portugueses saem do país às carradas e se, de forma geral, são reconhecidos fora de portas pela sua capacidade de adaptação e bom desempenho profissional então alguma coisa não bate muito certo. Os portugueses trabalham bem lá fora, os jovens que emigram desde a última grande crise económica cumprem com sucesso o que lhes é requerido. Enquanto isso, dentro de portas, é uma sucessão de botas e perdigotas. Para mim, que acabei de beber uma mini, a solução é simples: é colocarmos um grupo de estrangeiros a governar-nos, deixarmo-nos governar de uma vez por todas. Não desfazendo das outras nacionalidades, mas era arranjarmos 20 ou 30 nacionais do centro/norte da Europa para nos pôr nos eixos. Colocá-los nos principais ministérios e nas principais empresas, dar-lhes ampla liberdade de gestão e de criação de postos de trabalho. Há tempos falava com um dinamarquês que me dizia que no país dele se fomenta a cultura de arriscar e de desenvolver um espírito de criar negócios e grandes empresas. Enfim, fantasias de quem não anda sempre à rasquinha a contar os dias até ao fim do mês e no máximo consegue montar umas startups ou uns pequenos e médios negócios. Podiam ser alemães, suíços, noruegueses, etc. Talvez suecos, já empregam cá muita gente e estamos habituados a seguir as instruções deles. Se só com livrinhos cheios de bonecos a representar parafusos e pedaços de madeira conseguem fazer-nos sentir especialistas em construção imobiliária, imaginem o que seriam capaz de fazer se lhes déssemos o país para a mãos. Simples, fazíamos como nos bancos, dávamos-lhes a parte má (a governação) e continuávamos a usufruir da parte boa (o sol, a praia, os ovos mexidos com alheira). A caravana portuguesa poderia continuar a ladrar da bancada, mas teríamos de nos adaptar à forma deles fazerem as coisas. Os salários e a qualidade de vida iriam subir, talvez começássemos a ter a sensação de que os elevados impostos que pagamos serviriam realmente para alguma coisa. Ah, mas isso é inviável, não pode ser, um país independente, uma nação com 900 anos de chicória. Ora, como se não fossem os papás União Europeia que andassem a bancar tudo a este Portugal adulto jovem que continua a viver na casa dos pais. A questão está na antecipação, é só antecipar. Psicanalisando o nosso passado perceberemos que num futuro não muito longínquo nos encontraremos novamente de joelhos a clamar por ajuda externa. Basicamente foi a série do FMI - já perdi a conta às temporadas, não sei se a próxima será a quarta ou a quinta - e os ingleses, sem a ajuda dos quais, em diferentes ocasiões, hoje seríamos somente mais uma comunidade autónoma de Espanha. E que triste depender dos emborcadores dos ingleses, um povo que tem tanto daquilo que nos falta para nos sabermos governar, mas que nem sequer tem engenho para criar uma comida que se apresente. Reparem, já cá temos os turistas que são não sei quanto por centro do nosso probruto, temos os nómadas genitais, temos os cães polícias a farejar e a esburacar sem pedir licença como se a quintarola fosse deles, e inclusive os reformados que vêm de fora e de entre os quais, com jeitinho, ainda se arranjava uma turminha não só para jogar à petanca ou ao rami, mas para tomar conta disto como deve ser. No fundo, qual seria o mal de termos também estrangeiros a administrar- -nos? Além disso, nós gostamos de estrangeiros, até mais do que gostamos dos outros portugueses, eu diria. Estrangeiros com dinheiro no bolso, bem entendido, a esses desdobramo-nos em vénias. Somos trezentas vezes mais simpáticos para qualquer um deles do que para um nosso conterrado. Então porquê recorrermos aos estrangeiros somente quando estamos a bater no fundo do poço e não antecipar essa fatalidade? Prevenir em vez de remendar. Tomem, peguem, façam como na vossa casa, é todo vosso, força, ajudem-nos, imploramo-vos, vá lá, por favor, temos filhos pequenos para criar, please, merci, god morgon, willkommen, beware of pickpockets.

Obrigado, Sr. Armando

Boas tardes, boas gentes. Espero que estas palavras vos encontrem de saúde e afeição quase às portas do céu da Primavera, que sempre traz em roda-viva para os vivos que cá estão o surgir da luz depois da noite, a cor em flor depois do seco ramo, o despertar depois do longo sono, a fecundidade após o entorpecimento. Ó Primavera quanto do teu viço são postais de Portugal, tu que és mãe da última e da primeira flor do Lácio, porque todo o mundo é composto de Primaveras que cobrem o chão de verdes mantos e os caminhos de pó. Ó andorinhas, ó ninhos nos beirais, ó água fria a jorrar de esquecidas fontes, ó cheiro a terra chovida, ó alvas nuvens, como vale a pena ver-vos. Com pesar e apesar de tudo. Em silêncio, silêncio que o fado vai ser rezado. Ó morte, ó sofrimento, ó outro lado sombrio e inverso de tudo que nos lembras das Primaveras, do desejo, e de seres alma e seiva e vida em nós. Os que ficam e os que foram, vão-se os dedos, ficam os anéis porque ‘nem rei nem papa à morte escapa’. Chegou a hora. Partiu um insigne senhor, um dos grandes nomes da contemporânea trasmontaneidade, uma estudioso amante-incessante de Bragança e dessa sua brigantinidade. A sua vida foi conhecer e dar a conhecer os locais que compuseram a sua espírito, da Estremadura ao Nordeste. Aliás, um dia hei de ir a Lagarelhos, caminhar pelo chão de Lagarelhos para não ver todas aquelas gentes e vidas que Armando Fernandes via. Via os novos e os velhos, mais velhos que novos que do baixo da infância tudo nos parece tão alto e longínquo, o tempo pode esperar mas o tempo não espera e de repente sem se dar por ela o distante faz-se perto até que de tão perto nos passa e nos deixa para trás. E tudo isto o Sr. Armando Fernandes tão bem descrevia, tão eruditamente sabia e tão douto escrevia. Gostava de ir buscar as palavras mais encobertas, como os bons vinhos e livros que aguardam asceticamente por quem os sabe procurar, como as frutas mais apetecidas por difíceis de alcançar, a sorrir-nos lá do muito alto como a desafiar quem tenha arte para subir a copa e as ir colher. De modo que este seu fiel leitor, doutor em Letras, mas recordando Millôr Fernandes, de que um especialista é um sujeito que só não ignora uma coisa, tudo o resto é desconhecido de cor e salteado. Então, ler o Sr. Armando Fernandes era recorrer ao dicionário para entender as legendas, descobrir palavras longínquas, absorver as referências. O dicionário, como treinador e livro-árbitro, a confirmar que sim senhor as palavras estavam em posição legal (férulas, estrídulas e catilinárias; biocos, escrófulas ou sevandijas; pírtigos e lapuzes, jecos e zurvadas) tirando algumas que de tão arcaicamente transmontanas o livro-árbitro não tinha sequer competência para validar (talhouco ou lapardeiro). Aprendia-se muito sobre palavras e vivências a ler o Sr. Armando Fernandes num tempo em que tanto se lê, mas tão pouco se aprende. Por curiosidade, as últimas palavras que escreveu neste jornal foram “guerra civil espanhola” fechando um texto com os rojos que escapavam além-fronteira. Três palavras que me lembram a minha avó paterna e as suas histórias de dar guarida a esses foragidos que encontravam abrigo na amizade transraiana que se sentia e se praticava naturalmente. Agora nem tanto. O passado já passou e o Sr. Armando Fernandes registou muito desses tempos para o futuro. Dedicou a sua vida a essa missão. Na gastronomia, na cultura, na muito sua Bragança. Livros, crónicas, diversos tipos de escritos, reconhecido e premiado pelo seu labor no campo da cultura gastronómica. Os jornais regionais de Bragança e do Ribatejo nos quais era inveterado literato ficarão muitíssimo mais pobres. Em ideias e em quem as saiba expressar. Agradeçamos a sua extensa obra que por cá continua para irmos eternizando a sua memória. Sr. Armando Fernandes, escrivão-mor e cavalheiro-mor da opinião semanal e regional, obrigado por todas as leituras e ensinamentos. Na hora da nossa morte somos todos uma nota de rodapé, uma leve nota de pesar. Paz à sua alma e louvor ao talento e à arte perene que a sua vida nos deixou. Obrigado, Sr. Armando Fernandes. Um abraço!

Chimpar relhas e estadulhos

Bons dias, gente m a d r u g a d o r a ! Que estas palavras vos encontrem de saúde a desfrutar dos ares inspiradores do outono trasmontano. Ares que se desfruem bem pela fresca porque nas horas de calor a inspiração é mais vagarosa, letárgica. Logo desde manhã muito cedinho porque a por manhã é que se começa o dia. Um passeio matutino pelo termo por entre escovas, leitaregas e queirolas. Não há nada melhor, são puros remédios que não se vendem na farmácia. Assim como não se vendem lampaças das quais os pais e avós de outrora faziam curativos chás. Gente que possuía uma sensibilidade e sapiência da ervanária local que merecia ser registada, catalogada. Hoje não venho evocar medicinais saberes, mas sim usos e desusos, trago na maleta palavras que deixaram de andar nas bocas do mundo. Começo por saudar os autores da vizinha Folha Mirandesa e destacar que adiante se farão aproximações ou se revelarão contiguidades com os vocábulos mirandeses, uma vez que as lhonas de hoje têm como ponto de partida a aldeia de Avelanoso que partilha ancestrais termos (tanto no sentido territorial/administrativo como no linguístico) com o mirandês e as suas terras. Aliás, é uma das Três Marras juntamente com Alcañices e São Martinho de Angueira. Marras e marrões que ninguém ousou chimpar. Não quero entrar a partir, mas começo já por aí, chimpar (tombar, derrubar, fazer cair). Os mais velhos diziam aos garotos: “não és capaz de o chimpar” ou “vê se chimpas aquele”. Noutros tempos desafiava-se um jogo da luta, uma espécie de judo trasmontano em que o objetivo era agarrar o outro e fazê-lo cair. Também se usava “chimpar o fito”. E não haveria de faltar vontade de chimpar alguns xodairos, pessoas pouco recomendáveis de levar e trazer, alcoviteiros de meter o nariz em vida alheia. Muito pano para má-língua lhes dariam as rexertas, moças irrequietas, indomáveis, particularmente guichas. Jovens que certamente ouviriam dos seus pares expressões como “estás muito jónica” (referência à elegância da arquitetura clássica) ou “hoje andas muito à balalaica” (vestida com roupas novas). Indumentárias novas ou domingueiras que não se recomendavam para os trabalhos do campo: nem para acarrejar o pão (transportar centeio, trigou ou feno em carro) ou limpar augueiros, muito menos para esgadanhar gatunhas (plantas invasivas) ou para lavrar. Por falar em lavrar, atente-se nas palavras que se perderam sulcadas pelo tempo e pelas charruas dos tractores. Queiram pegar em papel e caneta e apontar o que andava na ponta da língua de quem sabia manusear arados e conhecia as suas peças como a palma da mãozeira, rabela, relheiro, relha, orelheiras, pespeneiro, tesa, teiró, cunho e timão. São dez palavras que foram para as queirolas (urze rasteira predominante em altitude nas serras) e saíram inteirinhas da língua portuguesa como um beldro (porção de lã que se tirava como um manto aquando da tosquia das canhonas). Uma dezena de vocábulos que chimparam de uma assentada com o descostume dos arados de tração animal. Assim são as línguas, com células que morrem e outras que nascem ao sabor da vida e do quotidiano. E no quotidiano de hoje já não se leva o burro à feira de maneira que arriaram os atafais, a albarda, a silha e a cabeçada. Também os carros de bois são agora, quando muito, meios de transporte de valia decorativa ou museológica de modo que descontinuaram: estadulho e estadulheira, aceda, cabesnalha e picanços, espichões e coucelhões, meões, cambos ou cambões, travessanho e angarela, caniças ou caniços, estrado e barbiões, gancha e endireiteira, e, por vezes, lúrias ou engrideiras (cordas). Mais um alqueire de palavras (só aqui estão vinte) que sumiram das bocas do povo, dos falares característicos de algumas comunidades, cambiantes sociolinguísticos próprios de uso circunscrito a pequenas delimitações geográficas. As mesmas dificuldades se colocam à língua mirandesa cujas peculiares palavras se referem a plantas e animais, hábitos ou objetos que maioritariamente já não se utilizam ou vivenciam. O mirandês é expressão de um contexto cultural e socioeconómico que sofreu alterações mais profundas nas recentes décadas do que durante largos séculos anteriores. Por isso, o esforço diário do mirandês é o de se recriar, de se reavivar, de se quotidianizar, respeitando a força resistente da sua identidade, mas sem cair no erro de se tornar um bem museológico ou apenas a romantizada expressão de uma realidade pretérita. Em Avelanoso, carear o gado (evitar que fuja para outros locais que não aqueles onde o pastor quer que ele fica) já não é uma preocupação tão grande dos pastores como era dantes em que se cuidava cada metro quadrado do termo. Pastores que não pernoitam nas terras no Verão e, por isso, não têm as pastoricas (pirilampos) como companhia, nem lobos a uliar. Continuam a abundar lampianas e urretas, bulhacas e bubelos, caneleiros e leitaregas, embora mingue quem saiba ler a literatura que a natureza escreve através delas. Onde haja leitaregas há pouca acidez, são indicações que os terrenos dão a quem as sabe interpretar. Lampiana é a parte menos funda de um lameiro, mais inclinado e mais seco onde a erva cresce menos. São falas doutas, embora não sejam minhas, mas emprestadas por meu pai. Justiça seja escrita. Urretas, marras e praineiras, rocos e pulelas, hedras e granheiras. Palavras que ainda se esforçam para não definhar, mas sobretudo palavras de que os tempos se ocupam de chimpar. É a vida, são as línguas. Um forte abraço!

De Boticas to Massachusetts

Bom dia a todos! Que estas palavras vos vejam com bons olhos e que os ares da Primavera vos tragam mais alegrias do que alergias. Hoje venho contar-vos uma história que tinha aqui prometida a um estimado amigo que partilha comigo semelhante trasmontanidade. Não a que advém do local de onde se nasce, mas a que é transmitida por precedentes gerações. No meu caso pelos pais, no caso do meu caro amigo Mikey, pelos avós. Convenhamos que de Bragança a Lisboa não são as mesmas horas de distância do que de Bragança às cercanias de Boston, por isso é mais surpreendente ver como um jovem do outro lado do Atlântico mantém as suas identitárias raízes bem arreigadas. Cruzámo-nos pela primeira vez num local propício a fundar amizades, um campo de futebol daqueles em que uns quantos convivas matraquilham uma bola um par de vezes por semana, embora num país um pouco improvável para um norte-americano e um português descobrirem transmontanas afinidades, em Zhuhai, Sul da China. O Mikey estava a fazer uma formação de futebol, ele que é um jovem treinador de jovens na academia do Chicago Fire, um clube com estatuto na liga norte-americana de futebol ou soccer, como é denominado por lá. O Mikey esteve em Portugal apenas uma vez em modo turista, e acho que nem saiu de Lisboa, durante os poucos dias que por aí passou. Ele é neto do senhor António Gonçalves Carvalho Júnior, nascido em Boticas no ano de 1937. Este senhor geria uma pensão ou residencial em Boticas até decidir emigrar para a Costa Oeste dos Estados Unidos na alvorada dos anos 60, pelo que os seus filhos já nasceram por lá, nomeadamente a mãe do Mikey. Esta descrição está-me a soar àquelas peças introdutórias antes das conversas dos programas da manhã ou da tarde, “Temos hoje connosco a Dona Suzete que não esquece a data de 23 de Março de 2017, dia em que perdeu uma perna derivado da diabetes” ou “deem as boas- -vindas ao Ernesto que um dia ganhou o primeiro prémio da lotaria e hoje vive da caridade de amigos e vizinhos”. Passámos o Natal uma vez juntos em grande confraternização e é no Natal que impreterivelmente trocamos mensagens. Ele envia-me sempre fotografias da mesa natalícia onde não falta o mais característico do Natal trasmontano, misturado com o que é iconicamente português ao longo de todo o ano. O polvo cozido e o chouriço assado no porquinho de barro, o bacalhau com couves e os rissóis de camarão, o arroz- -doce e o pudim de ovos. Não se pode dizer que o Mikey fala português porque não fala, no entanto sabe manear um kit linguístico muito interessante, cheio de utilidade e constituído na sua maioria por iguarias como as anteriormente descritas. Por exemplo, o Mikey sabe dizer “aletria”, só para verem o elevado grau de trasmontanidade. Estamos a falar de uma magnífica sobremesa no seio da nossa doçaria (que eu adoro), mas votada à ostracização no meio de tanta adocicada oferta e modernice. Com muita pena, esta sobremesa rareia cada vez mais nas nossas festivas mesas. A aletria está para as sobremesas como o envio de um postal por correio está para os votos de boas festas. Em desuso, mas a merecer melhor destaque e consideração. O meu amigo não é fluente em português, mas fica absolutamente empolgado ao dizer palavras como “caldo verde”, “chouriço” ou “bolinhos de bacalhau”. E o mais curioso é que conhece perfeitamente o significado destes vocábulos, na teoria e na prática. É realmente incrível como se moldam as identidades de um indivíduo, sendo que não é algo necessariamente ligado - frequentemente não tem absolutamente nada a ver - com o lugar onde arbitrariamente se vem ao mundo. O elo trasmontano na família do Mikey vem do avô, que foi mantendo ativo um modo de fazer as coisas à portuguesa, particularmente à trasmontana. E estas desenvolturas passam para filhos e netos como algo que ajuda a construir quem somos e que nos fazem singulares em relação aos demais, mas também singulares no seio de nós mesmos, da nossa própria individualidade, do nosso sentir, do nosso olhar para o mundo a partir de nós mesmos. Outra coisa muito portuguesa e de refinado bom gosto que o senhor António Carvalho levou de Boticas para aquela zona por onde mais emigrantes europeus entraram na América nos últimos séculos, foi o seu sportinguismo, paixão cujos netos também assumiram como sua. O senhor António Gonçalves, de Boticas, deixou este mundo há poucos meses no lugar de Ludlow, Massachussets, aos 87 anos. A última foto que tirou com os netos, dois dias antes de se aventurar para essa perene viagem, foi tirada em família enquanto assistia a um jogo de futebol do Sporting. Uma partida que daria ao clube verde e branco o seu mais recente troféu, no caso, a Taça da Liga. O avô do Mikey passou-lhe o Sporting, levou-lhe Trás-os-Montes, deu-lhe Portugal. De Boticas a Massachussets, este homem fez obra e passou-a em testemunho vivo e vincado. Por isso, a última foto, como numa última ceia, não poderia ser se não a de um homem feliz, para que o seus netos possam sempre recordar uma missão mais do que cumprida. Neste cenário até o Sporting contribuiu para finalizar em bem este quadro de família. A alma do avô do Mikey não poderia estar mais em paz. Uma bonita história aqui fechada com um forte abraço!

Aliste, futebol e pipas

Boas tardes, meus caros. Como tendes passado? Espero que não vos falte ânimo nem saúde. Uma das recentes vezes que estive aqui convosco falei de nomes próprios e das suas cíclicas modas. Queria ter contado outra história sobre os nomes, mas depois desviou-se a conversa como as cerejas. Também já vos falei de Alcañices, terra de boas relações e bons tratados com os portugueses e recordei-me de uma história que envolve esta terra alistana, nomes bascos, Cristiano Ronaldo, muitas pipas e um jogo de futebol na capital espanhola. Era uma noite nem tão fria de um domingo de Inverno daquelas destinadas a que nada se passe e eu estava em Avelanoso de férias quando alguém de entre um par de convivas sugeriu irmos a Alcañices para beber uma caña num sítio diferente. Não me lembro do nome do bar, mas sei que estava a ler um jornal que se não estou em erro era o nosso vizinho “El Norte de Castilla” e que tinha um artigo de opinião de um senhor um bocado indignado com essa coisa dos nomes próprios. Que os emigrantes daquelas alistanas paragens a viver na Catalunha, mas sobretudo no País Basco, andavam a deixar cair as suas onomásticas origens em detrimento das do Nordeste espanhol: Iker, Julen, Markel ou Ane, Laia, June… Só me recordava do Iker por causa do jogador de futebol, mas fiz agora uma pesquisa para recolher os nomes bascos mais comuns nos últimos anos. Aliás, diz que o próprio Iker Casillas é disso exemplo, natural de Madrid, mas assim chamado porque os pais tinham vivido no País Basco durante uns tempos. E eram estes assuntos que deixavam o senhor do jornal um pouco alterado, aludindo à sensibilidade identitária de futuros progenitores na hora de chamar nomes aos filhos. Os nomes como forma de integração no local onde se vive, gato e rato, noras e sogras, algumas das muitas inevitabilidades que nos precedem e assim continuarão a ser depois de nós. E continuava eu a ler a minha cerveja e a saborear o jornal num bar meio-escuro, uma barra comprida com gente sentada de olhos postos na televisão onde passava futebol, e o chão generosamente polvilhado de cascas de pipas. Eu já não sei como andam os tascos espanhóis, na verdade, nem sequer os portugueses. Acho que são já espaços em vias de extinção, agora que se quer tudo muito clean. Mas no meu imaginário um tasco espanhol tem daquelas máquinas cheias de botões quadrados com números, cerejas e melancias a roletar, uns pinchos de tortilha repassados já quase em ponto-salmonela no mostruário do balcão e poças de cascas de pipas semeadas pelo chão. E estando eu na tranquilidade deste ambiente acolhedor a dedilhar as páginas do jornal, levantavam-se as vozes dos presentes na proporcional medida dos lances mais acesos que passavam na televisão. Atlético de Bilbau - Real Madrid. Só agora reparei nessa outra coincidência, nomes bascos no periódico, nomes bascos na televisão, até que após nova vozearia, alguém diz “o Cristiano Ronaldo foi expulso, vermelho direto”. Na altura não liguei muito, mas após uns segundos dei um salto. “O Cristiano Ronaldo foi expulso?!”. Não acredito. Precisamente na semana em que eu tinha comprado um bilhete para ver o próximo jogo do Real Madrid em casa. Comprei um daqueles mais baratos lá para cima onde os jogadores parecem pouco maiores que formigas. O Ronaldo no seu auge desportivo, e eu ia a Roma sem ver o papa. Que pontaria! A única vez que fui ver um jogo ao estádio Santiago Bernabéu e uma das pouquíssimas vezes que Ronaldo foi expulso na sua carreira. Nessa semana ainda apresentou recurso, levantou algumas esperanças, afinal tinha sido apenas uma escaramuça, mas nada feito. Três jogos de suspensão, 2 de Fevereiro de 2014, diz o Google. E lá fui eu ver o jogo do Real Madrid no fim de semana seguinte, num daqueles jogos que não têm história absolutamente nenhuma. Mais uma noite fria em que nem os jogadores faziam grande questão de ali estar. Valeu por ver os três golos que o Villarreal nem se preocupou muito em responder. Uma das coisas peculiares na forma de os espanhóis assistirem ao jogo, é que o estádio parece o último piso da restauração de um centro comercial. Nós portugueses às vezes bebemos umas cervejas antes dos jogos quando vamos com tempo, os ingleses bebem antes, durante e depois, mas os espanhóis levam todo o farnel para o estádio. O que nós comemos quando vemos o futebol em casa eles replicam também no estádio. Põem os sacos aos pés e de lá tiram batatas fritas, sandes, todo o tipo de snacks, e pipas, muitas pipas. Tantas que se ouve aquele roer das pipas como constante barulho de fundo e no final do jogo o chão das bancadas fica com a mesma decoração familiar dos tascos. É interessante que os adeptos do Atlético de Madrid, provocativamente, chamam os madridistas de “piperos” precisamente por se dedicarem mais ao matraquear das sementes de girassol do que a apoiar a equipa. Isto foi-me contado aqui por uma colega bastante madrilena (e madridista) que de cada vez que vai a Espanha me traz invariavelmente uns pacotes de pipas. Por isso, eu como “pipero” me assumo, mais do que futebolisticamente, enquanto apreciador de pipas e de uma marca em particular, Facundo. Antigamente tinham o célebre slogan nas embalagens «El toro dijo al morir: Siento dejar este mundo sin probar pipas facundo», algo que foi mudado há uns anos para se adaptar aos tempos atuais «Pipas facundo, un placer de este mundo». São gostos que se pegam por frequentar aldeias raianas desde sempre, ambulando de um lado e de outro. Aliste, futebol e pipas, são três coisas pelas quais tenho apreço. E sobre as quais fui amontoando uma ou outra história para contar. Um saudoso abraço!

O passado é o novo futuro

Boas tardes, minha gente. Que estas palavras de amizade vos encontrem cheios de saúde e com “algum trocado para dar garantia”, como diz a música do Cazuza. Ou seja, com uns patacos suficientes para se irem virando e para ao menos conseguirem pagar as contas da eletricidade e encher o depósito das viaturas, o que já por si é sinal de considerável desafogo financeiro. Numa altura em que os veículos são apontados como grandes inimigos do ambiente, talvez seja melhor cortar nessa despesa. Na questão da poluição culpam- -se sempre os mesmos. Países como os EUA, a China ou a Índia é normal que poluam mais porque são muito mais populosos. Também são as economias mais fortes do mundo por alguma coisa, alguém neste mundo tem de produzir e de fazer o trabalho que mais ninguém quer. Vivo numa cidade onde todos os autocarros são elétricos, por todo o lado se veem locais de abastecimento para os carros de matrícula verde (elétricos ou híbridos). Aliás, há um subsídio do governo para a aquisição deste tipo de veículo cujo cancelamento já foi anunciado, uma vez que a compra destes carros não é já uma exceção, mas cada vez mais a regra. As casas são construídas com iguais preocupações energéticas, no norte da China estão a trabalhar para eliminar ou reformar as indústrias mais antigas que usam carvão como combustível e que são as grandes fontes de poluição. Um país que se tem desenvolvido muito e cujas cidades não têm preocupações diferentes das outras. No entanto, nem todos os países podem viver à custa das bazucas do papá. A China, por exemplo, tem de produzir para cerca de 20% da população mundial (dentro de portas) e para os restantes 80% que estão fora. É fácil falarmos do ambiente, mas é impensável desfazermo-nos das mordomias que fomos conquistando. Como se o vilão ou o lobo-mau do meio- -ambiente fossem estes países e não o modo de vida cada vez mais fofinho e aconchegante que temos. Temos de começar a ser honestos e resolutivos. Primeiro, esta discussão do ambiente é um privilégio de quem tem a barriga cheia, de um punhado de países (muito menos de metade da população mundial) que discute casas inteligentes e sustentabilidade quando os outros ainda andam a sonhar com condições elementares de higiene, de segurança e de habitação. E enquanto estes procuram privilégios tão extravagantes como água potável e um telhado, muitas vezes, têm de arcar com as consequências de a minoria de seres humanos favorecidos querer granjear os seus privilégios à custa de destruir ou degradar ainda mais os seus habitats. Vejam as baterias dos carros do futuro (elétricos) que requerem um mineral, níquel, extraído em montanhas perdidas da China ou das Filipinas e cujo processo de extração transforma em terra napalmizada e inabitável todas aquelas imensas áreas, obrigando aquelas pessoas a literalmente embalar a trouxa e zarpar das suas terras. E nem lhes dizemos obrigado, eles que têm as suas vidas à mercê dos fidalgos caprichos do primeiro mundo sem que lhes passemos o mínimo cartucho. E desta hipocrisia, deste “ambiente” na perspetiva dos abastados advém a outra grande questão: queremos que o ambiente seja apenas uma bandeirinha destes tempos modernos, um ideal para fazer face à escassez de ideais, para dar uns likes a bem- -falantes? Ou preocupamo-nos verdadeiramente com as consequências que tem para o nosso futuro (de nós privilegiados) e dos que vivem ainda num desgraçado mundo terceiro? É que se essa preocupação for honesta só há uma solução e é muito simples: abdicar, dispensar, rumar em direção ao passado contribuindo também para que os países com dificuldades mais prementes possam construir o seu futuro. Não há outra hipótese. No outro dia a minha filha trouxe um livro da escola, do talvez insuspeito National Geographic, que dizia que um avião jumbo gasta em combustível numa viagem regular o que daria para dezenas de carros ligeiros darem não sei quantas voltas ao mundo. Estando nós, curiosamente, a ler o livro dias depois de uma cimeira que juntou na Escócia “os mais apreensivos e sapientes” em matéria de ambiente a nível mundial e que, na maioria dos casos, usaram aviões privados com um par de pessoas dentro, tal como os veículos ligeiros... Se queremos verdadeiramente levar isto a sério, repito, só há uma maneira, inovar para o passado, o passado é o novo futuro. No outro dia, o tópico de conversa na rádio desafiava os ouvintes a partilhar exemplos de compras desnecessárias ao longo do ano, coisas compradas e nunca utilizadas. Eletrodomésticos, roupas, quinquilharias, uma montanha de coisas que todos temos e que viveríamos perfeitamente bem sem elas. Precisamos de avançar para o passado até ao tempo não muito distante em que se ia comprar pão com um saco de pano e em que muitas coisas eram vendidas a avulso. As terras do Nordeste foram especialistas nessa antecipação do futuro sustentável, seguindo a estrita e diária política do “nada se desperdiça, tudo se aproveita”, desde as cascas dos vegetais à gordura dos animais. Neste mundo dito desenvolvido há pouquíssimas pessoas a viver nestas circunstâncias, produzindo muito pouco lixo, reduzindo ao máximo, dispensando o dispensável. Essas pessoas estão corretas, do lado certo de quem desde já está a agir, preocupando-se genuinamente com o ambiente. Nós continuamos apenas muito confortáveis com todas as facilidades que “conquistámos”, preferindo fazer do ambiente um tema fixe para nos entretermos (e promovermos). Quantos governantes, decisores, pensadores e influenciadores abdicam desses caprichos? Quantos de nós renunciamos, quantos de nós não viajaríamos de jato privado se pudéssemos? Então, queremos ser honestamente pelo ambiente, reavivar hábitos do passado para bem do futuro ou deixamo-nos estar neste suave confortozinho, descarregando a consciência atrás de um smartphone, smartwatch, tablet, laptop, da internet de todas as coisas e mais algumas? #Somos todos uma cambada de amigos da onça. O ambiente está lixado connosco por muitos e bons anos...

Arautos do a posteriori

Boas tardes, forte gente. Espero que esta morrinhosa Primavera vos encontre de boa saúde. Incerteza é a melhor palavra para definir os tempos desta e das mais recentes Primaveras. O futuro próximo tem sido particularmente incerto por estes anos. Não venho discorrer sobre guerras nem geotragédias porque disso já tendes visto e ouvido de sobra, e eu não tenho nada que possa acrescentar ao que já estais fartos de saber. A única perspetiva que eu gostava de vos trazer é uma visiva dos nossos dias na ótica do mirone dos mirones. De alguém que além dos fenómenos em si, atenta nos que se dedicam a mirar e a palestrar sobre cada fenómeno. Já com a pandemia foi igual. Não há ninguém que acerte uma, que antecipe, que nos avise e nosso amigo seja. Todos os dias a mesma inundação de especialistas, experts, comentadores, investigadores, professores, técnicos, oradores, investidores, políticos e ex-políticos, técnicos e -istas em geral. Contudo, não há ninguém a quem possamos confiar o a priori, que nos diga “alto lá, cuidado com o que aí vem...”, que saiba fazer um prognóstico correto antes do fim do jogo. Depois da filha casada ou da casa roubada, emergem como níscaros os especialistas do “eu já sabia”, do “certamente”, do “eu é que sou o presidente da junta dos entendidos”. Gastamos tanto dinheiro em investigação, em comentário, deporto-rei português em praticantes e adeptos, mas ninguém dá uma que seja para caixa. Uma, uminha que seja. Vêm as pandemias, o pessoal a vê-las vir ao longe e nada, tudo a dormir e ninguém nos alerta, vêm as guerras e a priori nenhum sentinela-especialista vê um palácio à frente dos olhos. Depois sim, depois do ocorrido toda a gente é então assomada de certezas, seguranças e doutas sapiências. Reparem que uma das frases que mais ouvimos foi “isto é algo que começou a ser engendrado há anos”, ora que perspicaz, obrigadinho caro amigo, se não fossem as suas conclusões de entendido-pesquisador não sei o que seria da minha vida. Acho que nem me sentiria capaz de decifrar o rótulo de uma garrafa de óleo. São sábios entendedores do “depois de o ser”, famigerados arautos do a posteriori, no entanto, inteiramente “eu é mais bolos” do a priori, tal como os demais comuns desentendidos. Uns dias antes de começar este conflito, um especialista em Rússia com livros publicados dava entrevistas a dizer que “não, isso não vai acontecer”, que afinal o homem não era assim tão alucinado. E um par de dias depois disso, aí está a realidade a mandar às favas os especializados conhecimentos com os quais podíamos dormir descansados. Tudo isto me tem feito recordar as cada vez mais acertadas palavras de um grande “camarigueiro”, expressão usada pelo próprio: “camarada, amigo e companheiro”. Trabalhámos juntos em Lisboa, professor de matemática, mas dedicadamente dado às coisas da história e do tempos que passam, meu grande mestre João Pereira, juntamente com o mestre Marco Teixeira, marinheiros de Tejo acima, Douro abaixo e garimpeiros por ribeiras desbravadas das pouquíssimas areias de ouro que os romanos não levaram para Roma. Há ideias que guardo dos nossos saudosos tempos, de amizade, boa mesa e bom vinho, muitas vezes em modo olisipólogo, a passear guia-turisticamente e desvelando os cantos, as camadas e as estórias que a cidade de Lisboa viveu. Recordo as suas palavras do “olha que os impérios nascem e morrem, a história está sempre a repetir-se” por mais que nos julguemos contemporâneos, tecnológicos e confiados em que a história não se repete, ou melhor, confiados na nossa vã capacidade de fazer com que a história não se repita. O voltar à estaca zero está sempre ao virar da esquina, os impérios caem e muitos conhecimentos se perdem. Muitas vezes demoramos séculos, milénios a recuperá-los. Exemplo, os extintos povos ameríndios tinham nas suas cidades sistemas eficientes de esgotos e saneamento, algo que só foi uma realidade corrente nas nossas europeias vidas há um par de décadas, parece exagero, mas é verdade. É só querermos dar uma vista de olhos ao passado. Aquilo que os incas (século XIII – XVI) inovaram em termos de arquitetura e engenharia, estradas e pontes, sistemas de rega e irrigação, foi algo no qual só se conseguiram fazer avanços (em algumas partes do mundo) há um par de dias. Parece que até na medicina praticavam uma espécie de intervenção cirúrgica como a que veio a dar um prémio Nobel de medicina a Egas Moniz, em 1949. E sobejam exemplos destes, de avanços, estagnação e recuos. O próprio planeta Terra a cada tantos milhões de anos por catástrofes ou alterações climáticas, volta a embaralhar e dar novas cartas. Não há tempo nenhum da história que não tenha acabado, nenhuma época que não tenha parcial ou totalmente claudicado e voltado a renascer. É a evidência da vida humana, individual e socialmente. De maneiras que para quem vive de ser arauto ou corifeu em temas e assuntos em geral e em particular, talvez seja preferível assumir que o mundo é assim mesmo, jogar pelo seguro e, pelo sim pelo não, demonstrar mais entendimento, estando um pouco mais perto de acertar no alvo e fazendo também um pouco mais para que valha a pena lhes passarmos cartucho. Estes tempos de céleres e gerais conhecimentos execraram o clássico “só sei que nada sei” em detrimento do inflado “bem sei que tudo sei”. O segundo é mais contemporâneo, mas o primeiro continua a estar muito mais acertado, na minha desespecializada opinião.

 

16 de Agosto de 1974

Ora, “bons dias vos dê Deus!”, ao que vocês me respondem: “Deus vos dê bons dias!”. Era assim que se cumprimentava em bom trasmontano nordestino nos jovens tempos da vovó viral. Hoje vou falar de um ano marcante na história portuguesa, assinalado com datas especiais. Para o país foi o 25 de Abril, para uns poucos foi o 25 de Novembro. Abertas dualidades políticas que antes não se praticavam e que surgiram nesse ano quente do qual se diz que dispensa apresentações, mas sobre o qual as apresentações não estão ainda todas feitas. Não sem antes ser contada a determinante história do dia 16 de Agosto e o desenrolar de acontecimentos que marcaram as relações transfronteiriças se não de duas nações ou de duas regiões, pelo menos marcaram certamente a história da vida de quem os viveu. Podem crer que já vi documentários bem menos mirabolantes. E agora que cheguei até aqui a prender a vossa atenção e a fazer a trama prometer, não sei como haverei de conseguir não defraudar as vossas expectativas. Vou começar por fazer como o poeta Luís Vaz e pedir inspiração às Ninfas do Rio Maçãs para ver se me dão tantico engenho. Aí vai, o melhor que sei ou o melhor que ouvi contar. Esta é a história de um penálti em Alcañices, ou Alcaniças como se diz em bom português de Avelanoso. Era dia de São Roque Santeiro nessa raiana vila espanhola e a mocidade deste lado da Serra do Mó não podia faltar à festa. E festa era coisa que não havia sem a final da Liga dos Campões luso-espanhola, trasmontano-alistana que se disputava todos os anos por essas fechas no teatro dos sonhos que eram as eiras, um pouco para lá da praça maior. As condições estavam perfeitas para a prática do futebol de alta competição, céu limpo, humidade relativa abaixo dos 20%, a terra batida bem fofa e aparada à espera de ser roçada por joelhos e cotovelos, muito pó, restos de palha dalgumas malhas de centeio e um ou outro rebolo de dimensões acima das medidas regulamentares, prontamente retirados antes do início da partida. O estádio confortável com gente apinhada sob o sol abrasador. Tudo a postos. No dia anterior alguém tinha ido a pé até Santanas (aldeia espanhola mais próxima) a pedir que no dia seguinte a tal hora da tarde lá estivesse um táxi para levar alguns futebolistas portugueses para o jogo. Isto porque nessa semana tinha havido um ciberataque e a rede móvel andava em baixo. A outra parte da comitiva iria de carro por Quintanilha. A equipa na sua máxima força. No entanto, havia um problema, é que se do lado de cá já se recém- -saboreavam livres virtudes, do outro lado ainda subsistia um franco obstáculo. E a liberdade tinha ainda fronteiras bem definidas. Os titularíssimos Zé Galhardo, Casimiro Pires, Casimiro João, Abel Galhardo foram de carro (se falha algum nome a culpa é de quem me narrou, eu não acrescentei nenhum ponto). De Avelanoso a Pinelo, Outeiro, Paçô, estrada de Bragança a Quintanilha e aí chegados parou o baile! É claro que se fossem a pé seris mais rápido do que dando tamanha volta, mas a juventude já tinha proa e ninguém queria ir a uma festa com os sapatos engraxados, as calças passadas a ferro ou a camisa lavada cobertas com as camadas de pó que as carrejas dos carros de pão deixavam pelos caminhos. Octávio, Zé Miranda e Adérito já no táxi de Santanas para Alcañices, ao chegar à aduana barrados pelos carabineiros: o taxista que os levasse de volta e se certificasse que entravam em Portugal, não queriam lá portugueses infetados com os vírus da democracia. Deram meia-volta e após a primeira curva fechada um aviso ao motorista, mais teimoso em obedecer às ordens da autoridade do que às ordens de paragem dos atletas: “olha que ele veio do Ultramar, se não páras mata- -te aqui como a uma galinha”. Passado meia hora estavam a juntar-se à mocidade espanhola. Estes foram falar com o alcaide, bastante interessado em que se cumprisse festa e futebol. Telefonou para Zamora a explicar que era antiga a tradição e que a única política que lhes interessava era a do pontapé para a frente. O Major em Zamora autorizou o partido e game on! Alguns que não tinham o hábito de jogar tiveram de ser convocados à última hora, como o Ramiro e o Marcolino. Assim contado até parece que o resultado pouco interessava, mas interessa sempre. Uma combativa igualdade a uma bola, empate para Avelanoso de penálti. Marcador, Adérito, depois disso jogador profissional, Benfica, Rio Ave, famoso pé canhão. Diz quem assistiu a esse pontapé de penálti que nunca se viu chuto tão forte em que uma bola andou mais tempo pelo ar. Que só vendo é que se acredita onde a bola foi parar, a umas paredes longe das eiras, que um dia, diz meu pai, me vai levar lá a ver o sítio só para ver a distância do remate. Um golo de belo efeito e longo alcance. Depois do jogo uns bocadilhos e umas gasosas providenciadas pelos anfitriões, outras vezes umas barras e chocolate ou umas bananas que os espanhóis as tinham baratas e em Avelanoso ainda não abundavam. Barriga acomodada e viva a festa, que ainda hoje continua a ser das mais fortes de Zamora. Os outros titulares sempre retidos em Quintanilha até noite dentro sem ninguém saber deles (ainda a tal falha de rede) e diz que a única coisa que puseram ao dente foram umas melancias oferecidas por um emigrante de passagem. Resumidamente, foi assim esse dia, se este guionista não teve grande talento para o descrever, pouco importa. O que fica para a história são as vivências do dia de 16 de Agosto na memória dos seus actores. Durante gerações os homens de Avelanoso souberam bem quanto valia um jogo de futebol além-Portugal e as montanhas que estavam dispostos a superar para poder correr atrás de uma bola nas eiras socalcadas de Alcañices entre paus de pinho e engrideiras. Eles e os seus camaradas espanhóis. Esta é a história de um jogo de futebol em Alcañices que fala por todos os outros e cujo significado e simbolismo se vai perdendo hoje nas brumas da memória. Por isso, no que depender deste texto, o dia de 16 de Agosto de 1974 andará sempre por aí para ser devidamente marcado e celebrado como todos os grande golos de antologia. Um forte abraço!

Vamo-nos cumprindo

Bons dias, bons olhos vos vejam! Às vezes parece que andamos todos muito snobes para saudar os outros, os portugueses estão a perder os seus bons modos. Cada vez menos se dão os bons dias, já ninguém agradece a passagem dada no trânsito, andamos cada vez mais ásperos. Em todo o mundo, creio. Quando cheguei à China os novos saltavam do lugar que nem molas mal um velho entrava no autocarro, agora enfiam todos as cabeças nos “cacharricos” (como diz a minha mãe) e que se lixem os velhos, que se lixem todos. No caso dos portugueses, guardamos a simpatia para os turistas, talvez não a usemos muito entre nós para não a gastar e a deixar quase intacta para os estrangeiros. Por outro lado, as redes sociais vieram extremar as pessoas e as interações, nivelam-nos por baixo, destacam ódios e invejas. Temos mais liberdade, mas somos menos democratas e muito mais intolerantes. Creio que após a democracia nunca fomos um país de tanta intolerância como somos hoje. Defendemos o tudo ou o nada, o oito ou o oitenta, um dos lados da barricada num mundo implacavelmente dual e extremado (four legs good, two legs bad) e ruminamos ódio e repulsa por quem está do outro lado, por quem não vê o mundo como nós o vemos e desejamos. Da política ao futebol, de rede social em rede social, da comunicação social ao vizinho do lado. Aquela frase, atribuída a Voltaire, do poderei não concordar com as tuas palavras, mas lutarei com unhas e dentes para que as possas dizer, passou de moda. Conceito fundamental para uma democracia saudável, mas tão fora de moda como uma caneta ou um passe-vite. Hoje a mentalidade é “lutarei até onde puder para que as coisas sejam como eu e os meus queremos”. Ainda estava eu na faculdade, nas listas para a associação de estudantes e defendiam muitos “se ganharmos vamos proibir a praxe”, numa faculdade onde as praxes até eram bem exemplares comparativamente com outras instituições. Ninguém dizia “se ganharmos, vamos fazer tudo para garantir que as praxes se façam de forma efetivamente respeitadora, integradora ou inclusiva”. Somos todos lobos em pele de cordeiro, cada vez somos todos mais autoritários, despóticos em pele de arautos da liberdade à minha maneira e dos que a entendem como eu. É triste e é perigoso. Quer-me parecer que os grandes democratas deste país são ainda os membros mais velhos que sabem o que é viver outros tempos mais duros, que tentam pôr experiência e bom-senso na fervura, embora muitos deles já se tenham também convertido a esta segregante endemia dos nossos tempos. Esta semana ouvi um senhor chamado António Barreto, que tantos contributos deu a este país, daquelas pessoas que vale sempre a pena ouvir. Este senhor falava dos vários inimigos dos “valores da cultura humanística, da tolerância e da liberdade”. Afirmou, inclusive - espasme-se neste mundo de incompatibilidades e intolerâncias - que os deputados recém- -eleitos do terceiro partido mais votado nas últimas legislativas valem exatamente o mesmo que os deputados de todos os outros partidos, que não estão “a mais” uma vez que foram escolhidos pelo povo e que “o combate tem de ser sempre feito em democracia”. Parecem palavras óbvias, mas escasseiam estas disposições, minguam estes princípios, rareiam estes democratas, faltam os grandes parlamentares e o debate de ideias desligado das pessoas que as veiculam. Tudo se tornou pessoal e ofensivo. A sensação que todos sentimos é a de que a política (e os políticos) de hoje é a “política menos mal”. Os partidos que temos, deputados e governantes, tudo é menos mal, vai-se andando, podia ser pior, haja saúde. Nem falar dos debates das legislativas em que se atacou a pessoa sem nada se acrescentar, em que se colocou o foco no indivíduo, em que se desperdiçaram boas oportunidades para nos aproximar. Não sei se os políticos partem do princípio de que somos um povo estupidificado que se regozija nesta forma pecuária de transformar a luta política numa luta de chafurdar na lama, ou se são eles próprios reflexo deste clima rasteiro de crispação olho por olho, dente por dente; mas, se os debates são o espetáculo da política, então foram um triste e lamacento espetáculo em que ninguém mereceu ganhar. Um anti-jogo, uma política big brother famosos, um discurso oco unicamente focado na maledicência e na destruição. Uma verdadeira vergonha- -alheira que é uma vergonha que desponta em quem está a ver supostos políticos a usar aquilo que seria uma oportunidade de debater temas prementes para se dedicar ao enchimento do chouriço com tudo o que de mais gorduroso e visceroso há para embutir. Sobretudo, as partes mais ossudas, peludas e miúdas, tudo enfiado lá para dentro. Dependendo da perspetiva, esse discurso assemelha-se a um balão de ar ou a um grosso butelo feito com carne e ossos partidos do espinhaço e das costelas do porco, envoltos na bexiga ou no bucho do mesmo animal. E neste compasso, nesta sociedade odiosa, de costas voltadas, de gente que odeia a diferença e de gente que diz ser aberta à diferença, mas odeia quem pensa diferente de si, olhamos para o televisor e ouvimos as palavras atropeladas dos políticos «oinc, oinc, oinc». Afinamos melhor o ouvido e percebemos o mesmo indistinto «oinc, oinc, oinc», tudo é já um contínuo e sobreposto grunhir. Abrimos a boca para comentar e, de cada vez que o fazemos, das nossas gargantas sai semelhante ronco «oinc, oinc, oinc» em nada diferindo dos outros. Por todo o lado, nas nossas casas, nas ruas e nos ecrãs, ressoa o repetir invasivo de uníssonos grunhidos. Finalmente, vamo-nos cumprindo, chegados à última frase do livro: «The creatures outside looked from pig to man, and from man to pig, and from pig to man again; but already it was impossible to say which was which.»