Chimpar relhas e estadulhos

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Bons dias, gente m a d r u g a d o r a ! Que estas palavras vos encontrem de saúde a desfrutar dos ares inspiradores do outono trasmontano. Ares que se desfruem bem pela fresca porque nas horas de calor a inspiração é mais vagarosa, letárgica. Logo desde manhã muito cedinho porque a por manhã é que se começa o dia. Um passeio matutino pelo termo por entre escovas, leitaregas e queirolas. Não há nada melhor, são puros remédios que não se vendem na farmácia. Assim como não se vendem lampaças das quais os pais e avós de outrora faziam curativos chás. Gente que possuía uma sensibilidade e sapiência da ervanária local que merecia ser registada, catalogada. Hoje não venho evocar medicinais saberes, mas sim usos e desusos, trago na maleta palavras que deixaram de andar nas bocas do mundo. Começo por saudar os autores da vizinha Folha Mirandesa e destacar que adiante se farão aproximações ou se revelarão contiguidades com os vocábulos mirandeses, uma vez que as lhonas de hoje têm como ponto de partida a aldeia de Avelanoso que partilha ancestrais termos (tanto no sentido territorial/administrativo como no linguístico) com o mirandês e as suas terras. Aliás, é uma das Três Marras juntamente com Alcañices e São Martinho de Angueira. Marras e marrões que ninguém ousou chimpar. Não quero entrar a partir, mas começo já por aí, chimpar (tombar, derrubar, fazer cair). Os mais velhos diziam aos garotos: “não és capaz de o chimpar” ou “vê se chimpas aquele”. Noutros tempos desafiava-se um jogo da luta, uma espécie de judo trasmontano em que o objetivo era agarrar o outro e fazê-lo cair. Também se usava “chimpar o fito”. E não haveria de faltar vontade de chimpar alguns xodairos, pessoas pouco recomendáveis de levar e trazer, alcoviteiros de meter o nariz em vida alheia. Muito pano para má-língua lhes dariam as rexertas, moças irrequietas, indomáveis, particularmente guichas. Jovens que certamente ouviriam dos seus pares expressões como “estás muito jónica” (referência à elegância da arquitetura clássica) ou “hoje andas muito à balalaica” (vestida com roupas novas). Indumentárias novas ou domingueiras que não se recomendavam para os trabalhos do campo: nem para acarrejar o pão (transportar centeio, trigou ou feno em carro) ou limpar augueiros, muito menos para esgadanhar gatunhas (plantas invasivas) ou para lavrar. Por falar em lavrar, atente-se nas palavras que se perderam sulcadas pelo tempo e pelas charruas dos tractores. Queiram pegar em papel e caneta e apontar o que andava na ponta da língua de quem sabia manusear arados e conhecia as suas peças como a palma da mãozeira, rabela, relheiro, relha, orelheiras, pespeneiro, tesa, teiró, cunho e timão. São dez palavras que foram para as queirolas (urze rasteira predominante em altitude nas serras) e saíram inteirinhas da língua portuguesa como um beldro (porção de lã que se tirava como um manto aquando da tosquia das canhonas). Uma dezena de vocábulos que chimparam de uma assentada com o descostume dos arados de tração animal. Assim são as línguas, com células que morrem e outras que nascem ao sabor da vida e do quotidiano. E no quotidiano de hoje já não se leva o burro à feira de maneira que arriaram os atafais, a albarda, a silha e a cabeçada. Também os carros de bois são agora, quando muito, meios de transporte de valia decorativa ou museológica de modo que descontinuaram: estadulho e estadulheira, aceda, cabesnalha e picanços, espichões e coucelhões, meões, cambos ou cambões, travessanho e angarela, caniças ou caniços, estrado e barbiões, gancha e endireiteira, e, por vezes, lúrias ou engrideiras (cordas). Mais um alqueire de palavras (só aqui estão vinte) que sumiram das bocas do povo, dos falares característicos de algumas comunidades, cambiantes sociolinguísticos próprios de uso circunscrito a pequenas delimitações geográficas. As mesmas dificuldades se colocam à língua mirandesa cujas peculiares palavras se referem a plantas e animais, hábitos ou objetos que maioritariamente já não se utilizam ou vivenciam. O mirandês é expressão de um contexto cultural e socioeconómico que sofreu alterações mais profundas nas recentes décadas do que durante largos séculos anteriores. Por isso, o esforço diário do mirandês é o de se recriar, de se reavivar, de se quotidianizar, respeitando a força resistente da sua identidade, mas sem cair no erro de se tornar um bem museológico ou apenas a romantizada expressão de uma realidade pretérita. Em Avelanoso, carear o gado (evitar que fuja para outros locais que não aqueles onde o pastor quer que ele fica) já não é uma preocupação tão grande dos pastores como era dantes em que se cuidava cada metro quadrado do termo. Pastores que não pernoitam nas terras no Verão e, por isso, não têm as pastoricas (pirilampos) como companhia, nem lobos a uliar. Continuam a abundar lampianas e urretas, bulhacas e bubelos, caneleiros e leitaregas, embora mingue quem saiba ler a literatura que a natureza escreve através delas. Onde haja leitaregas há pouca acidez, são indicações que os terrenos dão a quem as sabe interpretar. Lampiana é a parte menos funda de um lameiro, mais inclinado e mais seco onde a erva cresce menos. São falas doutas, embora não sejam minhas, mas emprestadas por meu pai. Justiça seja escrita. Urretas, marras e praineiras, rocos e pulelas, hedras e granheiras. Palavras que ainda se esforçam para não definhar, mas sobretudo palavras de que os tempos se ocupam de chimpar. É a vida, são as línguas. Um forte abraço!

Manuel João Pires