Bons dias, bons olhos vos vejam! Às vezes parece que andamos todos muito snobes para saudar os outros, os portugueses estão a perder os seus bons modos. Cada vez menos se dão os bons dias, já ninguém agradece a passagem dada no trânsito, andamos cada vez mais ásperos. Em todo o mundo, creio. Quando cheguei à China os novos saltavam do lugar que nem molas mal um velho entrava no autocarro, agora enfiam todos as cabeças nos “cacharricos” (como diz a minha mãe) e que se lixem os velhos, que se lixem todos. No caso dos portugueses, guardamos a simpatia para os turistas, talvez não a usemos muito entre nós para não a gastar e a deixar quase intacta para os estrangeiros. Por outro lado, as redes sociais vieram extremar as pessoas e as interações, nivelam-nos por baixo, destacam ódios e invejas. Temos mais liberdade, mas somos menos democratas e muito mais intolerantes. Creio que após a democracia nunca fomos um país de tanta intolerância como somos hoje. Defendemos o tudo ou o nada, o oito ou o oitenta, um dos lados da barricada num mundo implacavelmente dual e extremado (four legs good, two legs bad) e ruminamos ódio e repulsa por quem está do outro lado, por quem não vê o mundo como nós o vemos e desejamos. Da política ao futebol, de rede social em rede social, da comunicação social ao vizinho do lado. Aquela frase, atribuída a Voltaire, do poderei não concordar com as tuas palavras, mas lutarei com unhas e dentes para que as possas dizer, passou de moda. Conceito fundamental para uma democracia saudável, mas tão fora de moda como uma caneta ou um passe-vite. Hoje a mentalidade é “lutarei até onde puder para que as coisas sejam como eu e os meus queremos”. Ainda estava eu na faculdade, nas listas para a associação de estudantes e defendiam muitos “se ganharmos vamos proibir a praxe”, numa faculdade onde as praxes até eram bem exemplares comparativamente com outras instituições. Ninguém dizia “se ganharmos, vamos fazer tudo para garantir que as praxes se façam de forma efetivamente respeitadora, integradora ou inclusiva”. Somos todos lobos em pele de cordeiro, cada vez somos todos mais autoritários, despóticos em pele de arautos da liberdade à minha maneira e dos que a entendem como eu. É triste e é perigoso. Quer-me parecer que os grandes democratas deste país são ainda os membros mais velhos que sabem o que é viver outros tempos mais duros, que tentam pôr experiência e bom-senso na fervura, embora muitos deles já se tenham também convertido a esta segregante endemia dos nossos tempos. Esta semana ouvi um senhor chamado António Barreto, que tantos contributos deu a este país, daquelas pessoas que vale sempre a pena ouvir. Este senhor falava dos vários inimigos dos “valores da cultura humanística, da tolerância e da liberdade”. Afirmou, inclusive - espasme-se neste mundo de incompatibilidades e intolerâncias - que os deputados recém- -eleitos do terceiro partido mais votado nas últimas legislativas valem exatamente o mesmo que os deputados de todos os outros partidos, que não estão “a mais” uma vez que foram escolhidos pelo povo e que “o combate tem de ser sempre feito em democracia”. Parecem palavras óbvias, mas escasseiam estas disposições, minguam estes princípios, rareiam estes democratas, faltam os grandes parlamentares e o debate de ideias desligado das pessoas que as veiculam. Tudo se tornou pessoal e ofensivo. A sensação que todos sentimos é a de que a política (e os políticos) de hoje é a “política menos mal”. Os partidos que temos, deputados e governantes, tudo é menos mal, vai-se andando, podia ser pior, haja saúde. Nem falar dos debates das legislativas em que se atacou a pessoa sem nada se acrescentar, em que se colocou o foco no indivíduo, em que se desperdiçaram boas oportunidades para nos aproximar. Não sei se os políticos partem do princípio de que somos um povo estupidificado que se regozija nesta forma pecuária de transformar a luta política numa luta de chafurdar na lama, ou se são eles próprios reflexo deste clima rasteiro de crispação olho por olho, dente por dente; mas, se os debates são o espetáculo da política, então foram um triste e lamacento espetáculo em que ninguém mereceu ganhar. Um anti-jogo, uma política big brother famosos, um discurso oco unicamente focado na maledicência e na destruição. Uma verdadeira vergonha- -alheira que é uma vergonha que desponta em quem está a ver supostos políticos a usar aquilo que seria uma oportunidade de debater temas prementes para se dedicar ao enchimento do chouriço com tudo o que de mais gorduroso e visceroso há para embutir. Sobretudo, as partes mais ossudas, peludas e miúdas, tudo enfiado lá para dentro. Dependendo da perspetiva, esse discurso assemelha-se a um balão de ar ou a um grosso butelo feito com carne e ossos partidos do espinhaço e das costelas do porco, envoltos na bexiga ou no bucho do mesmo animal. E neste compasso, nesta sociedade odiosa, de costas voltadas, de gente que odeia a diferença e de gente que diz ser aberta à diferença, mas odeia quem pensa diferente de si, olhamos para o televisor e ouvimos as palavras atropeladas dos políticos «oinc, oinc, oinc». Afinamos melhor o ouvido e percebemos o mesmo indistinto «oinc, oinc, oinc», tudo é já um contínuo e sobreposto grunhir. Abrimos a boca para comentar e, de cada vez que o fazemos, das nossas gargantas sai semelhante ronco «oinc, oinc, oinc» em nada diferindo dos outros. Por todo o lado, nas nossas casas, nas ruas e nos ecrãs, ressoa o repetir invasivo de uníssonos grunhidos. Finalmente, vamo-nos cumprindo, chegados à última frase do livro: «The creatures outside looked from pig to man, and from man to pig, and from pig to man again; but already it was impossible to say which was which.»