Manuel João Pires

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O silêncio dos indecentes

Ora boas tarde. Espero que essa saúde esteja boa e que vão desfrutando das tardes soalheiras. Tudo sabe melhor ao sol, inclusive voltar ao normal. Hoje vou falar de uma coisa que domino na óptica do observador. Há as pessoas que gostam e percebem das redes sociais porque vivem dentro delas e não passam sem aquele burburinho do posta aqui, partilha acolá e depois há as pessoas como eu que vão acompanhando a actividade das redes sociais na perspectiva do espectador que fica de fora a apreciar o modo como os outros se divertem a fazer as coisas lá dentro. Não é um adepto a ver o jogo da porta do estádio, ansioso por irromper torniquete adentro, mas mais um mirone que aparece ali em dia de jogo porque toda aquela movimentação e corropio surge agora também nos meios noticiosos tradicionais. Acabo por fazer como aqueles senhores da Liga dos Últimos que iam à bola mas não viam o futebol. O que os entusiasmava era o frenesim das tardes de bola. E as rodadas de minis, também. No meu caso o que se passa nas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, etc.) chega-me através das notícias que vou lendo. Antigamente os jornalistas tinham o mundo como matéria passível de ser notícia, agora têm o mundo em geral e o mundo das redes sociais em particular. Os jornalistas têm mais por onde trabalhar porque podem noticiar as coisas que acontecem no mundo cá fora e depois noticiar o que foi dito sobre elas dentro do mundo das redes sociais. É a notícia ao quadrado. Parece confuso, mas são dois mundos muito paralelos e não poucas vezes falaciosos. Uma das características do mundo das redes sociais é que tem sempre de se mexer, de estar em movimento. Não pode fazer uma pausa, desconectar-se, tirar um fim de semana para desconfinar as ideias e ir simplesmente ver os passadiços do Paiva, sem fotos, likes ou toda aquela parafernália que o traz à beira de um burnout. Quem está dentro, essencialmente gosta de opinar sobre coisas e parece ter de haver sempre um ou vários temas a circular para ninguém ficar parado. Todos os assuntos e propósitos são bem-vindos para dar ao dedo mas os temas propensos à indignação são os jogos grandes das redes sociais. Existem os que estão no relvado a suar e comer relva, bola cá, bola lá, as claques a apoiar os seus, equipas técnicas a mandar bitaites, bifanas, cervejume, é a festa da taça, às vezes saem cacetadas, o pessoal bate palmas ou assobia, há quem entre com tudo e quem peça licença para fazer uma faltinha técnica, mas no fim a coisa termina em bem porque afinal é tudo muito impessoal. Normalmente os jogos acabam porque começam logo outros. Os temas sucedem-se no mundo externo, hoje de manhã era porque um governante fez uma coisa qualquer, logo à noite é porque uma figura disse não sei o quê. Mas o mundo externo muitas vezes é só o pretexto, a ignição, porque as redes sociais só precisam de um lamiré, uma faísca para pôr o motor a trabalhar, depois são auto-suficientes e é sempre a dar gás. Apenas necessitam de um empurrão porque depois a indignação passa a centrar-se nos comentários que se fazem lá dentro. Normalmente os jogadores já se conhecem e as equipas também. De tal modo que muitas vezes as opiniões de alguns são já expectáveis e previsíveis. Há os jogadores mais valiosos, mais admirados, os que resolvem jogos e atraem multidões. E também há os que estão ali para destruir e levar pancada. É um desporto emocionante e universal. Outra coisa que um mirone tem dificuldade em perceber é o impulso incontrolável que as redes sociais exercem rumo à auto-demolição. Actos aparentemente muito estúpidos, a roçar a mais pueril irresponsabilidade, revestem- -se ali de grande naturalidade. Exemplos: um jogador de futebol proibido de sair e todos os seus familiares e amigos espalham fotos da festança, inclusive o próprio; um funcionário que tem transtorno obsessivo-compulsivo nas falanges dos dedos e não encontra melhor sítio para mandar o chefe às malvas do que ir escarrapachá-lo onde todos possam ver, inclusive o visado. Um juiz que na frente de um telemóvel ou computador sofre de absoluta incapacidade de guardar segredos de justiça, clubismos ou partidarismos. É um ímpeto que não olha a classes sociais ou económicas e que também se pode verificar pela quantidade de vezes que lemos notícias porque alguém fez um determinado comentário numa rede social. Até ministros da cultura já foram demitidos por isso, o que prova que não ocorre por falta de cultura ou parolice, mas é antes uma inerência de se ser um cidadão contemporâneo. Creio que é algo que já virá no código genético das próximas gerações, embora faça menos falta do que o apêndice ou os dentes do siso. Uma característica que parece estar-se a desenvolver, e que já surge noticiada, é o silêncio dos indecentes nas redes sociais. Quando um jogo grande está a decorrer e se encontra no seu auge, ataque, contra-ataque, com todos os elementos a dar o seu melhor, o facto de alguns jogadores não participarem parece deixar muitos outros revoltados. Fulano não disse nada sobre isto, então fulano é a favor ou contra isto. Não interessa se fulano estava na casa de banho ou se tinha outras coisas para fazer que o desviaram da internet. Não disse nada e por isso disse tudo, o execrável. Seja o assunto o racismo, os desconfinamentos ou outro qualquer, é notícia o silêncio de quem não participa nesses jogos grandes das redes sociais. Não interessa se a pessoa expressa a sua opinião cá fora ou se as suas acções falam por si, o importante é despejar qualquer coisa para não fazer parar a dinâmica. Assume-se ou convenciona-se que a intervenção cívica se resume a premir umas teclas. Teclei, está feito, sou um cidadão exemplar, venha a próxima. Nem interessa se se é um perfeito energúmeno, desde que se mostre a pele certa no ecrã está tudo bem. Preocupamo-nos mais em ser e parecer lá dentro do que cá fora. É fútil e é assim que nos vamos silenciando onde não nos devíamos silenciar.

A infantil idade

Bons dias, forte gente. Espero que vos encontreis bem de saúde. O vírus vai esmorecendo, mas não esmorecem os problemas com que o mundo se descose e se esfarrapa. São tempos inusitados de emoções despidas em que nos revelamos nós, se revelam as sociedades e ressai também a inépcia de muitos corifeus desgovernados que governam grandes porções deste planeta. Recentemente ocorreu mais um recorrente episódio em que se avultou algo que nunca deixou de estar presente, os desequilíbrios raciais nos EUA. Um país onde a segregação racial sempre foi regra e que se vai libertando disso com muitos tabus pelo meio, muito estigma e desconfiança e com as nefastas consequências sempre a pender sobre os social e economicamente mais desfavorecidos. Tudo muito complexo e muito estado- -unidense para poder ser explicado em tão pouco espaço. Por exemplo, para nós a Beyoncé é a Beyoncé, uma estrela pop à escala mundial. Nos EUA a Beyoncé é uma estrela pop afro-americana, sempre com este sublinhado. Quando lá estive e o noticiário dava a notícia do seu concerto, apresentador e jornalistas faziam sempre acompanhar afro-americana de cada vez que pronunciavam o seu nome. Não sei se é por uma questão de discriminação positiva, para destacar que entre os afro-americanos também há celebridades mundiais e não apenas indigentes. Mas por outro lado parece estar- -se sempre a rotular ou a reduzir a pessoa à sua origem ou cor da pele. É estranho e desconfortável, mas é assim que fazem, para não dizer que lá, apesar de tanto afro, tanto brancos como pretos pouco ou nada sabem sobre África, já é uma sorte se souberem que não é um país. Aqui tenho um grande amigo dos arredores de Nova Iorque que me perguntava quando nos conhecemos se na Europa os brancos interagiam assim à vontade com os pretos. A dimensão e as implicações da exclusão social e racial, mesmo havendo realidades delicadas no nosso país, é um pouco difícil de perceber e até de conceber à luz da nossa forma de viver e fazer as coisas. Tal como é o faroeste do armamento na sociedade ou a polícia americana, agressiva, descerebrada e aparatosa como para nós é suposto as polícias não serem. Mas na verdade eu queria falar da infantil idade e de livros para crianças. Há uns meses tinha encomendado uns livros para a minha filha que só me chegaram agora depois destes meses de nevoeiro. Curiosamente são três livros intitulados “I am...” que explicam muito bem às crianças a vida de três figuras históricas afro-americanas. Um dos livros chama- -se “I am Jackie Robinson”, sobre o primeiro afro-americano a ser integrado numa equipa profissional de baseball, as suas batalhas, aquilo que teve de penar para conquistar o seu meritório lugar. Outro livro é sobre Martin Luther King e o modo como este homem se fez um orador venerado que deixou palavras e apelos gravados para a história da humanidade e cuja vida acabou por perecer precisamente às mãos das balas e do ódio que tanto combatia e que ainda hoje lancinam sonhos de paz e igualdade. O outro livro é sobre Rosa Parks, uma mulher, costureira de profissão, que ficou para a posteridade por não se ter levantado para dar lugar a um branco que estava em pé no autocarro. Isto ocorreu em 1955, quando os pretos só podiam ocupar os bancos traseiros e entrar pela porta de trás e ainda tinham de dar lugar aos brancos se estes não tivessem um lugar vago para se sentar. Por ficar sentada, sem mover um dedo, desencadeou um movimento de emancipação e protesto da comunidade afro-americana que boicotou o uso de autocarros e fez reverter esta medida. Um simples gesto para uma mulher, uma grande atitude para a humanidade. Há quem diga que ela estava demasiado cansada para se levantar, mas Rosa Parks dizia que apenas estava “cansada de conceder”. São livros preciosos para todas as idades pois explicam com frontalidade e com bons textos e ilustrações a vida destas pessoas e os tempos que então se viviam, terminando com uma cronologia e fotos verdadeiras dos próprios. Ficamos a saber que por todo o lado havia casas de banho, elevadores ou bebedouros específicos para “colored people”, que nos autocarros as filas de trás eram para pretos, havendo uma placazinha a sinalizar, e que o motorista ainda poderia colocá-la mais para trás caso houvesse muitos brancos sem lugar para se sentarem. Estes e muitos outros episódios compunham a sociedade naturalmente racista e segregada desses anos. Até hoje talvez só tenha mudado o naturalmente ou assumidamente. De outra coleção também adquiri um livro chamado “A de Activismo” para ambientar as crianças a conceitos como igualdade, democracia e participação a vários níveis. Os pais de hoje em dia tendem (tendemos) a tirar tudo o que não sejam príncipes encantados e princesas fúteis da frente das crianças, fazendo-as viver numa bolha demasiado perfeitinha até que fechadas num quarto descubram a internet e as redes sociais e com ela toda a muita porcaria que por aí se esconde sem filtro nem critério. É necessário começar cedo a mostrar que o mundo não foi sempre como é hoje e que as pessoas não se trataram nem se tratam sempre da mesma maneira. Nem na nossa comunidade e muito menos pelo mundo. Conhecimento e amor pelo próximo desde tenra idade só fazem bem. Como apelou o irmão de George Floyd no discurso em memória do seu irmão: “Eduquem-se. Não esperem que outra pessoa vos diga quem é quem. Vamos mudar, mas pacificamente, por favor”. Redondos vocábulos que tudo dizem. Estamos cansados de nos desunir, de nos destruir, de nos incompreender. Eduquemos as nossas crianças para quererem e tentarem algo melhor. Da infantil idade para o futuro, um sentido abraço!

Nação Crioula

Boas tardes, forte gente. Espero que se encontrem bem de saúde e a desconfinar como manda a lei e sobretudo o bom senso. Proteger os outros, protegendo-nos a nós mesmos. Basicamente é o que há a fazer nos próximos tempos. Quem me acompanha sabe que nem sempre sou de comentar os assuntos mais mundanos que enchem o quotidiano. Não sou um opinador diário e profissional que viva de ter de comentar tudo o que mexe por isso não tenho esse dever e muito menos essa vontade, embora, naturalmente, haja situações que mexem connosco mais dos que outras e que nos impelem a deixar um registo sobre o que vai acontecendo. No outro dia estava a ler a notícia do jovem artista que foi encontrado morto depois de estar desaparecido durante alguns meses. Uma história com contornos que ainda não estão bem compreendidos, com uma trama cheia de dúvidas e omissões que fazem jus aos fins trágicos, cheios de incógnitas e múltiplas versões das grandes estrelas da música. Era um rapaz que se apresentava como Mota Jr e cuja música rap ou hip hop reflectia as suas vivências desde as profundezas de um bairro como outros, escondido por entre os subúrbios mais desbotados de Lisboa. Concretamente no bairro da Baixada, São Marcos, Cacém. Apesar da sua imagem aparentemente mais ofensiva, característica de quem interpreta este tipo de música e que não é incomum servir de pele - a melhor defesa é o ataque - para quem cresce nestes meios sociais, via-se que era um rapaz transparente e inocente (binómio comum, também) demasiado até, uma vez que não tinha decoro em mostrar o dinheiro e os bens que ia conseguindo através do seu trabalho musical. E parece, até ver, que foi essa ostentação presente nos vídeos das suas músicas que levou à cobiça dos criminosos que lhe roubaram, inclusive, a vida. Esta é a história resumida e é também o mau exemplo da história que deve ser considerado por quem segue estas pisadas e por todos em geral. Mas quem somos nós, quem é a sociedade para condenar um jovem que mostra o que ganha à medida que se vai libertando do buraco quando todos escarranchamos tudo nas redes sociais, os filhos, onde estamos, o que temos, o que pensamos dos outros... Que atire a primeira pedra quem use as redes sociais sem revelar nada ou quem saiba reflectir colocando-se na pele do outro antes de disparar injúrias. Dizia há tempos uma responsável da Interpol que 60% das fotografias apanhadas nos sites de pedofilia são roubadas a partir das fotos que os pais colocam das suas próprias crianças nas redes sociais. É fácil apontar erros aos outros, mas nem sempre é fácil aprender com eles. Há uma fala épica num filme brasileiro em que depois do Neto, um dos aspirantes a comandante da Tropa de Elite, ter sido assassinado na favela por irreflexão e descuido, o Capitão Nascimento diz: “Se o Neto tivesse a inteligência do Matias teria sido bem mais fácil. Mas quem disse que a vida é fácil?” Pois sim, a vida não é fácil por definição e andamos cá para viver com isso e para ir aprendendo qualquer coisa pelo caminho. No entanto, a história deste jovem tem lados positivos e poderosos, é neles que me quero focar. Primeiro, este jovem sendo português falava crioulo e, melhor, construiu a sua carreira a cantar em crioulo. Não há muitos portugueses que saibam falar crioulo. Crioulo de Cabo Verde, com ligeiríssimas diferenças do da Guiné, semelhantes nas suas mesclas de ingredientes do português e das línguas e dialectos do ocidente africano. Um dos muitos descendentes que a língua portuguesa foi dando ao mundo e que nem sempre é devidamente lembrado. Um jovem português fazer carreira, ter centenas de milhares de seguidores e milhões de visualizações cantando em crioulo é algo digno de grande relevo. Um feito único e absolutamente representativo da diversidade linguística e cultural da língua portuguesa em toda a sua riqueza e imprevisibilidade. O facto deste jovem português, sem nunca ter tirado os pés de um bairro perdido nos arrabaldes lisboetas, produzir música em crioulo e assim acumular fãs e concertos é algo peculiar no nosso panorama musical e artístico. Só por isso o seu curto legado acrescentou valor e originalidade. Mas há mais. O outro grande feito deste jovem perfeitamente desconhecido entres nós portugueses foi ter ido a Cabo Verde e à Guiné Bissau e esgotar estádios apinhados de gente para o ouvir cantar. É incrível que um jovem num dia esteja no seu bairro social, vivendo os dias arrastados de muitos jovens destes pequenos e isolados guetos e “no dia seguinte” esteja em África com estádios nacionais cheios a seus pés das bancadas ao relvado. Este é o lado incrível e arrebatador de um marginal entre marginais, marginalizados até mesmo quando conseguem feitos ao alcance de muito poucos. Há pessoas que criticam as suas letras, mas a verdade é que as pessoas criticam tudo. Até criticam que alguém aprenda outra língua e que a use para criar arte. Nada a fazer contra quem insiste em ostentar a sua pobreza de espírito. Ele cantava e representava aquilo que era e foi precisamente isso que o levou a conquistar a juventude que conquistou. Dois factos que ninguém pode tirar à sua história e que perdurarão. A sua arte fica cá para isso. Para contribuir à sua singularíssima maneira para esta Nação Crioula em que pessoas, línguas e culturas de vários quadrantes brotam juntas do coração de um bairro feio e esquecido para o mundo de língua portuguesa. É obra. Podes descansar em paz, David. Como tu dizias com orgulho, Baixada Sta Na Casa. Um abraço!

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

Abril e Maio, sempre!

Bons dias, boa gente. Espero que não vos falte saúde nem força para atravessar estes dias singulares. Há datas e valores que nos devem acompanhar todos os dias, mas queria fazer referência à entrada no inspirador mês de Maio, soalheiro e granaio. Abril e Maio significam dias de cantar a liberdade por entre semanas de liberdades restringidas. Ainda assim não pode uma pessoa que escreve textos, nem jornalista ou editor de jornal esquecer a data que há quase 50 anos nos deu a liberdade e a naturalidade com que fazemos estas coisas. Uma data cuja vivacidade das memórias se vai desvanecendo e que um dia tanto descaso terá como a Implantação da República e antes dela a Restauração e outros acasos que cicatrizam, caracterizam e até aqui trouxeram este povo. Por isso, assinale-se a liberdade. Queria ter dito viva-se ou celebre-se, mas no meio deste clima, até a liberdade fica temporariamente sem grande celebração. Pese embora o modesto aniversário, assinalemo-la efusivamente dentro de nós, o dia de mudança que nos abriu as portas e nos permitiu fazermo-nos gente. De nada valiam histórias nem impérios se éramos um povo miserável e medieval onde crianças morriam ao nascer por falta de tudo o que faz a dignidade. Onde os poucos rapazes que ficavam eram encaixotados para a guerra e lhes amputavam anos de vida em defesa de impedir os outros de defenderem o direito de terem mão na sua própria terra. Deus nos livre de franciscana e analfabeta miséria por mais trambolhões que dêem as economias e já agora que nos livre também de violências e prisões por mais agrestes que sejam as pandemias. Mas um Deus da igualdade, fraterno e solidário, não o Deus castrador, coercivo e de dantescos infernos que então se apresentava omni-presente como capataz de um regime pobre e podre. Um país terceiro-mundista desprezado por todos. Um país cujos tempos vincaram uma imagem atrasada aos olhos de outras nações e da qual ainda hoje lutamos por nos libertar. Um país onde nas aldeias do Nordeste vizinhos pediam de porta em porta por um cibo de pão ou um por um pauzito de lenha para se aquecerem e onde já depois de Abril quando os médicos iam falar às pessoas sobre planeamento familiar, de lá saíam corridos à pedrada por se atreverem a querer contrariar as mais elementares e aleatórias leis divinas. Não queria falar tanto do passado, embora seja importante não caírmos no esquecimento do que fomos há tão pouco tempo. Depois de Abril as portas foram-se abrindo, entrámos na Europa e por aí fomos aprendendo a construir a democracia e o desenvolvimento. E assim, nos tornámos um país que hoje, apesar das suas limitações e dependências, não deve nada em organização, conhecimento ou competência a nenhum outro país, tal como estes tempos em que todos enfrentaram um mesmo desafio vieram demonstrar. Até em termos de fazer a democracia temos já uma maturidade assinalável. Uma maturidade que nos permite dar ao luxo de nos dias populistas de hoje ter o equilíbrio convencionado e a educação suficiente para não embarcar em extremos ou saber colocá-los no devido lugar. O lugar do ódio, o lugar da segregação, o lugar da desigualdade. O lugar de tudo aquilo que não queremos nem precisamos. E mais, com a cereja em cima do bolo democrático que Voltaire defendia que é dar voz a alguns lobos em pele de cordeiro para que possamos perceber e distinguir quais são os valores e as ideias salubres das não potáveis. Sem medos, sem nos deixarmos contaminar, com equilíbrio e confiantes em quem somos e ainda mais nas novas gerações que despontam. Mas sem esmorecer nas medidas preventivas nem fazer descaso da história recente. É por isso que quando alguns escribas associam Abril a “traição”, como aconteceu neste jornal, se lhes deve dar viva voz para que a pobreza dos seus ódios e a exiguidade dos seus espíritos escorram até se perderem no bueiro dos dias. Brindo à sua liberdade de com ela fazer o que lhe aprouver e de com ela espingardar na direção que quiser, mesmo que o seu espírito pouca mais liberdade lhe saiba dar do que andar a disparar sempre nos mesmos e a desdizer até as datas que lhe permitiram que o possa fazer de pleno direito de forma pública e desimpedida. Que assim sempre seja a nossa sociedade. Viva a nossa democracia! Viva a liberdade de todos mesmo que por hora condicionada ao parapeito da janela ou da varanda. Viva a natureza em força que nos traz o mês de Maio e a força da natureza humana que não pode mais ser amordaçada ou tolhida. Não em Portugal. Somos nós os teus cantores da matinal canção, pois sempre no mês do trigo se cantará. Abril e Maio, sempre!
PS: “Numa sociedade saudável não deve haver apenas uma voz”. Nunca, acrescento eu. Que voem livres estas palavras desabafadas para uma clandestina e segredada posteridade que um jovem médico deixou cair há meses por entre o seu leito final.

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen
Cantão Guangdong – China

Comum todo

Bons dias, saudosos amigos. As notícias começam a soar mais encorajadoras, que assim continuem. Venham de lá todas as boas novas, mas com muitos caldos de galinha, para ver se saímos desta cepa torta. Fase seguinte, tudo passa, algumas coisas permanecem para memórias vindouras, outras não. As grandes batalhas perpetuam a bravura dos seus batalhadores mais insignes, as duras empresas erguem alto o nome dos seus maiores ventureiros, os grandes labores notabilizam os seus reconhecidos mesteres. Quanto aos operários e soldados desconhecidos, sem os quais nada, erguem-se quanto muito desconhecidas estátuas. Esta semana espalhou-se aqui um desses vídeos que de repente correm até ao conhecimento de todos, recordando aos humanos que ainda neles arde um feixe de humanidade. Trazemos o mundo no bolso e do bolso vemos o mundo, minuto sim, minuto não. Em tempos antigos quem podia ia ao bolso buscar o relógio para consultar as horas, agora todos podemos e todos vamos ao bolso para consultar o mundo. Na maioria das vezes dele não chegam boas notícias, outras outras vezes chegam novas que nos lembram que nem só de sangue e de carnes se preenchem as nossas entranhas. 

O caso é o de um rapaz das entregas de comida do qual por entre casa vai, casa vem, aproveitou ter de recolher algo numa loja de conveniência para comprar uma vela e um desses bolos amassados sem graça nem brio individualmente ensacados. Esta parte da história veio-se a perceber depois de alguém de uma janela ter filmado o rapaz no meio de uma noite já longa e escura, solitariamente sentado na companhia do lancil de um passeio amigo e da sua fiel motoreta, a puxar do isqueiro e a acender a vela do seu bolo para o que sugere ser a celebração consigo mesmo de mais um seu aniversário. Findada a ceia e a pequena pausa festiva, o rapaz tira finalmente o casco da cabeça e varre com o antebraço o que parecem ser lágrimas a sair-lhe da cara, segundos antes de se montar na motoreta e largar na noite de volta à labuta. Rapaz, sei quem tu és mas desconheço-te, soldado conhecido por um dia do qual prontamente se esquecerá o teu nome. Não haveria planos que funcionassem nem quarentenas que resistissem se estes rapazes não nos tivessem desde sempre trazido com todo o estoicismo e precisão as compras do supermercado e a comida a tempo e horas mesmo até à porta de casa. Trabalharam tal como se pandemias não existissem. Os rapazes das empresas de take away merecem uma estátua. Quantas horas trabalham, dia e noite, e quanto trabalham para ganhar a vida, mais uma entrega mais uns cobres, toca (o telemóvel) e foge (para outra recolha). A solidão e as lágrimas esquecidas ao relento que só agora vimos e percebemos também somos nós que as despertamos, nós que temos alguém a satisfazer as nossas necessidades e muitas vezes os nossos caprichos que não nos querem desprendidos do conforto dos nossos espaços. As facilidades e conveniências dos nossos dias também se fazem de outros seres humanos que dão as suas vidas a esse manifesto. Um manifesto pouco nobre ao qual só reconhecemos nobreza quando o mundo nos faz parar e recolher, desnudando as nossas emoções e recentrando as nossas atenções. Tal como os trabalhadores da construção civil - ninguém ergue mais a China do que eles - que findado o dia de trabalho se juntam na soleira dos seus condomínios pré-fabricados e fazem dos seus capacetes um banco, no qual se sentam empoeirados para respirar a paz dos fins de tarde de malga de arroz na mão e aos domingos dão passeios felizes e ensaboados pelas cercanias das suas moradias. Instalações pré-fabricadas onde se vive (com as famílias, nas mais luxuosas) e de onde só saem quando completas as grandiosas edificações após meses ou anos, e onde muitas vezes, por serem pagos no final da empreitada, os empreiteiros partem e os deixam literalmente de bolsos a abanar. Uma moldura neo-realista dos tempos em que o neo-realismo era uma voz presa na garganta num museu de apurado capitalismo. Pessoas comuns, pessoas cujos olhos procuram o que procuramos todos por entre a poeira dos dias. Não me contem histórias de valentias nem de heróis, contem-me a mim e à minha filha histórias daquilo que os olhos veem, histórias de pessoas comuns como eu e tu que lutam pelas mesmas alegrias e contra as mesmas amarguras e que andam por aí a tentar perceber se amanhã nascerá um dia melhor que o de hoje. Que não se levantem estátuas de deuses nem de corifeus, mas que o cinzel e a forja dêem forma a pessoas vulgares que não podem se não sacrificar-se para que os demais continuem a ser tão demais como sempre. O justo e o injusto no mundo dos homens e em cada um de nós. A todos as pessoas comuns que sobejamente conhecemos e das quais dependemos nas batalhas de todos os dias mas que continuam e continuarão tão desconhecidas como sempre, obrigado e um abraço, sentido e demorado.

 

Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

Quartel em Abrantes

Bons dias, boa gente. Espero que se encontrem de boa saúde. Nesta altura não há muito a dizer nem há muito para noticiar. Bastaria pôr um daqueles placards a mostrar-nos os números que interessam saber para irmos continuando a rogar para que desçam tão depressa quanto possível. No entanto, o serviço público que um jornal presta à sua comunidade não se limita a mostrar notícias, mas também a manter a sua população ciente das exigências do momento e do que tem a fazer para o enfrentar. Deste modo, começo por endereçar um grande bem haja à intrépida e laboriosa equipa do Jornal do Nordeste que ao longo deste processo ainda não parou de nos informar, consciencializar e fazer boa companhia. Não ganho mais nem menos por este preâmbulo, mas considero justo salientar o trabalho a seu dono e deixar estas palavras de apreço numa altura em que todos carecemos delas. De resto, temos de cumprir as medidas, acompanhar o que as autoridades vão recomendando e ir aguentando o tranco o melhor que podemos, agarrando-nos ao tangível e ao intangível. É natural que nestas alturas bastante sensíveis emocionalmente as pessoas sejam mais dadas a falar e a escrever num tom mais exasperado. Entre os apocalípticos dias do fim e o nada será como dantes venha o mafarrico e escolha. Eu não sei se haverá muitas pessoas com a mesma opinião, mas ao contrário do que tanto se apregoa, acredito que tudo será absolutamente igual depois desta onda passar. Certamente vamos estar mais preparados para outras vagas do género por estarem mais frescas na memória, mas de resto pouco ou nada irá mudar. Quando estamos a falar com os nervos, de mãos juntas aludindo aos favores supremos de Santa Bárbara, a penar na circundante via sacra entre a sala e o quarto, nesse momento tudo prometemos, tudo será totalmente diferente, em tudo iremos mudar. Amigos, se há pessoas a beijar o menino em plena pandemia, no meio deste medo que se vive há gente que vai de criança ao colo e tudo dar a beijoca da ordem da tradição pascal. Então imaginem daqui a um tempo quando não houver epidemia. A economia não terá outro remédio se não subir e além disso não vão faltar afectos, nem beijos nem abraços, por isso não catastrofizemos. Mas o tudo na mesma como a lesma que se recomporá daqui a uns tempos nem o digo por causa destes episódios de incumprimento. Digo-o porque basta dar uma vista de olhos pela nossa história e para a história do mundo, só a contemporânea é suficiente. Tudo muda e tudo é para sempre, mas o “para sempre” acaba sempre muito antes do tempo. E os imprevistos que surjam, não são nada que etse mundo não tenha visto antes. Vejam o nada será como dantes do pós-Segunda Guerra, as organizações que se criaram, as cooperações e amizades que se firmaram, a pujança económica que brotou e olhem como está a Europa passado tão pouco tempo, dividida, falida, segregada. E o mundo encolhido por crises e terrorismos a pressentir a cada dia que passa o pânico de guerras ainda mais destruidoras. Quantos juraram a pés juntos que nada mais seria igual quando novos amanhãs se levantaram e portas de Abril se abriram e depois viram chegar FMI’s a vir dar a mão uns após os outros, a inveja e mesquinhez franciscanas que nunca deixaram de castrar, os 3 F’s que nunca deixaram de alegrar, a mesma sangria de juventude a pôr-se ao fresco de saco às costas. Quem disse que nada poderia ser como dantes no que à desertificação do interior diz respeito enquanto implorava primeiro por condições de vida, depois por estradas e por aviões e no fim já só por gente que chegue de qualquer jeito? E a Europa, terra de migrantes e emigrantes, que se espalharam, que se misturaram, que fundaram países e ajudaram outros a reerguer-se e por hora se tornou terra onde se fecham as portas aos que agora passam as mesmas necessidades e onde se vai à mala do carro para sacar das soqueiras e dos tacos de baseball dos extremismos para os apontar a esses, ao próximo e a nós mesmos.

Não há para sempres nem há amanhãs que nunca mais se tornem o mesmo na humanidade. Não há impérios que sempre durem nem epidemias que nunca acabem. Tudo é um mesmo ciclo de manhã à noite, das nove às cinco. O ser humano pouco mais pode fazer se não voltar a ser humano e retomar a sua vidinha, voltar aos seus probleminhas do quotidiano, ora dentro de quatro paredes, ora fora delas. A economia vai descer, mas fiquem descansados porque daqui a uns tempos tudo voltará à mesmíssima regularidade. No curto prazo haverá alguns esforços e cuidados enquanto tudo estiver vivo na memória, mas ainda assim tudo voltará ao normal e provavelmente ainda com mais força de viver a normalidade. Depois de o pau deixar de ir e vir por aí à solta e as costas folgarem, tudo assentará como de costume. Quartel em Abrantes, tudo tão igual como dantes.

Os primeiros dias

Boas tardes, meus caros. Nestas alturas em que só se fala do mesmo e em que pouco mais há a saber se não cumprir o que tem de ser feito, deixo-vos uma letra alternativa para uma música famigerada. Para serem ainda mais atingidos pelo vírus do desespero, não vale a pena dedicar-se tanto tempo este tema. Já basta ter de vivê-lo. Muita notícia, nenhuma novidade. Tirar daí a atenção e esperar que o tempo passe focando-vos noutra coisa qualquer. Serviço público neste momento, mais do que bater na mesma dolorosa tecla, é manter as pessoas o mais distraídas possível. Fácil falar, bem sei, quando todos estamos no mesmo barco sem dele podermos sair, mas façamos um esforço. Mais um, de esforço em esforço, todos os eternos dias até ao final da tempestade. Uma globalização vestida de pandemia que atingiu todos os cantos, mesmo os mais improváveis. Quem diria que uma batalha que nos pede para ficar no sofá nos faria ir tanto ao fundo de nós. Ir e voltar umas quantas vezes. Paradoxos de um mundo actual onde todos os dias são primeiros em emoções e todos se querem o último de uma vez por todas. Aí vai, para distrair, adaptado de Sérgio Godinho e para se ler ao ritmo da música:

A principio é simples, chega de mansinho, É coisa de terceiro, não do nosso mundinho,

Está-se bem nas ruas e no burburinho, Quem sofre ao longe não é o nosso vizinho.

E onde não há história, uma ideia esquecida

Hoje é mais um dia por entre a nossa vida

Hoje é mais um dia por entre a nossa vida

Pouco a pouco fica o olhar mais profundo, Algo se aproxima a cada novo segundo

Não há de ser nada aqui neste mundo, Sai mais um whatsapp como pano de fundo.

E assim se leva a história meio entretida

Hoje é mais um dia por entre a nossa vida

Hoje é mais um dia por entre a nossa vida.

E é então que o pavio se torna mais estreito, Finalmente anunciam um caso insuspeito

Será que não é nada ou leva tudo a eito?, De qualquer das formas não há plano perfeito.

E nesta história meio mal entendida

Hoje é quase o primeiro dia do resto da nossa vida

Hoje é quase o primeiro dia do resto da nossa vida.

Depois surge o respeito por menor que seja, Olhem que isto é sério e a todos bafeja,

Não, para mim é só nos velhos, salvo seja, Não vou deixar de ir beber a minha cerveja.

E a autoridade igualmente perdida

Hoje é quase o primeiro dia do resto da nossa vida

Hoje é quase o primeiro dia do resto da nossa vida.

Depois tomam-se medidas de fio a pavio, Perdem-se muitas vidas na corrente do rio,

Emoções dançam, constante rodopio, Engole-se o medo até c'um copo vazio

E a gente lembra a canção conhecida

Hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida

Hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida

E entretanto o tempo finge que não passa, O que parecia fácil o coração nos trespassa

Nasce um novo dia e ninguém se abraça, Todo o mundo gira mas só dentro de casa

E puxamos à memória uma prece sentida

Que hoje seja o último dia desta pausa na nossa vida

Que hoje seja o último dia desta pausa na nossa vida

Pedimos ao incerto que nos devolva o futuro, O mundo não seja outra vez um muro

Ao medo dizemos-lhe que já estamos por tudo, À vida que apenas venha em estado puro

E puxamos à memória uma prece sentida,

Que hoje seja o último dia desta pausa na nossa vida

Que hoje seja o último dia desta pausa na nossa vida.

 

Porque hoje são os primeiros dias do resto da nossa vida. Foi para o que me deu pessoal. Aliás, a própria letra original assenta perfeitamente a esta situação. Neste lado continuamos à espera que as instituições de ensino abram, há uma ou outra escola aberta “à experiência” para ver se corre bem e se se pode voltar ao normal, mas é complicado. Vê-se que o pessoal ainda não circula em força, meio por desconfiança e meio por que as pessoas levaram um grande rombo nas carteiras. Vê-se muito restaurante e muita loja às moscas. Aqui as famílias não dependem tanto dos serviços como nós, mas dos negócios porque tudo se compra e se vende num mercado enorme que dá para quase todos. Vamos ver. Mantenham-se ocupados e o mais distantes de tudo isto que conseguirem. Um abraço muito apertado para todo o Nordeste e em especial para a aldeia de Avelanoso!

Máscaras Rituais

Ora bons dias, forte gente. Parece que aí está tempo de se fazerem bons lumes. Ao lume bem se está até porque agora não há muito mais sítios por onde estar. Há que ficar por casa a sair pouco e a interagir com outros o mínimo possível para se poder mitigar o bicho bem mitigado. Agora que o embate aperta as pessoas parecem mais cientes do que têm a fazer, principalmente desde que tem afectado as comunidades mais pequenas e o impacto se tem sentido, por exemplo, em lares de idosos por todo país. Acho que o país tem reagido bem, embora com algumas excepções de gente que perde a cabeça com dois raios de sol ou acha que isto é tarefa para se ir fazendo dia sim, dia não. É que para se ficar uns dias em casa e noutros andar-se por aí no meio do barulho a estragar a dieta, para isso nem vale a pena tanto sacrifício. Os médicos já estão suficientemente esgotados para lhes azucrinarem ainda mais a paciência. Mas tirando esses episódios creio que as pessoas e as autoridades têm respondido da melhor forma ao estado de emergência. Ainda há pouco falava com o presidente da junta das freguesias de Vale Frades, Avelanoso, Serapicos e São Joanico (parecem mais as freguesias que os fregueses) e nota-se que se estão a seguir as normas exemplarmente. Estabelecimentos não essenciais fechados, desinfecção de espaços, serviços a funcionar com regras estritas na interacção entre as pessoas, tele-trabalho, acessos a Espanha vedados. Os portugueses estão aprimorados na arte de organizar eventos. Essa parte está garantida, agora falta é pôr todo o pessoal a cooperar com a organização. Outra coisa que eu também considero que falta são as máscaras. É que quem passou pelo surto deste lado, numa altura em que quase tudo era desconhecimento, aprendeu a usar a máscara como uma extensão da sua própria face. Ainda hoje que já aliviou um pouco e a normalidade se vai instalando são de uso obrigatório. Já houve dias em que pensei que se fosse em pelota para a rua mas com uma máscara no rosto seria considerado mais normal ou menos senil do que todo vestido mas sem ela. Uma vez nos dias mais críticos saí de casa à pressa para recolher umas compras, esqueci-me de a pôr e dois vizinhos à porta do prédio começaram a afastar-se de mim por entre esgares de pânico, pelo que mal me apercebi da minha atrocidade enquanto cidadão fiz marcha atrás e fui buscar a máscara. Ou seja, quem passa por isto, quem é educado a enfrentar o vírus desta forma, tem muita dificuldade em ver as pessoas na Europa a interagirem desprotegidamente, inclusive jornalistas nas ruas ou governantes em diversos eventos oficiais. Os médicos aqui recomendaram o uso de máscara desde a primeira hora, mesmo os médicos portugueses em Macau já alertaram para a importância do uso de máscaras, mas sabemos que a questão é essencialmente de natureza logística. Não há meios para toda a Europa poder usá-las quando muitas vezes nem sequer o próprio pessoal médico as tem em quantidade suficiente. É uma questão puramente económica. O governo chinês permitiu que imensas fábricas se convertessem à produção de máscaras. Por exemplo, inúmeras empresas que antes produziam todo o tipo de têxteis estao agora a produzir máscaras massivamente, de modo que aqui é relativamente fácil adquiri- -las. As autoridades locais até as vendem a preços de produção ou as oferecem caso as pessoas tenham mais dificuldades financeiras. Porque reparem, isto nao é muito agradável de se dizer, mas nesta batalha somos todos suspeitos, mesmo todos. É assim que se abordou e se aborda a situação deste lado porque nenhum de nós pode jurar que não está infectado ou que não é um possível foco de infeção. Partindo desse princípio, que creio ser um princípio sério de respeito para com a epidemia, a máscara impede não só que eu seja contagiado, mas acima de tudo impede que eu contagie os outros. É uma medida absolutmente preventiva. E é também a razão pela qual eu acredito que as coisas já não se descontrolem tanto por aqui. Usar uma máscara só depois de se estar infectado quando já há muitas trancas à porta e já os contactos da pessoa com terceiros estão restringidíssimos, nao é uma medida preventiva nem que impeça a propagação desenfreada. O propósito da máscara não é para que eu não apanhe, é para que eu não transmita. Todos somos supeitos e parece estar provado que a máscara impede que se liberte tanta, digamos, porcaria pelos ares. E aquela história do tocar na boca, etc, não é bem assim porque se uma pessoa tiver cuidados com as mãos (devida lavagem e desinfecção) posso-vos garantir que até uma criança pequena desde que devidamente avisada, sabe que deve evitar ao máximo mexer na cara, na máscara e os procedimenros a ter com ela. Neste momento, eu ou qualquer pessoa que tenha passado por esta luta dentro desta cultura de combate ao vírus, nenhum de nós teria coragem de andar aí a fazer o dia a dia no meio de uns e outros, mais longe ou mais perto, sem uma máscara no rosto. Nem que me pagassem. Todos os médicos aqui sao unânimes em referir o seu papel preventivo. Aí é uma questão de logística e de recursos, e por isso igualmente compreensível. Não é a coisa mais agradável de usar mas uma pessoa acaba por se habituar perfeitamente. E pode-se reusar caso não haja grande interação ou não se use por muito tempo. Pelo sim, pelo não, proteja os outros protegendo a sua boca e o seu nariz. Porque nem só de caretos vivem as máscaras. Cuidem-se bem. Um forte abraço!

 

Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

Pedras de afiar

Deus vos dê bons dias, boa gente. Espero que estejam a atravessar este momento com optimismo e sentido de responsabilidade. Todos sabem já o que têm a fazer e todos já perceberam a proporção deste problema, cuja resolução depende do contributo activo de cada cidadão. Nunca é demais consciencializar as pessoas para este fim. Introdução feita, mudemos um pouco de assunto. Desanuviemos, dialoguemos. Para provar que também se podem encetar vivos diálogos por entre o papel das páginas de jornal, vou pegar num tema do amigo Luís Ferreira, que há tempos escrevia aqui sobre a pequena “navalhita prateada” que seu pai trazia no bolso e da qual o Luís, querendo seguir o mesmo hábito, sempre dela se esquecia, mesmo quando a ocasião mandava cortar um cacho de presunto ou algum cibo de pão. Creio que a navalha era parte da indentidade socio-económica trasmontana como objecto multifuncional, imprescindível para quem passava os dias (e às vezes, no Verão, as noites) no termo a tratar dos gados e das terras. Quão desprevenido estaria um homem nesses afazeres se não tivesse uma faca para cortar um baraço que fosse, para merendar ou para qualquer outro improviso que a vida do campo requeresse. E, claro, para defesa ou segurança, pelo menos psicológica, em relação a algum perigo que pudesse surgir nessas andanças. Uma boa navalha era uma fiel amiga do homem. Nos comensais momentos de convívio dir-se-ia com orgulho “esta não falha”, “a minha até corta papel” ou “já a trago há mais de 20 anos”. E das navalhas, vamos às profissões que puntuavam os dias preenchidos das aldeias do Nordeste. O carpinteiro que fazia as mesas e os bancos, o taberneiro que tinha sempre um copo de vinho à mão e onde o ambiente por vezes tomaria proporções de cortar à faca quando os jogos de cartas subiam de tom. Andava também pelas aldeias muita gente de passagem, o peleiro, a comprar as peles dos animais, os carvoeiros, a vender carvão, o azeiteiro, que trocava azeite por outros bens. Muitas vezes era mais trocar do que vender. Ouvi dizer que a minha avó costumava trocal mel por azeite. Outros cirandavam pelas aldeias a pedir a quem muito não teria para dar. Pedir lenha, no Inverno, por exemplo, para conseguir dar calor aos filhos. Sinto que Portugal tem uma certa aversão ou embaraço em se debruçar sobre estes temas, sobre o quotidiano desses tempos. Talvez tenham sido anos e décadas duras, mas assim nos construímos há tão pouco tempo. No nosso pensar de agora fomos sempre uns pós-Europa, todos aprumadinhos com wifi em todo o lado, já nascemos todos no hospital e usámos todos fraldas descartáveis. São questões de identidade que eu creio que ainda iremos desempoeirar e procurar mais adiante. Mas eu queria chegar ao ferreiro. O ferreiro, por trabalhar o ferro e produzir, entre muitos outros utensílios, a navalha, seria das profissões mais importantes de uma aldeia. O meu pai contou-me que antes de ir para a tropa o ferreiro de Avelanoso, que se chamava tio Isaque, lhe ofereceu uma faca de qualidade ímpar, com a qual se manteve inseparável de Santa Margarida aos planaltos dos Macondes. O movimento migratóio ou diáspora das navalhas trasmontanas também daria um tópico de afiado interessante. Falta referir as pedras de afiar. Havia quem as tivesse à porta de casa junto ao banco de pedra, em alguns sítios ainda hoje lá estão. Muitas vezes eram motivo para se dar os bons dias, parava-se, afiava-se a navalha, trocavam-se dois dedos de conversa com quem estivesse à porta de casa a descansar ou a debulhar alguma vagem. Algumas destas pedras de xisto tinham melhor qualidade que outras para afiar as navalhas segundo os entendidos do assunto. Enfim, todo um tempo, uma história e uma organização social que se pode aguçar em torno deste pequeno objecto. E não falei de Palaçoulo, incontornável, uma aldeia que se fez e que se faz do fabrico de icónicas facas. Voltando ao amigo Luís e às suas palavras certeiras sobre as perniciosas intenções que continuam a servir-se deste objecto para pautar os nossos dias mais infames. Más intenções que não são de agora, claro está, a “faca e o alguidar” teimam em deixar de se apresentar como solução irracional para alguns seres humanos resolverem os seus problemas. Este lado negro ou “Bairro Negro”, recorda- -me também o Fado e os seus primórdios, já que as navalhas eram igualmente leais companheiras dos bolsos e das noites dos fadistas, nome dado aos rufias ou marginais lisboetas daquele tempo. Aliás, o fado, o tango, o blues e toda a arte que um dia nasceu marginal. O Museu do Fado tem uma vitrine onde se podem apreciar alguns desses toscos espécimes confiscados pelos quadrilheiros. A navalha, parte da iconografia do fado trasmontano, embora em desuso para os fins apropriados, tal como muitas outras coisas que fazem parte dessa iconografia. Ironicamente, a espaços, continua ainda a ser usada para fins mais próximos dos do fado lisboeta de há dois séculos. Enfim, o que faz falta é acalmar a malta e não nos esquecermos da navalha na hora H, ou seja, na hora de atacar a fogaça, o queijo, a chouriça, a tabafeia, a posta de vitela... Um forte abraço e protegei-vos bem!

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

O povo unido

Boas tardes, minhas gentes. Já aqui fui relatando as teias desta história. Os chineses não sabiam o que isto era e quando fecharam as portas já o bicho se tinha escapado. No entanto, os europeus também estiveram a asistir sentados durante mais de um mês e pouco ou nada se precaveram quando ele bateu à porta desse lado. Mas agora não tem qualquer interesse andar a remoer estas coisas, porque a questão é agir e procurar respostas para o imediato. É um problema público. Não interessa a dimensão, mas sim que é algo que tem de ser resolvido com a participação de todos nós, sem falta. Como tal, é importante seguir-se de forma comprometida o que as autoridades recomendam. As instituições e os meios de comunicação, como este distinto jornal, têm o dever de cumprir este papel junto das comunidades a quem chegam. Algumas pessoas, especificamente, também têm uma importância enorme na forma como se passa a mensagem. Por exemplo, pessoas como o Tio João que tem uma grande responsabilidade em manter as pessoas que o ouvem a par do que têm a fazer, sobretudo as que estão mais desatentas e menos cientes do que realmente estamos a atravessar. Eu sei que muita gente já passou por muita coisa e eventualmente até por coisas bem piores do que isto, mas isso não é desculpa para não se precaverem e protegerem a vossa saúde. Todas as pessoas nas vilas e aldeias com maior responsabilidade social devem também ter esta preocupação porque, posso-vos dizer que, às vezes, os problemas passam na televisão, nos jornais e nas rádios até à exaustão, mas isso pouco chega às pessoas. A avaliar pelo número de vezes que, a esta distância, liguei o computador ou telemóvel e vi notícias sobre o coronavírus nos meios de comunicação portugueses, a informação que saltava, os inúmeros debates, as incontáveis opiniões, inclusive relatos de quem cá estava, todo esse barulho junto de pouco serviu. E no entanto, nem medidas foram tomadas, nem as pessoas sabiam patavina. Por isso é que volto a sublinhar, é importante neste momento que as pessoas que agora estão mais informadas façam este trabalho de grande importância social. Não é o fim do mundo, mas também não é nenhuma brincadeira. Sigam as medidas, tomem precauções, evitem aglomerados, reduzam saídas, se possível neste período evitem a interação com pessoas externas ao vosso grupo social, limpem com maior regularidade e tenham especial atenção a superfícies manuseadas por muitas pessoas (portas, corrimãos, puxadores). Redobrar a lavagem das mãos, ao entrar em casa lavar as mãos antes de tocar em alguma coisa, todos os cuidados são poucos. Evitar também levar as mãos à cara. O vírus não passará se toda a gente fizer o seu. O povo transmontano tem uma característica que é sem dúvida uma vantagem nesta batalha. A sua tradição de sentido comunitário, os hábitos de proximidade, a entreajuda dos mais novos para com os mais velhos, a atenção dos que têm mais energia para quem não tem tanta. Todos esses valores que toda a gente diz escassearem nos dias hoje mas que se fazem sentir a nordeste. O transmontano não está tão destreinado nestas coisas como outros, pelo que agora é o momento para se reforçarem estas práticas. Mas, atenção, que a resiliência transmontana não sirva para encher o peito de ar nem desvalorizar esta pandemia. É altura de pôr mãos à obra com muitos caldos de galinha. Se cada um de nós proteger a sua própria saúde já está a prestar um enorme serviço para a comunidade. Na verdade é o único contributo que se nos pede. Uma conduta individual que contribui diretamente para o bem de todos. Poucas acções individuais têm um efeito mais imediato e visível, mas também mais social e global do que esta. Com cada um fazendo o seu, levando a vida normal, sem dramas que nada ajudam, este bicho não vai ter para onde ir. Há uma parte boa nesta história. Há um lado bom e poderoso na história dos dias negros. O lado em que dependemos mais do que nunca uns dos outros, o lado em que temos de caminhar juntos a compasso, o lado em que o povo transmontano observa para todas as cicatrizes que traz na pele enquanto um sorriso se lhe escapa pelo canto da boca, o lado em que as gerações mais novas podem sentir uma amostra dos apertos pelos quais os pais e avós foram conseguindo escapar. E sentir de como sair desses dias negros tornam outros problemas mais pequenos, mais fúteis. Este vírus vai ter o mérito de nos fazer ver o lado bom dos dias maus. Os colectivos dias maus para quem deles já estava pouco lembrado ou para quem os mesmos não passaram de histórias contadas por outros. O povo trasmontano unido diz sempre presente a todas as pedras no caminho, a todas as batalhas a precisar de ser vencidas. Desta vez não vai ser diferente. Estamos unidos. Um abraço!

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen, Cantão Guangdong – China