Boas tardes, forte gente. Espero que se encontrem bem de saúde e a desconfinar como manda a lei e sobretudo o bom senso. Proteger os outros, protegendo-nos a nós mesmos. Basicamente é o que há a fazer nos próximos tempos. Quem me acompanha sabe que nem sempre sou de comentar os assuntos mais mundanos que enchem o quotidiano. Não sou um opinador diário e profissional que viva de ter de comentar tudo o que mexe por isso não tenho esse dever e muito menos essa vontade, embora, naturalmente, haja situações que mexem connosco mais dos que outras e que nos impelem a deixar um registo sobre o que vai acontecendo. No outro dia estava a ler a notícia do jovem artista que foi encontrado morto depois de estar desaparecido durante alguns meses. Uma história com contornos que ainda não estão bem compreendidos, com uma trama cheia de dúvidas e omissões que fazem jus aos fins trágicos, cheios de incógnitas e múltiplas versões das grandes estrelas da música. Era um rapaz que se apresentava como Mota Jr e cuja música rap ou hip hop reflectia as suas vivências desde as profundezas de um bairro como outros, escondido por entre os subúrbios mais desbotados de Lisboa. Concretamente no bairro da Baixada, São Marcos, Cacém. Apesar da sua imagem aparentemente mais ofensiva, característica de quem interpreta este tipo de música e que não é incomum servir de pele - a melhor defesa é o ataque - para quem cresce nestes meios sociais, via-se que era um rapaz transparente e inocente (binómio comum, também) demasiado até, uma vez que não tinha decoro em mostrar o dinheiro e os bens que ia conseguindo através do seu trabalho musical. E parece, até ver, que foi essa ostentação presente nos vídeos das suas músicas que levou à cobiça dos criminosos que lhe roubaram, inclusive, a vida. Esta é a história resumida e é também o mau exemplo da história que deve ser considerado por quem segue estas pisadas e por todos em geral. Mas quem somos nós, quem é a sociedade para condenar um jovem que mostra o que ganha à medida que se vai libertando do buraco quando todos escarranchamos tudo nas redes sociais, os filhos, onde estamos, o que temos, o que pensamos dos outros... Que atire a primeira pedra quem use as redes sociais sem revelar nada ou quem saiba reflectir colocando-se na pele do outro antes de disparar injúrias. Dizia há tempos uma responsável da Interpol que 60% das fotografias apanhadas nos sites de pedofilia são roubadas a partir das fotos que os pais colocam das suas próprias crianças nas redes sociais. É fácil apontar erros aos outros, mas nem sempre é fácil aprender com eles. Há uma fala épica num filme brasileiro em que depois do Neto, um dos aspirantes a comandante da Tropa de Elite, ter sido assassinado na favela por irreflexão e descuido, o Capitão Nascimento diz: “Se o Neto tivesse a inteligência do Matias teria sido bem mais fácil. Mas quem disse que a vida é fácil?” Pois sim, a vida não é fácil por definição e andamos cá para viver com isso e para ir aprendendo qualquer coisa pelo caminho. No entanto, a história deste jovem tem lados positivos e poderosos, é neles que me quero focar. Primeiro, este jovem sendo português falava crioulo e, melhor, construiu a sua carreira a cantar em crioulo. Não há muitos portugueses que saibam falar crioulo. Crioulo de Cabo Verde, com ligeiríssimas diferenças do da Guiné, semelhantes nas suas mesclas de ingredientes do português e das línguas e dialectos do ocidente africano. Um dos muitos descendentes que a língua portuguesa foi dando ao mundo e que nem sempre é devidamente lembrado. Um jovem português fazer carreira, ter centenas de milhares de seguidores e milhões de visualizações cantando em crioulo é algo digno de grande relevo. Um feito único e absolutamente representativo da diversidade linguística e cultural da língua portuguesa em toda a sua riqueza e imprevisibilidade. O facto deste jovem português, sem nunca ter tirado os pés de um bairro perdido nos arrabaldes lisboetas, produzir música em crioulo e assim acumular fãs e concertos é algo peculiar no nosso panorama musical e artístico. Só por isso o seu curto legado acrescentou valor e originalidade. Mas há mais. O outro grande feito deste jovem perfeitamente desconhecido entres nós portugueses foi ter ido a Cabo Verde e à Guiné Bissau e esgotar estádios apinhados de gente para o ouvir cantar. É incrível que um jovem num dia esteja no seu bairro social, vivendo os dias arrastados de muitos jovens destes pequenos e isolados guetos e “no dia seguinte” esteja em África com estádios nacionais cheios a seus pés das bancadas ao relvado. Este é o lado incrível e arrebatador de um marginal entre marginais, marginalizados até mesmo quando conseguem feitos ao alcance de muito poucos. Há pessoas que criticam as suas letras, mas a verdade é que as pessoas criticam tudo. Até criticam que alguém aprenda outra língua e que a use para criar arte. Nada a fazer contra quem insiste em ostentar a sua pobreza de espírito. Ele cantava e representava aquilo que era e foi precisamente isso que o levou a conquistar a juventude que conquistou. Dois factos que ninguém pode tirar à sua história e que perdurarão. A sua arte fica cá para isso. Para contribuir à sua singularíssima maneira para esta Nação Crioula em que pessoas, línguas e culturas de vários quadrantes brotam juntas do coração de um bairro feio e esquecido para o mundo de língua portuguesa. É obra. Podes descansar em paz, David. Como tu dizias com orgulho, Baixada Sta Na Casa. Um abraço!
* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China