Bons dias, boa gente. Espero que não vos falte saúde nem força para atravessar estes dias singulares. Há datas e valores que nos devem acompanhar todos os dias, mas queria fazer referência à entrada no inspirador mês de Maio, soalheiro e granaio. Abril e Maio significam dias de cantar a liberdade por entre semanas de liberdades restringidas. Ainda assim não pode uma pessoa que escreve textos, nem jornalista ou editor de jornal esquecer a data que há quase 50 anos nos deu a liberdade e a naturalidade com que fazemos estas coisas. Uma data cuja vivacidade das memórias se vai desvanecendo e que um dia tanto descaso terá como a Implantação da República e antes dela a Restauração e outros acasos que cicatrizam, caracterizam e até aqui trouxeram este povo. Por isso, assinale-se a liberdade. Queria ter dito viva-se ou celebre-se, mas no meio deste clima, até a liberdade fica temporariamente sem grande celebração. Pese embora o modesto aniversário, assinalemo-la efusivamente dentro de nós, o dia de mudança que nos abriu as portas e nos permitiu fazermo-nos gente. De nada valiam histórias nem impérios se éramos um povo miserável e medieval onde crianças morriam ao nascer por falta de tudo o que faz a dignidade. Onde os poucos rapazes que ficavam eram encaixotados para a guerra e lhes amputavam anos de vida em defesa de impedir os outros de defenderem o direito de terem mão na sua própria terra. Deus nos livre de franciscana e analfabeta miséria por mais trambolhões que dêem as economias e já agora que nos livre também de violências e prisões por mais agrestes que sejam as pandemias. Mas um Deus da igualdade, fraterno e solidário, não o Deus castrador, coercivo e de dantescos infernos que então se apresentava omni-presente como capataz de um regime pobre e podre. Um país terceiro-mundista desprezado por todos. Um país cujos tempos vincaram uma imagem atrasada aos olhos de outras nações e da qual ainda hoje lutamos por nos libertar. Um país onde nas aldeias do Nordeste vizinhos pediam de porta em porta por um cibo de pão ou um por um pauzito de lenha para se aquecerem e onde já depois de Abril quando os médicos iam falar às pessoas sobre planeamento familiar, de lá saíam corridos à pedrada por se atreverem a querer contrariar as mais elementares e aleatórias leis divinas. Não queria falar tanto do passado, embora seja importante não caírmos no esquecimento do que fomos há tão pouco tempo. Depois de Abril as portas foram-se abrindo, entrámos na Europa e por aí fomos aprendendo a construir a democracia e o desenvolvimento. E assim, nos tornámos um país que hoje, apesar das suas limitações e dependências, não deve nada em organização, conhecimento ou competência a nenhum outro país, tal como estes tempos em que todos enfrentaram um mesmo desafio vieram demonstrar. Até em termos de fazer a democracia temos já uma maturidade assinalável. Uma maturidade que nos permite dar ao luxo de nos dias populistas de hoje ter o equilíbrio convencionado e a educação suficiente para não embarcar em extremos ou saber colocá-los no devido lugar. O lugar do ódio, o lugar da segregação, o lugar da desigualdade. O lugar de tudo aquilo que não queremos nem precisamos. E mais, com a cereja em cima do bolo democrático que Voltaire defendia que é dar voz a alguns lobos em pele de cordeiro para que possamos perceber e distinguir quais são os valores e as ideias salubres das não potáveis. Sem medos, sem nos deixarmos contaminar, com equilíbrio e confiantes em quem somos e ainda mais nas novas gerações que despontam. Mas sem esmorecer nas medidas preventivas nem fazer descaso da história recente. É por isso que quando alguns escribas associam Abril a “traição”, como aconteceu neste jornal, se lhes deve dar viva voz para que a pobreza dos seus ódios e a exiguidade dos seus espíritos escorram até se perderem no bueiro dos dias. Brindo à sua liberdade de com ela fazer o que lhe aprouver e de com ela espingardar na direção que quiser, mesmo que o seu espírito pouca mais liberdade lhe saiba dar do que andar a disparar sempre nos mesmos e a desdizer até as datas que lhe permitiram que o possa fazer de pleno direito de forma pública e desimpedida. Que assim sempre seja a nossa sociedade. Viva a nossa democracia! Viva a liberdade de todos mesmo que por hora condicionada ao parapeito da janela ou da varanda. Viva a natureza em força que nos traz o mês de Maio e a força da natureza humana que não pode mais ser amordaçada ou tolhida. Não em Portugal. Somos nós os teus cantores da matinal canção, pois sempre no mês do trigo se cantará. Abril e Maio, sempre!
PS: “Numa sociedade saudável não deve haver apenas uma voz”. Nunca, acrescento eu. Que voem livres estas palavras desabafadas para uma clandestina e segredada posteridade que um jovem médico deixou cair há meses por entre o seu leito final.
* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen
Cantão Guangdong – China