Ponto da situação

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Boas tardes, boa gente. Cá estamos, continua a clausura. A China está toda de quarentena e as pessoas saem o mínimo possível. O povo tem sido inexcedível, desde os funcionáros dos condomínios, polícias, pessoal médico, até aos professores que estão a dar aulas online. Por todo o país surgiram casos de vírus, espera-se que estagnem ou diminuam. Estamos há três semanas em casa, ir à porta do condomínio e voltar quando há que ir buscar água ou comida. E mesmo assim ir de máscara e de luvas. Sorte que aqui comprar e pagar coisas pela internet é particularmnete fácil, chega tudo a casa num par de minutos. Mas a ordem é de recolhimento quanto possível. Encontramo-nos numa fase que se pode chamar coloquialmente de “vai ou racha”. O futuro ninguém adivinha, mas a verdade é que o povo está a fazer um grande sacrifício, nestas alturas a disciplina e a pertinácia são valores colectivos que dão bastante jeito. Toda a gente está a trabalhar arduamente. Neste momento escolas, bancos, e outros serviços, estão fechados ou a trabalhar online; os autocarros não circulam, muitos restaurantes e supermercados também fechados. Estamos esperançosos que esta contenda seja positiva, que a fase mais crítica do recolhimento passe rápido e que a vida volte à normalidade. Mais do que isto o povo chinês não pode fazer. O ponto da situação é este, não vale a pena avolumar as coisas nem criar mais celeuma aí do que aqui como tem sido hábito. Repare-se no exemplo do que aconteceu em Madrid há poucos dias com o avião que teve problemas na descolagem e andou horas pelas cercanias de Madrid voando a baixa altitude, aterrando depois sem qualquer problema. Os passageiros contaram que o clima dentro do avião era de serenidade e de confiança na tripulação. Admitiram, no entanto, que à medida que os minutos passavam começou a crescer a apreensão e a ansiedade, não pelo que se passava internamente, mas devido a terem contacto com as mensagens de pânico de familiares e amigos juntamente com as mil e uma notícias que se iam conjecturando, ao mesmo tempo que os meios de comunicação punham os olhos furtivos na pista de aterragem à espera da presa. Este episódio é demonstrativo da influência na forma como actualmente interpretamos e agimos em situações que possam envolver perigo e em que somos nós quem se encontra no epicentro desse enredo. Para quem está por dentro é aflição, para os outros é pouco mais do que entretenimento. O medo da situação que enfrentamos nem provém da situação em si mas de toda a enxurrada de informação não filtrada que é derramada em tempo mais que real. Não olhamos para o momento que estamos a atravessar mas para o que se diz dele, o que se supõe dele, o que (mal) se pode prever, ateando muitas vezes emoções e reações que talvez a situação por si nem justifique. Esta nova forma de nós estarmos a ver o que estamos a viver no telemóvel, a saber daquilo por que estamos a passar por quem está do outro lado do mundo num contexto completamente diferente, a ver como os outros interpretam e vivenciam aquilo que só nós próprios experienciamos acaba por ter uma influência indelével no decorrer da própria situação. Por isso, o termo reality show está desactualizado. Nos reality shows por norma não existe uma interação, há alguém que está a ser observado e alguém que oberva e se regozija com isso. O filme Truman Show, com o Jim Carrey, é o paradigma dessa situação. Todo o mundo assistia ao seu dia-a-dia e sabia que a sua vida era um big brother do princípio ao fim, menos o próprio. Com o triunfo das redes sociais o fenómeno social é outro. Inclusive, diferente do que era somente há 10 ou 20 anos. Quem é alvo deste foco, não só tem perfeita noção disso como vai recolher a informação dos que estão a ver, influenciando os seus próprios passos.

É uma interação um pouco intrincada mas muito clara para quem a vive na pele. Até há bem pouco tempo cada situação ia-se percebendo aos poucos, levava semanas, meses, talvez anos a compreender os contornos do que realmente acontecia. Mas agora não há tempo para isso. A informação toda junta é como se fosse uma onda gigante da Nazaré e nós aqueles surfistas lá dentro a cair aos trambolhões até perdermos os sentidos e sermos recolhidos de moto de água para o areal. Despeja-se tudo, o que talvez seja verdade, o que talvez não, o que não interessa a ninguém, os estudos científicos devem ter sido estudados, os especialistas do que ainda não se conhece, os que têm um primo que jura saber, mais o que já deu nos filmes e os que ainda estão por estrear. Tudo actualizado ao segundo, uma coisa e o seu contrário sem ter tempo para se acabar de ler uma nem outra. Ufa, tenham calma, amigos. A vida são dois dias e o entrudo está à porta. Um abraço!

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

Manuel João Pires