O caminho faz-se…

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Manhã cedo. A lua passa o testemunho ao sol antes de se desvanecer. As casas de pedra, o tanque e a amoreira envoltos numa sombra a clarear. Nos pés as botas que não falham. Quando os calos doem, lembram-se sempre das velhas botas. Pois são essas mesmas. Na mochila duas laranjas, uma para cada um, uma garrafa de água, pouco mais. O caminho começa nos paralelos durante alguns metros, não muitos, só enquanto percorremos o centro da aldeia. Nas horas seguintes seguimos pelo alcatrão, pela estrada antiga que passa por Vale de Frades. Aqui havia um caminho, subia aquela ladeira e cortava para a direita lá em cima onde estão aqueles pinhos. Mas agora já não anda ninguém pelos termos e os caminhos perdem-se. Dantes andava tudo limpinho, não se via uma erva. Passo a passo. Do lado esquerdo uma corriça, as vacas madrugadoras aproveitam o fresco para comer. Os cães de gado vêm à parede ver quem passa e detêm-se desconfiados até que nos deixem de ver. A estrada sobe, desce, uma ou outra pequena recta. Aqui nesta estrada andei eu a partir pedra, mais ali à frente já te digo onde quando lá passarmos. Vieram uns homens lá de baixo do Porto para abrir o caminho e eu, meu pai e mais um punhado de homens de cá a partirmos pedra com uma marra de manhã à noite. A mim só me davam meia jorna, puxava pelos costados tanto como os outros mas ainda não tinha idade para ganhar jorna inteira. Eram outros tempos. O alcatrão só veio muito depois já eu tinha feito a tropa. Avançando sempre. Passamos por uma aldeia e um homem no seu andar moroso, regador na mão, responde-nos “então ainda tendes uma boa caminhada pela frente”. Saímos da povoação, isto antes não chegava até aqui, a aldeia ficava toda lá em baixo do outro lado da ribeira, depois começaram-se a fazer as casas novas, estas ruas já não as conheço. Andamos mais um par de quilómetros, viramos à direita e chegamos a um lugar chamado Trapo. No Trapo era onde se apanhava a camioneta para Bragança, onde na altura chegava a estrada. A paragem ainda lá está. Feita de granito e relativamente bem conservada para o estado de abandono em que vive. Tem uma lareira. Às vezes até trazíamos um pouco de lenha connosco para nos aquecermos. Eu nunca tinha visto uma paragem com uma lareira. Acho que pouca gente deve ter visto tal coisa. Achei uma coisa tão diferente e curiosa, meio pré-histórica. Um monumento. [à atenção da CM Vimioso] Paramos mais à frente para dividir uma laranja. Por pouco tempo que ainda vamos a meio. Pela estrada seguimos até Pinelo, perguntamos ‘depois da ponte qual é o caminho’. Pela direita dizem-nos uns. Pela esquerda garantem outros. Vamos andando. Um cruzeiro e depois outro. Os dois assinalam 1952. Deixamos a aldeia e o alcatrão ao cabo das 9 horas pelo anunciar sumido dos sinos da igreja. As subidas começam a puxar pela barriga das pernas, o sol aquece e os casacos guardam-se na mochila. Chegamos a um alto e vemos a ponte romana lá muito em baixo. Parece minúscula. Depois da ponte uma encosta grande, espera-nos uma subida íngreme, inclinadíssima. Mas primeiro é preciso descer até lá ao fundo. Afinal a ponte não é minúscula, pelo contrário, imponente e de uma altura respeitosa. De estilo romano. Como é que se faziam obras daquelas num sítio daqueles não se percebe bem. São coisas que ficarão sempre meio incompreendidas. O Rio Maçãs corre bravio e vigoroso este Verão. Bem haja ele. A partir daqui é sempre a subir, não há volta a dar. Bebemos um gole de água e escolhemos o caminho da direita. O passo mais lento na subida. Encontramos um casal a regar umas árvores recém-plantadas. De onde vindes e de quem sois. Feitas as apresentações e descobertas as afinidades não é por aqui era pela esquerda. Mas podeis atalhar por esta propriedade e apanhá-lo ali ao fundo. Atalhamos, retemperamos forças e subimos. Às tantas quase de gatas de tanta inclinação. Sol, suor e pó. Assim é o caminho e assim é a vida. Estamos já a entrar pela vila, começam os paralelos mas a encosta ainda não acaba. Chegados ao cimo, olhamos para trás. Para quem goste do género a paisagem é simplesmente deslumbrante. Agreste. Natural. A ponte vista de outro lado, o vale em baixo, os montes ali desde o princípio dos tempos. Os olhos ficam rendidos mas as pernas já não podem parar. Atravessamos a vila e regressamos ao alcatrão. Três quilómetros, dizem-nos. Acumula-se o cansaço e a ânsia de que cada curva seja a última, até que o antevemos ao fundo. Uma súbita energia e eis que já cá estamos. Missão cumprida. Valeu a pena, pelas paisagens e pelo resto. Trocamos um abraço. Eu e meu pai chegamos ao São Bartolomeu. Caminhando.

Manuel João Pires