José Mário Leite

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SETÚBAL

No pretérito dia 10 de maio foram apresentadas na Assembleia Municipal de Setúbal, duas moções de censura, ambas com resultados idênticos: rejeitadas! Por razões e com expressões diferentes. Das respetivas motivações e das circunstâncias que lhe deram origem, já muito se disse e discutiu. Pouco há a acrescentar. É outra a razão que me traz a este tema. A moção apresentada pelo PSD que, para além de condenar a atuação do Presidente da Autarquia, pedia a sua demissão, não tinha, em qualquer dos cenários, possibilidade de ser aprovada, pois não contava com o apoio do Partido Socialista e, mesmo que juntasse todos os restantes partidos da oposição, não chegava para superar os votos dos Deputados Municipais filiados na CDU. Já a do PS, censurando igualmente o Presidente e também a equipa de vereação da CDU, reclamando a constituição de uma Comissão Eventual de Fiscalização da Conduta da Câmara Municipal e dos serviços do Município no Acolhimento de Refugiados Ucranianos, e que teve a abstenção dos sociais-democratas, reuniu 13 votos a favor (juntando 3 votos aos seus 10, correspondentes aos deputados municipais socialistas). Seriam suficientes para ultrapassar o voto contra, os eleitos na lista da CDU, mas não chegaram para superar a rejeição dos comunistas porque aos eleitos diretamente pela população, aquela formação política soma, mais cinco dos presidentes de Junta que distorcem (queira-se ou não) a clara vontade, expressa nas urnas, pelos eleitores setubalenses. O chumbo de qualquer das moções não traz, evidentemente, qualquer dano irreparável, porém, não há como não considerar uma depreciação da democracia quando a representação política é significativa e seriamente desvirtuada. E é ainda mais grave porque, como foi publicamente divulgado, o motivo invocado pelo Partido Socialista foi o de que a fiscalização do Executivo Municipal deve ser levada a efeito pela Assembleia Municipal. O problema é que este órgão vê a sua representatividade distorcida pela inclusão dos Presidentes de Junta. Não só porque, independentemente da maioria, absoluta ou relativa no executivo que lidera, cada um deles vota de acordo com a sua vontade, há uma forte dependência do Presidente da Câmara por razões óbvias! É essa também, se outras mais não houvesse, uma razão para a criação, institucionalização e fortalecimento da ANAM (Associação Nacional de Assembleias Municipais) para que, entre outros objetivos possa pugnar por uma maior e mais justa representação dos seus membros, bem como para uma efetiva independência da Câmara Municipal, associada, nomeadamente em termos de quadro de pessoal e de financiamento. Esse desígnio está, seguramente, na origem da enorme adesão que tem despertado, desde a sua criação, em Mirandela, onde foi claro o empenho das autarquias nordestinas que, ao que julgo saber, já todas aderiram aquele organismo, com exceção de Moncorvo, paradoxalmente, um dos fundadores e subscritores da respetiva escritura pública.

A INFLAÇÃO segundo Costa

O termo “inflação” deriva do latim inflatio de inflare com o significado de assoprar (flare) para dentro (in). Era um termo ligado à medicina, nomeadamente aos inchaços provocados por tumores e outros tendo sido apropriado pela teoria económica, nos Estados Unidos, em meados do século XIX para caracterizar uma desvalorização generalizada do valor do papel-moeda. Mais tarde o fenómeno evoluiu, ganhou complexidade e atraiu outros conceitos, mais intrincados e de difícil compreensão, na sua plenitude, por leigos como eu, como sejam “deflação”, “desinflação” e “hiperinflação”. Não tenho, obviamente, conhecimentos suficientes para discorrer sobre qualquer um destes assuntos. Seria pois, avisado, que não me aventurasse por esse labirinto onde, ao que nos é dado ver, nem os especialistas têm uma plataforma segura de entendimento unânime. O denominador comum passa pela aceitação de ser um conceito complexo, de origens variadas e de consequências, potencialmente, imprevisíveis, a primeira delas, a sua durabilidade no tempo, garantindo alguns ser temporária, enquanto outros afirmam, perentoriamente ter vindo para ficar. O melhor será manter a foice bem longe de tal seara. Porém... O primeiro-ministro, que também não é economista nem tem, ao que se saiba, reconhecidas competências na matéria, veio simplificar e elaborar sobre o conceito e sobre a forma de lidar com ele, em linguagem comum. Esta inflação, ao contrário da que nos afligiu, em décadas anteriores, não resultou da desvalorização da moeda, nem de fatores nacionais. Não é interna, foi importada. Implica, no imediato, como é natural, uma perda do poder de compra. A forma mais óbvia de o recuperar, ou minimizar, seria, naturalmente, aumentando os salários na devida proporção. “Não!” diz o primeiro-ministro. “O aumento dos ordenados irá provocar um aumento dos custos de produção que se refletirá nos preços dos produtos finais, contribuindo para o agravamento da inflação. Se o fizermos, estaremos a promover uma espiral inflacionária! Temos de evitar esse cenário.” Parece fazer sentido! Contudo... Tomemos como boa a explicação de Costa. Seguro é que a subida dos preços vai aumentar a receita fiscal. O Orçamento de Estado tem, pois, uma folga maior. Portanto, nada obsta a que os salários dos trabalhadores das áreas não produtivas possam e devam ser atualizados, sem contribuir com um cêntimo para a evolução da inflação. Médicos, professores, funcionários da Administração Local e Central... podem, sem qualquer risco, verem atualizadas as suas remunerações. É, precisamente, nesses, que o Governo pode (e deve) interferir diretamente. Quanto aos privados... Então o desígnio nacional não era abandonar a competitividade por via dos salários baixos e basear o PIB, cada vez mais nas exportações? Se a inflação é, essencialmente, importada, a atualização dos preços por via dos salários (que são mais baixos que os praticados nos competidores que importam) não comprometem a concorrência das empresas nacionais. Provavelmente as coisas não são assim tão simples... Mas, se não são, então não simplifiquem!

AINDA A COVID (lições e ensinamentos)

Enquanto em Xangai vinte e cinco milhões de pessoas foram, de novo, enclausuradas em casa, por cá, tiram-se as máscaras. O alívio desta medida está expresso pela ministra da Saúde, Marta Temido, numa fotografia divulgada pela comunicação social e é, claramente, partilhado por todos. No início de 2020 as medidas eram as mesmas em todo o mundo. A diferença de atuações deve- -se a realidades que, partindo do mesmo ponto comum (a existência de uma pandemia altamente contagiosa e desconhecida até então), chegaram a pontos bem diversos. O alívio nas medidas de prevenção é possível pela criação, nos dois últimos anos, de um ambiente com um expressivo maior nível de segurança. Devido às vacinas! Sobretudo, devido à rapidez na sua obtenção, de forma eficaz e segura. Tal deveu-se não só ao enorme investimento de capital, mas também e sobretudo à colaboração ativa das entidades reguladoras que aceitaram, na área da saúde, o conceito de sandboxes regulatórias. Numa conferência na Faculdade de Medicina do Porto, promovida pelo Health Cluster Portugal, Francisco Serdoura do colaboratório 4LifeLab veio esclarecer o conceito. As entidades reguladoras são essenciais para garantir a segurança dos produtos desenvolvidos pelas farmacêuticas e demais laboratórios. Para isso fazem cumprir um rigoroso e securitário pacote legislativo. Porém é possível criar um ambiente especial, limitado, a tal caixa de areia experimental, onde é recriado o ambiente real mas onde as regras podem ser quebradas porque toda a evolução da experimentação é acompanhada, em contínuo, pelas autoridades reguladoras, que são chamadas para o grupo e consultadas, previamente sobre todas as ações que, propositadamente, saem fora das regras estabelecidas, para que nessas exceções, não haja qualquer risco para os participantes. Consegue- -se assim uma maior rapidez no complexo e moroso processo de investigação e comercialização de novos fármacos. Esta é, nos tempos atuais, uma das componentes do sucesso na atividade das empresas farmacêuticas, como bem explicou, na mesma conferência, Francisco Rocha Gonçalves da Sanofi. Há também a capacidade de desenvolver, de forma rápida e segura, novas tecnologias de produção dos medicamentos e testes de diagnóstico, como, igualmente, ficou evidente durante a pretérita (assim esperamos) pandemia. Mas não só. O uso de tecnologias de informação permite o acesso a uma quantidade crescente de dados e, sobretudo, ao seu tratamento adequado. Os Biobancos (em expansão acelerada) e demais repositórios de informação clínica de doentes permitem traçar perfis de doenças e indiciar caminhos de sucesso para o tratamento de doenças e patologias. Mas, a enorme dimensão dos registos e das propostas disponíveis traz um problema: como, na maioria dos casos, se navega em águas ainda desconhecidas, não se deve descartar nenhuma das hipóteses que contenham possíveis soluções promissoras, mas, sendo tantas e com tantas alternativas em cada uma delas... é impossível segui-las a todas. Daí que a maior das preocupações dos responsáveis por estas áreas seja a de... ERRAR DEPRESSA! Na inovação, é o aparecimento e reconhecimento do erro que propulsiona o sucesso. Quanto mais rápido acontecer, maior será o êxito! Ora aí está uma lição para os poderes públicos com funções executivas.

AS LIÇÕES DA HISTÓRIA

Há quem, nesta altura, alerte para a “necessidade” de conceder à Rússia uma vitória nesta sangrenta, horrenda, hedionda e desumana guerra que a mesma Rússia iniciou em solo ucraniano. Uma das razões invocadas passa por lembrar que foi a forma humilhante como a Alemanha saiu, derrotada e vexada, da Primeira Grande Guerra Mundial. É verdade que a meteórica ascensão de Hitler e dos seus sequazes foi possível pela exploração do sentimento de revolta do povo alemão, martirizado não só pelo revés militar, mas também, e sobretudo, pelas dificuldades económicas resultantes das pesadas sanções que lhes foram impostas pelos vencedores, agravadas pela recessão económica iniciada com o colapso financeiro internacional iniciado com a brutal queda da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.

Ninguém duvida que uma derrota do exército de Putin, na guerra da Ucrânia, vai provocar um sentimento de união dentro da Federação Russa, havendo, inegavelmente, a possibilidade
do surgimento de um qualquer movimento populista que tente congregar sentimentos de revolta contra a “união ocidental”. Contudo, o momento histórico que deve ser tido como base de comparação, para a situação oriental, no leste europeu não é este. A humilhação soviética ocorreu já, em 1989, com a queda do muro e a desagregação da URSS. E foi, exatamente, explorando
a frustração com o abandono dos glorioso futuro socialista, imposta pelos vencedores da Guerra Fria, que Putin e os seus seguidores chegaram e dominaram o poder no seu país.
A invasão da Ucrânia, com as suas motivações (a defesa de um “espaço vital”), a sua brutalidade e o criminoso ataque mortífero a populações civis, bem como a ligeireza como são cometidos odiosos crimes de guerra, tem de ser cotejada com a decisão do Terceiro Reich de anexar a Checoslováquia e, de seguida, com a invasão da Polónia.
As indecisões das potências ocidentais, a credulidade nas promessas hitlerianas de não ir além daquilo que, a cada momento, já havia conquistado, permitiu que a seguir caíssem a Dinamarca, a Noruega, a Bélgica, a Holanda, a França, a Jugoslávia, a Grécia e o Luxemburgo. Seguindo-se a incursão na Rússia e o bombardeamento da Inglaterra. E o que permitiu toda esta “expansão”,
imparável? Provavelmente a vontade, de muitos dos dirigentes de então, de, a seguir à entrada em Varsóvia e ao início da perseguição aos judeus, em vez de “escalarem a guerra”, optarem por promover a paz, “negociando” com Hitler e concedendo-lhe ganhos que satisfizessem as suas reivindicações. Porém, foi a condescendência com o Fuhrer que impulsionou e alargou o conflito
para níveis nunca vistos até então, a uma destruição brutal e um gigantesco número de mortos, militares e civis. O fomento bélico veio da boa vontade para com o invasor. A paz só foi possível depois da resistência, da oposição e da derrota dos exércitos atacantes.

TEMOS GOVERNO!

Quarta-feira, dia 30 de março tomará posse o vigésimo terceiro governo constitucional. Há três linhas definidoras da composição governativa, no que toca à ocupação das pastas ministeriais e que espero que sejam mantidas na nomeação dos Secretários de Estado com que completará este processo: Política, Paridade e Continuidade. Este é um governo de personalidades com carreira política substantiva. Os titulares têm, na sua maioria, o que se costuma designar por “peso político”. Um ministro não deve ter atuações diretas e ou concretas quotidianas, mas definir as linhas programáticas de atuação e delegar a sua execução na estrutura do ministério que, essa sim, deve comportar técnicos altamente qualificados que as devem seguir e implementar, independentemente das suas opções e afiliações partidárias, legítimas mas que não devem interferir na sua atividade profissional. A definição de estratégias orientadoras, destinadas à melhoria das condições de vida dos cidadãos e ao progresso das empresas e instituições, coordenadas e ajustadas com os restantes ministérios de que igualmente dependam ou que impactem, é a natureza da atuação política, no exercício do poder. É natural e bom que um governo, cujo programa (político) foi sufragado maioritariamente pelos eleitores, chame os seus melhores quadros, para o executar. Sem excluir, obviamente, os independentes que, igualmente, lhe possam dar adequada forma. Pela primeira vez a maioria das pastas é atribuída a mulheres. Não por causas meramente estatísticas, mas por reconhecimento de capacidade, conhecimento e competência. Os casos de Mariana Vieira da Silva e de Elvira Fortunato são exemplos evidentes. A primeira porque a sua ascensão resulta, exclusivamente, do seu mérito, com provas dadas, (seria bom que os detratores que no passado reclamavam que a sua entrada para o Governo se devia ao facto de ser filha de quem é, se retratassem ou, pelo menos, reconhecessem a injustiça das suas críticas) e a segunda porque a sua inteligência e talento são distinguidos internacionalmente. A continuidade não é um bem absoluto, em si. Pelo contrário, muitas vezes é necessário provocar ruturas para quebrar o marasmo, para interromper trajetórias erradas, para refrescar e fomentar o empenho em novas soluções. Contudo, é bom que os ciclos políticos se cumpram integralmente. Sempre. E, no caso presente, muito mais. Por causa da pandemia, por causa da incerteza do futuro e, sobretudo, por causa da guerra. Após as eleições, quando elas são ganhas pela oposição, não podendo os governos serem, imediatamente substituídos, os que se matem em funções, fazem- -no com capacidades diminuídas. Estão na lembrança de todos as cenas constrangedoras de visitas e atuações públicas de ministros que ainda o são, mas já com prazo (curto) para deixarem de o ser. É um período que tem de existir, para garantir a legalidade e conformidade do processo mas deve ser, sempre, tão curto quanto possível. Este ano, em situação deveras complexa, a tomada de posse do novo Governo foi adiada por mais um mês... fruto de uma atuação irresponsável, lesiva dos interesses nacionais, dos responsáveis do PSD que, receando perder mais um deputado, impugnou o apuramento de resultados das eleições no círculo da Europa. Nem quero imaginar os prejuízos que viriam para o país e os danos na imagem internacional se a política internacional, a representação nacional e a defesa estivessem a ser conduzidas por responsáveis diminuídos nas suas capacidades e autoridade.

NATO? PARA QUE SERVE, AFINAL?

Nos idos anos setenta, a par da emissão diária da primeira e, talvez, mais famosa telenovela “Gabriela”, passava na RTP, semanalmente, à segunda-feira o extraordinário concurso televisivo, “A Visita da Cornélia”, apresentado pelos saudosos Raul Solnado e José Fialho Gouveia. Teve, entre outras, a virtualidade de revelar ao público vários talentos e gravar na memória dos telespetadores, cenas e atuações que perduram como as atuações do nosso conterrâneo Tozé Martinho e da sua mãe, Tareca. Lembro- -me, particularmente, de um sketch teatral trazido à cena, se a memória não me atraiçoa, por Hugo Maia de Loureiro. Nessa cena o cantor representava o papel de um fanfarrão, acompanhado por um irmão mais novo a quem um rufia ameaçava. O fanfarrão fazia peito e voz grossa para com o rufia dizendo-lhe que se tocasse no irmão se iria arrepender. O rufia dava-lhe um tabefe e o fanfarrão continuava a ameaçá-lo garantindo que se repetisse o gesto havia de se haver consigo. E ele repetia. O irmão mais novo queria desistir, mas o fanfarrão não o deixava e insistia. “Ora bate lá, outra vez, se és capaz!”. E o outro batia. E nada lhe acontecia.

Se a NATO não tinha qualquer intenção de incluir a Ucrânia, por que razão lhe fez crer que sim?

Se a Ucrânia não é relevante para a defesa da comunidade ocidental representada na OTAN, então não devia, NUNCA ter-lhe sido acenado com a possibilidade de pertença. Sendo certo que o povo ucraniano tem o direito de decidir se quer aderir ou não, igualmente é à NATO que cabe a decisão final se aceita ou não o putativo pedido de adesão. Em casos de geoestratégia, a este nível, não pode haver ingenuidades. O alargamento deste grupo de defesa militar até às fronteiras do principal opositor não pode ser decidido de ânimo leve. Ou tem uma importância de grande relevo ou não tem. Se não tem, então, por muito que o povo ucraniano quisesse, tal não era possível e ponto final, não havia qualquer discussão. Mas, perante a tirânica vizinhança e ameaça real de invasão, para impedir o deslocamento para oeste da linha divisória, podia ser entendido que era crucial prevenir tal “tentação” incluindo mais um país no Tratado do Atlântico Norte, se este assim o quisesse. Mas, neste caso, teria de haver a disposição, firme, inabalável e destemida de enfrentar todas as consequências! Dado o cenário atual e os trágicos desenvolvimentos no terreno é bom olhar, de forma desapaixonada e com realismo o que está a acontecer e os anseios de cada um. Comecemos por aqui. A Ucrânia, país invadido, massacrado pela força aérea russa que, desrespeitando todas as convenções internacionais destrói hospitais e infantários, vira-se para a NATO e pede que seja decretada uma zona de exclusão aérea. Não pede a intervenção no terreno, nem o envolvimento dos outros países no conflito. E o que recebe como resposta? Que, sendo razoável o seu pedido, não o fará porque isso pode significar o confronto direto com a Rússia. E então? Tem medo de enfrentar o Kremlin? Se tem medo de o enfrentar... serve, para quê, então? Não o faz porque não há suporte legal. E que legalidade existe no bombardeio de populações civis, na morte indiscriminada de mulheres e crianças, no ataque a colunas humanitárias e na destruição de estruturas habitacionais e de apoio às populações?

Tecnológicas Reinado e/ou (in)dependência

Os recentes ataques informáticos ao grupo Impresa, à revista Visão, aos Laboratórios Germano de Sousa e, sobretudo, à Vodafone, vieram evidenciar a dependência da tecnologia, nos dias de hoje. É recorrente o clamor contra o enorme poder que as grandes empresas tecnológicas detêm, patenteado, claramente, pelos acontecimentos recentes. O Facebook, a Amazon e a Google têm sido acusados de serem uma ameaça à liberdade e à democracia e que as operadoras de internet e, ainda mais, as de telecomunicações criaram com os seus clientes e utentes uma dependência crescente tornando-as, cada vez mais, imprescindíveis, ao dia a dia dos cidadãos. Qualquer uma das multinacionais tecnológicas detém um poder enorme (quiçá exagerado) de influenciar o dia a dia de cada um de nós. Podem, inclusive, condicionar a forma de vida, a maneira de pensar, o modo de julgar, em última análise as escolhas que diária e individualmente fazemos e, até, as opções políticas com que contribuímos para o governo comum. Tal, sobretudo depois da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América, tem vindo a ser exacerbado por vários comentadores e agentes políticos. Seria bom, porém, tentar fazer um juízo justo e ponderado sobre as mais-valias que, indubitavelmente, a tecnologia nos oferece, nos dias que correm e o preço a pagar por elas. E, sobretudo, os que se queixam da exagerada influência que as corporações exercem sobre a opinião dos cidadãos, deveriam deixar de condicionar a análise que cada um deve fazer, em liberdade e sem restrições. Falando na primeira pessoa, sei bem que as populares aplicações on-line, rastreiam aos meus acessos e navegações na rede, as minhas preferências lúdicas e profissionais, as minhas tele-compras, entre outros dados que, numa análise muito restrita, invadem e diminuem a minha privacidade. Dão-me, em troca, graciosamente, acesso a vários serviços úteis para o meu conforto quotidiano. Para isso disponho-me a ficar exposto à publicidade invasiva e insistente. A publicidade e o convite ao consumo de comodidades e necessidades, não é de agora. Nem é dos nossos dias a dificuldade em lhe escapar, sobretudo a que nos aparece nas televisões e nos placards da via pública. E dessa, para além da informação específica, útil ou não, nada mais era oferecido como compensação. Pelo contrário o acesso livre e fácil à net é recompensado com a disponibilização graciosa de um serviço de notícias sobre todo o mundo, informações válidas e valiosas (algumas nem tanto, é verdade) sobre várias áreas do conhecimento e do entretenimento e são-me disponibilizados, sem qualquer acréscimo de custo, dicionários e enciclopédias que, no passado, eram caros, mais complicados no uso e necessitavam de atualizações periódicas. Para além disso o uso da tecnologia foi importantíssimo na pandemia para contactar familiares e amigos, bem como para manter a atividade profissional. Duvido que os pormenores da minha vida encerrem valor parecido, na ótica das gigantes tecnológicas. Soube, recentemente, que um jornal regional digital apregoava a sua independência absoluta do poder local e dos agentes económicos mais poderosos porque a sua popularidade lhe granjeava rendimentos suficientes com a publicidade paga pela Google sem qualquer outra contrapartida. À escala regional a empresa do Silicon Valey não só não é controladora como, pelo contrário é um agente libertador dos controladores habituais!

A Gulbenkian e a água

Calouste Sarkis Gulbenkian, refugiado da Segunda Grande Guerra que a ditadura portuguesa de direita acolheu, em Lisboa, fez fortuna a negociar petróleo e interesses petrolíferos tendo deixado à Fundação que criou, ricos ativos nessa indústria. Os rendimentos da atividade industrial em hidrocarbonetos foi, durante seis décadas, uma das principais fontes de receita da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta dependência dos combustíveis fósseis terminou, recentemente, com a alienação da Partex. Para além de outras atividades e realizações, condicentes com a nova era, mais ecológica da instituição da Avenida de Berna, decidiu apoiar projetos que visem o uso racional da água, o petróleo do século XXI. No âmbito do Programa de Desenvolvimento Sustentável lançou duas ações. Uma, de atuação direta, para a realização de um estudo para determinar o valor da água no setor agroalimentar, já realizado, cujas conclusões foram publicadas na obra “O Uso da Água em Portugal – Olhar compreender e atuar com os protagonistas chave” que está disponível para download na página da Fundação e outra, na sequência desta, apoiando projetos que visem este desiderato cujas candidaturas estiveram abertas entre julho e agosto do ano passado. O “Apoio à demonstração na gestão da água de rega” pretende contribuir para o uso mais eficiente de água na agricultura, apoiando entidades com conhecimento e experiência na gestão da água e que se disponham a trabalhar com outros representantes do setor agrícola. A Gulbenkian anunciou, recentemente, a lista dos cinco contemplados. O naipe de entidades apoiadas é diverso e abrange, não só um espetro alargado de atividades agrícolas como igualmente uma significativa dispersão geográfica. Associações de produtores e Institutos regionais e nacionais que apoiam a cultura e os produtores e estudam a teoria e a prática da atividade agrícola, sedeados por todo o país, a título individual ou agrupados em áreas de interesse. Igualmente as áreas cobertas vão desde os cereais, as oleaginosas, legumes, até, obviamente à vinha. Despertou-me a atenção o projeto GOTA que pretende Gerir, Operacionalizar e Transferir o uso eficiente da Água, na vinha (de onde resulta o feliz acrónimo) na região duriense, com especial enfoque no Alto Douro. Espera-se que os resultados destes projetos possam beneficiar, numa primeira fase, obviamente, os associados das instituições proponentes mas que, igualmente, contemplem ações de divulgação e promoção que façam chegar a todos os interessados, as conclusões e benefícios com eles alcançados. Tal, para além da contribuição indispensável dos beneficiários do apoio concedido, da própria Gulbenkian, a quem interessa a maior divulgação, dispersão e difusão dos resultados, deverá contar com a colaboração ativa das Câmaras Municipais a quem o objeto de estudo e melhoria deva interessar por contribuir para o progresso e desenvolvimento da população concelhia, no interior, que continua a ter uma elevada componente rural. É a re-edição, de outra forma e noutros moldes, de um dos mais emblemáticos e bem sucedidos programas da Gulbenkian, como foram as Bibliotecas Itinerantes a que os municípios responderam, adequada e oportunamente, com a instituição das Bibliotecas Municipais.

Das maiorias aos direitos constitucionais

A hipotética Maioria Absoluta de um dos partidos concorrentes às próximas eleições legislativas tem sido tema de pré-campanha e será, certamente, na campanha, como se a mesma pudesse ser um objetivo em si, uma opção dos eleitores a nível individual. Ninguém vota para que um partido, qualquer que ele seja, tenha ou não maioria ou minoria. A existência dessa circunstância é um resultado do conjunto dos votos de cada um e não uma escolha de cada um. O voto colocado na urna é atribuído, na sua totalidade a um partido. Mesmo quem não é adepto de maiorias mono-partidárias, ao votar, não o faz com essa intenção. Pelo contrário, ao fazê-lo quer atribuir ao partido da sua escolha, o maior número de votos possível. Imagine-se que, por mera abstração, para fundamentar esta tese, havia, no espetro partidário, dois grandes partidos, um, o partido A apelando à maioria absoluta e outro, o B opondo-se à mesma. Assumamos, para o mesmo efeito, que a opção do eleitorado era claramente, em mais de cinquenta por cento, contra a tal maioria. Então, os adeptos da maioria de um só partido votariam no A e os que a não queriam, no B. O que é que acontecia? O partido B sairia dessa eleição, com uma votação absolutamente maioritária. A forma do eleitorado manifestar a sua concordância com as propostas apresentadas a sufrágio era dar a maioria a quem defendia a representação minoritária e dando a minoria a quem apelava ao contrário. O eleitorado rejeitava a proposta de uma maioria... dando maioria a quem a não queria... A Constituição consagra a cada cidadão o direito a manifestar a sua opção através do voto. E esse direito não pode ser coartado por circunstancialismos para além dos consagrados no texto constitucional. O confinamento, por doença ou por proteção profilática, não pode ser motivo suficiente para diminuir ou coartar tal prerrogativa. E se o exercício de um direito colidir com o direito de um semelhante? Ou o direito à saúde e à segurança não é igualmente uma regalia inalienável de cada um? Se não pode ser negado a qualquer cidadão o acesso à mesa de voto, pela simples razão de estar infetado com a Covid19, poderá ser condicionado, em circunstâncias de absoluta segurança, a quem não está? É, obviamente, um problema, já largamente enunciado e denunciado cuja razão de existir, unanimemente é atribuída à incompetência dos políticos ativos deste nosso país. Foram incompetentes! Porém, sem falsos populismos, é reconhecido que a qualidade dos membros da classe política tem vindo a descer, com o tempo e, relativamente a isso, tal como acontece nas empresas e outras organizações, não é possível dissociar tal fenómeno das baixas remunerações auferidas por eles. É um facto: em Portugal, os políticos são mal pagos! Quem defende que, mesmo assim, os salários ainda deviam ser mais baixos... entende que a incompetência ainda não é suficiente e deveria ser maior... a menos que o salário não seja a principal retribuição pela sua prestação. E isso é perigoso. Perigosíssimo! Eu acho que não é de confiar quem, sendo político em Portugal, venha reclamar que o que ganha (e não rejeita) é demasiado e deveria ser menos... substancialmente menos. Há limites para tudo. Até para o populismo.

Carta à minha neta (Nascida em 2019)

Amélia, minha querida neta, apesar de todas as evidências em contrário, que na tua curta existência se assumem como uma suposta realidade uniforme e sem exceção, a normalidade não é a que tens constatado. A sociedade que te acolheu no final da segunda década deste milénio é significativamente diversa daquela que te foi dado conhecer e analisar. A humanidade que, em fevereiro de 2019 te recebeu, festivamente, olhando- -te nos olhos, sem reservas, beijando-te as bochechas e apertando-te em calorosos abraços, de cara descoberta e circulando livremente por todos os lados sem reservas de monta, começaste a observá-la usando, por defeito, na cara, uma máscara que, por mais personalizada é sempre impessoal, por mais elaborada é sempre mais feia que o mais feio dos rostos; vivendo, normalmente, isolada e receosa de se encontrar com conhecidos e até desconhecidos; desinfetando, as mãos, até à exaustão sempre que entra num novo espaço, banalizando o saudável ato de as lavar com frequência; fugindo de aglomerações e escondendo-se à menor suspeita da proximidade de qualquer cidadão com febre, tosse ou outro sinal de enfermidade; cumprimentando-se com acenos, toques de cotovelos ou – há bem pouco tempo pareceria insano, raiando a loucura – substituindo os francos apertos de mão aberta fechando-se sobre outra depois de a apertar, por um soco seco de punho fechado que, mesmo querendo aproximar, inevitavelmente, afasta quem se pretende cumprimentar! Não, minha querida neta, esta não é a humanidade que te abriu os braços e à qual pertences, por pleno direito, fará, brevemente, três anos! Mesmo que tu não lhe conheças outra atitude e maneira de ser, esta gente que hoje se ajoelha perante um inimigo estranho, persistente e obstinado, já levou de vencida adversários maiores, mais perigosos, mais letais e mais assustadores. Esta gente, que somos todos nós que desde há milénios povoamos este planeta, derrotámos, na nossa existência, guerras, fomes, pestes e cataclismos; gigantes, ditadores, assassinos e feras sanguinárias; forças incontroláveis da natureza, caprichos de deuses sanguinários e vingativos, maldições de bruxas poderosas e catastróficas profecias de necromantes e adivinhos; revoluções, massacres, tsunamis e violentas erupções. Demos a volta ao mundo em barcarolas movidas a remos e velas, explorámos a profundeza dos oceanos e a infinitude do universo, analisámos a imensidão das galáxias e a natureza das partículas mais ínfimas, inventámos sistemas de localização universal e construímos máquinas complexas e inteligentes e, mesmo agora que estamos acantonados por algo estranho a que a maioria dos cientistas se recusa a dar-lhe a categoria de ser vivo, apesar da sua enorme capacidade de replicação e mutação, que não tem um único neurónio apesar do “comportamento” aparentemente inteligente resistindo, eficazmente à sofisticadas estratégias de combate, mesmo confinados e assustados, desenvolvemos em tempo recorde vacinas seguras e eficazes e identificámos comportamentos seguros, cada vez mais ajustados e menos perturbadores. Por isso, minha neta, apesar dos plúmbeos tempos e das ameaças constantes e permanentes, no início deste novo ano planetário, nas vésperas do teu terceiro aniversário, quero despertar a tua esperança para os dias radiosos que te esperam, para os sorrisos que te iluminarão, para os abraços que te aquecerão, para o convívio normal, sem restrições, sem receios, sem preocupações, incertezas nem ansiedades. Bom Ano.