José Mário Leite

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Pedro, o Lobo, os Lagos do Sabor e o Coelho da Páscoa

O projeto dos Lagos do Sabor é do melhor que apareceu nas Terras Transmontanas. Tive conhecimento dele apenas em 2016 por causa de uma entrevista que o Presidente da Câmara deu à revista “Passear” e fiquei rendido à qualidade, inovação e potencial que apresentava. Surgiu-me, de imediato, uma dúvida. Tendo sido este projeto completamente desenvolvido, desenhado e esquematizado no mandato do Aires Ferreira que, durante a campanha anterior falou, legitimamente, de todas as mais valias que tinha trazido para o concelho, por que razão não o publicitou? Não tive oportunidade de lho perguntar mas deduzo que era do interesse municipal que tal anúncio se fizesse quando houvesse garantias da sua concretização. O sentido de utilidade pública remeteu-o ao silêncio, mesmo com prejuízo pessoal. Assim fossem outros. Quando foi anunciado, pela primeira vez, em 2016, como referi, supus que a sua implementação estaria para breve, pelas razões aduzidas. Não aconteceu! Tendo tido conhecimento do seu anúncio “oficial” e formal, em junho de 2018, fui, propositadamente, à Torre de Belém para participar no lançamento de tão elevado desígnio. Para meu espanto e desalento, a cerimónia não teve o impacto que merecia (espaço muito exíguo, poucos convidados, impressa ausente), apresentando um filmezinho razoável, teve como nota de realce um belo discurso do Presidente da Câmara de Moncorvo. Disso dei conta, em tom elogioso, na imprensa distrital. Agora é que era. Mas não! Não aconteceu nada de relevante, Houve umas tentativas de os levar a inscrever no Livro dos Records, com iniciativas de gosto duvidoso e nem isso resultou apesar da campanha, em má hora, levada a cabo. Tal como na conhecida história de Pedro e o Lobo, quando for feito o anúncio do verdadeiro e genuíno empreendimento, com os barcos-casa e as casas palafitas podem os verdadeiros interessados estarem já tão desconfiados e desiludidos das anteriores proclamações que não lhe liguem nenhuma. Assim se perdendo o melhor projeto turístico que, na última década, nasceu no nordeste! Para piorar andam agora a vender uma ideia, engraçada, e com algum sucesso, noutras paragens, baseada na instalação de baloiços em alguns dos pontos estratégicos. Parece que, em número e com resultados concretos para a economia local, muitíssimo inferiores aos esperados para um projeto daquela magnitude. Provavelmente satisfaz quem não consegue, consequentemente, ambicionar e ser capaz de concretizar um pouco mais. Faz-me lembrar alguém que tendo ovos de ouro que, não os conseguindo vender, enquanto tal e pelo seu real valor, no curto prazo, resolve pintá-los com motivos coloridos, como se fossem meros e simples ovos da Páscoa pois são esses que estão a ter sucesso de venda, na banca mais próxima!

Excelente? Oh diabo!

O sonho de qualquer político é ver repetida, por todos, uma frase da sua autoria... exceto se a mesma, em vez de ser um troféu for antes uma proclamação falhada ou que o tempo se encarrega de demonstrar ser, claramente, um erro. Foi assim com Passos Coelho quando ameaçou com a vinda do Diabo e a geringonça se veria em tais apertos que tudo quanto o governo fizera até então teria de ser, inexorável e vingativamente, revertido. António Costa e todos os seus apoiantes e seguidores repetiram, até à exaustão, que continuavam à espera do mafarrico, cada vez que o seu antecessor criticava o que quer que fosse na atuação governamental. Tivesse o social-democrata nervos de aço, como se espera de um estadista, e tendo aguentado até março de 2020, poderia reclamar a chegada do belzebu, vindo do oriente, em forma de coronavírus. Contudo, é óbvio que não era este o tipo de efeito anunciado pelo anterior primeiro-ministro. Dado que, reconhecidamente, não tem poderes divinatórios, foi vítima do excesso de confiança, de uma análise errada e, sobretudo, da ausência da necessária prudência. Que venha o primeiro político a atirar uma pedra! Excesso de confiança (a raiar a arrogância), erro claro de análise e total imprudência levou o atual ocupante de S. Bento a qualificar como excelente o atual ministro da Administração Interna, julgando, com isso, estancar a avalanche de críticas de que estava a ser alvo. Excelente, porquê? Porque assim o entende António Costa que tem o direito de fazer a avaliação pessoal que muito bem entender. Contudo Eduardo Cabrita não é um assessor ou consultor da Presidência do Conselho de Ministros cuja competência deveria ser ajuizada pela chefia governamental e pronto. O governante é mais que isso. Sendo ministro, a sua atuação tem de ser positiva não só na perspetiva do chefe do governo, que, sendo imprescindível, não é suficiente pois que o que faz, bem ou mal, tem boas ou más consequências para o povo português que é quem deve superintender a todos os desígnios da administração pública. Não sendo excelente, porque, obvia e objetivamente, não é, vai cometer falhas e a cada falha do seu amigo, companheiro político e camarada de governo, António Costa vai ouvir a repetição enfática, corrosiva, acintosa de que aquele “belo serviço” é obra da excelência do seu Ministro da Administração Interna. O caricato é que se está mesmo a ver que a distância para a excelência é tão grande que o próprio Primeiro Ministro discorda da sua própria avaliação. E, sendo um dos políticos mais experientes no ativo deveria estar devidamente avisado para este tipo de deslize. Mesmo que estivesse convencido que a sua análise estava correta, como, seguramente pensava Passos Coelho com o anúncio da vinda do Diabo, deveria refletir no velho e acertado rifão popular que estipula que ninguém é bom juiz em causa própria e ponderar bem antes de emitir juízos que lhe marcarão a atuação governativa. A propósito da exaltação de qualidades, há algum tempo, uma pessoa amiga dizia- -me, a propósito de alguém: “Se pudesses comprá-lo pelo que ele realmente vale e vendê-lo pelo que ele acha valer, fazias um excelente negócio”. Não pude deixar de me lembrar, neste período eleitoral, de alguns autarcas que se os seus eleitores o comprassem pela sua real valia e vendessem pelo valor que eles garantem ser o seu... o ganho era tanto que ficavam todos os munícipes ricos!

Mais duradoura que o mármore e o metal

Em dezembro de 1983 a Imprensa Nacional – Casa da Moeda fez uma edição, fac-similada do livro Bragança e Benquerença escrita pelo coronel Albino dos Santos Pereira Lopo em 1988 e 1989 e dada ao prelo em 1900 na Imprensa Nacional. O ilustre brigantino justifica a sua obra dizendo que “Não tem Bragança uma história, e ahi ficam alguns materiais, que pouco a pouco fui descobrindo e ajuntando para ella;”. Passa depois ao relato de vários episódios documentados ou deduzidos, bem como à descrição de muitos monumentos, achados arqueológicos, ruínas e restos da passagem dos nossos antepassados que, em boa verdade, constituem a trama da História de Bragança. Mas não a fazem só por si. E foi, precisamente, por reconhecer tal evidência que a autarquia bragançana encomendou ao CEPESE a excelente obra “Bragança, das origens à Revolução de 1820” como complemento da outra, “Bragança na época contemporânea – de 1820 até aos nossas dias” com valiosos contributos de vários e reputados autores, coordenadas ambas por Fernando de Sousa. Estes quatro volumes fazem a história de capital do nordeste baseados nas evidências históricas existentes desde há muito (desde os primórdios) e é assim que Bragança ganha a história que no início do século XX não tinha. Porque, no dizer de Borges, as “palavras são mais duradouras que os mármores e os metais”. Este postulado foi enunciado pelo escritor argentino na sequência da história do poema “Kubla Khan” publicado por Samuel Taylor Coleridge em 1816. Esta obra é o fragmento de um sonho do autor, uma vintena de anos antes em que lhe fora descrito o palácio mandado construir por Kublai Khan. A conclusão de Jorge Luís Borges resulta da observação factual: o grandioso edifício mandado erguer pelo sucessor do grande e temido Gengis Kahn há muito que desapareceu mas o poema do autor britânico, apesar de incompleto, continua intacto e perdurará. Ao contrário das construções em pedra, os livros têm a virtualidade de, podendo ser facilmente transportáveis e havendo sempre vários originais da mesma obra literária, resistem à erosão do tempo e dos ataques que lhes possam ser movidos. O Estado Islâmico destrui milhares de livros mas não há notícia de nenhuma perda irrecuperável, para a humanidade, ao contrário do que aconteceu com a cidade histórica de Palmira que já não há qualquer hipótese de recuperação. As estátuas, as rotundas, as pontes suspensas e até os museus, poderão ter muitos anos de vida mas, por muito que durem, nunca terão a mesma longevidade das palavras que, impressas, são eternas. Numa altura de campanha eleitoral, os autarcas e candidatos deveriam refletir se querem ter uma atuação cultural efémera ou que perdure para lá dos seus mandatos provisórios. Finalizando e em jeito de conclusão, é necessário e adequado reconhecer que uma atuação equilibrada não implica a exclusão de nenhum dos campos em análise. O edil brigantino demonstrou, ao contrário de outros, menos esclarecidos, que é possível erguer museus, instalar rotundas, levantar estátuas, patrocinar celebrações históricas sem deixar de apoiar a escrita e os escritores. Porque é com palavras, “mais duradouras que o mármore e o metal” que se faz a história.

One Sardinha and a cup of ginjinha!

A minha relutância, de há dezenas de anos, em rumar ao Algarve estival e cosmopolita, passa, precisamente, pelo incómodo de me sentir estrangeiro, na minha terra. Sensação parecida há de ter sido sentida pelos tripeiros, sobretudo os que rumaram à Ribeira, na passada sexta-feira, dia 28, vésperas da final da Taça dos Campeões europeus de futebol. Mas igualmente aqueles que, nesse fim de semana, em vez de permanecerem na sua terra, visitando, como habitualmente os vários e bons restaurantes do resto da cidade, se ausentaram, como foi devidamente noticiado. O evento, anunciado em parangonas, deveria trazer muito prestígio à Federação Portuguesa de Futebol, provavelmente trouxe; animar a Baixa, animou, em demasia; fomentar o negócio turístico, nem por isso, pelo que se sabe; acontecer no cumprimento de todas as regras sanitárias, definitivamente, NÃO! Dizem-nos que a tal “bolha” existiu mesmo, para a maioria dos adeptos, que os riscos da passagem britânica eram diminutos e que os malefícios serão poucos, largamente compensados pelos benefícios. Garantem-nos que o pior de tudo foi o mau exemplo. Nada mais errado. Tendo sido um péssimo exemplo, não foi o pior. O pior reside, precisamente, na questão sanitária! É verdade que os viajantes ou estavam vacinados ou foram testados e que a maioria veio na tal “bolha”. O problema é que o teste, faz-se, não para aprovar os negativos, mas para afastar os positivos. Ter um teste negativo não garante que não se esteja infetado! De outra forma as várias quarentenas exigidas, ao longo do processo, não fariam qualquer sentido. Por outro lado a bolha só funciona se for geral e completa. Imaginem que um engenheiro estava a vistoriar uma barragem e diziam que noventa por cento do paredão estava sólido e que a existência de uma parcela que poderia vazar, não deveria ser motivo de preocupação... O mesmo se passa com a pandemia. Vêm dizer-nos, com ar satisfeito que, dos 5.600 testes (uma pequena parte da totalidade) “apenas” dois tiveram resultado positivo! Um só era demais!!!! Porque andaram pelo Porto, em grupo, sem máscara e sem qualquer afastamento social requerido. Não podemos ignorar que, por causa de ser antiga potência colonizadora, a Inglaterra é a porta de entrada da terrível variante indiana do Covid19! – Eram turistas – desculpou o autarca da Invicta! Sem dúvida! Mas por serem turistas não estão dispensados de observarem as regras e ditames em vigor na terra que visitam. E nem a economia pode justificar tudo. Além de que, a julgar pelas declarações de Daniel Serra da Associação Nacional de Restaurantes, o pouco que entrou nas caixas tripeiras, à conta da cerveja e algumas sandes fica muito longe do que, mesmo em pandemia, ficou a faltar nos restantes restaurantes da cidade nortenha. Ora, querendo, e bem, agradar a todos quando a escolha se impõe, é bom que os responsáveis definam bem qual o tipo de turistas que mais se devem acarinhar. Mas, mesmo que fossem dos que normalmente trazem valor e deixam boa maquia, igualmente é necessário optar pela alternativa mais adequada. Esperemos que o “balão de oxigénio” de um fim de semana alargado, não se converta em saco asfixiante nos restantes meses. Será que ninguém aprendeu com os erros do passado? Não haverá quem possa recordar que, com o propósito de salvar o Natal, se perderam os Reis, o Carnaval e até a Páscoa? E, infelizmente, lamentando muitas vidas humanas!

L’outoridade de la rezon

No dia 19 deste mês de maio, o Movimento Cultural das Terras de Miranda (MCTM) publicou um pequeno vídeo em que, sob o título “Terras de Miranda, Mulheres Intemporais, Heroínas Anónimas” apresenta, um retrato de um rosto feminino, envelhecido e com rugas muito marcadas, da autoria da pintora Balbina Mendes, comentado pela própria. A artista mirandesa quis homenagear as mulheres da sua terra contemporâneas da construção das barragens do Douro Internacional. O traço vincado e monocromático traduz, segundo a autora “a quelor de lanuite que era a quelor de lálma na delor que se perpetuaba na perda temperana de ls filhos”. Aquelas rugas profundas são uma das várias parcelas da fatura do progresso que, entre muitos outros, o ministro do Ambiente desfruta na comodidade do seu gabinete, que João Matos Fernandes, a custo deixou para vir ao Praino, não para mercar fumeiro e artesanato local, mas para trazer, segundo as palavras do MCTM “uma mão cheia de nada”, uma migalha perante o longo historial de proveitos já arrecadados bem como a choruda venda que se anuncia. A esta voz temerária que, felizmente, nem o vergonhoso ataque ao mirandês José Maria Pires conseguiu atemorizar e, muito menos calar, juntou, inconformado, a sua, o autarca de Mogadouro: “A meio das reuniões tínhamos cerca de 440 milhões... [para] ...projetos como regadio ou reativação da linha férrea do Sabor.” Mais do que justificado desagrado e frustração de Francisco Guimarães, relatados pelo Francisco Pinto, na edição do Mensageiro 13 de maio e onde igualmente relata que, Nuno Gonçalves, pelo contrário “disse que os 91,7 milhões anunciados são suficientes para os projetos anunciados”! A audiodescrição de Balbina Mendes fez-me recuar cinquenta anos, para o momento da descoberta, do livro do padre Telmo Ferraz, “O Lodo e as Estrelas”, traduzido para mirandês pelo saudoso Fracisco Niebro (Amadeu Ferreira). Não é de agora que as vozes incómodas das Terras de Miranda se fazem ouvir e não é fácil fazê- -las calar. Quando, depois de concluído o empreendimento hidroelétrico do Baixo-Sabor, os Barrais da Vilariça foram inundados, foi deliberado na Assembleia Municipal de Moncorvo, convocar o responsável de EDP para vir explicar qual era afinal o papel da segunda barragem denominada de “contra-embalse”. Só que quando foi contactado informou que esse assunto já tinha sido abordado em reunião com o Presidente da Câmara. Este confirmou, por e-mail, alegando que esse era um assunto do Executivo. Provavelmente tinha razão. O problema é que não foi publicado o teor das explicações da EDP, se é que as houve e, por outro lado, quando o Douro encheu de novo, os Barrais voltaram a ficar inundados destruindo as culturas de um ano inteiro! Por onde anda a ambição que deveria presidir à liderança do concelho? Quando e onde se perdeu a capacidade de falar alto e grosso a entidades que, como a EDP, ganham milhões com os recursos naturais da nossa terra?

Moncorvo Digital

No Dia Mundial do Livro, 23 de março, o Município de Torre de Moncorvo apresentou uma plataforma dupla, com a digitalização da sua Biblioteca Municipal e do seu Arquivo Municipal. São produtos de grande qualidade desenvolvidos por uma empresa nacional incubada na Universidade do Minho. A transição digital é um dos grandes desafios das várias instituições, por todo o mundo e, obviamente, as autarquias não podem alhear-se deste desígnio, inevitável, inelutável. Ao surpreender-nos, de supetão, a demolidora COVID19 atirou-nos para a dependência crescente das tecnologias digitais para assim minorar os imensos transtornos. Dificilmente haveria melhor altura para implementar esta ferramenta. Pode argumentar-se que teria sido mais útil há um ano quando, por um lado, ainda andávamos estonteados, à procura de soluções e alternativas para as rotinas diárias e de outra periodicidade e, por outro, era incerta a duração do período negro que agora já se apresenta menos escuro e se vislumbra o dealbar do regresso à normalidade ou ao que dela mais se aproxima. Sem dúvida que sim. Mas, sendo verdade, igualmente é uma realidade que este desenvolvimento, pela sua importância e pelo impacto que pode e deve provocar, tem uma importância que ultrapassa, temporalmente, esta e outras possíveis epidemias que possam surgir. É uma ferramenta de futuro que adequa o município à modernidade e que, sendo útil para nós, será, não tenho qualquer dúvida, necessária para as gerações vindouras a que já é hábito chamar de “nativos digitais”. Mais do que a urgência deveria ser a qualidade a nortear o seu projeto, desenho, implementação e manutenção. E assim foi. A escolha da Keep, uma “spin-off” da Escola de Engenharia da Universidade bracarense foi adequada e acertada. Os engenheiros minhotos colocaram à disposição dos interessados uma plataforma de grande qualidade e, sobretudo, de fácil utilização, intuitiva e poderosa, no que diz respeito ao seu uso e benefício para o utilizador que é, neste caso, o que mais interessa. Sendo de iniciativa municipal, dada a riqueza e importância do acervo, é de utilidade muito mais alargada, ultrapassando as fronteiras concelhias, regionais e, mesmo, nacionais. Por isso é importante realçar a característica bilingue do aplicativo. O facto de, por razões profissionais, trabalhar com um computador com definição do inglês como linguagem por defeito, permitiu-me verificar que a opção do idioma, pela plataforma, é automática o que valoriza e facilita a sua utilização por utentes de paragens mais longínquas. O Catálogo da Biblioteca tem a informação necessária e suficiente. Já no que respeita ao Arquivo, a apresentação da digitalização de muitos dos seus documentos (pretendendo que, no futuro, o sejam, na sua totalidade) é uma mais-valia assinalável. Estão de parabéns, a Autarquia, os colaboradores e dirigentes da Biblioteca Municipal e, principalmente, os utentes destas estruturas, com destaque, óbvio, para os moncorvenses.

O Julgamento de Sócrates sob a luz do Direito

No final de 2013 ou princípio de 2014, não sei precisar bem, João Araújo, depois de almoçarmos em Mogadouro, mostrou-me o livro que andava a ler: “O Julgamento de Sócrates, sob a luz do Direito” de um conhecido autor brasileiro. Tinha-lhe sido oferecido pelo antigo Primeiro-Ministro. Nenhum de nós viu, no título, qualquer premonição. Pouco mais de um ano depois, fizemos viagem, juntos de Lisboa para o Nordeste. O advogado era reconhecido e abordado, com palavras de apoio e incentivo, em todos os lugares onde parámos. Falámos do assunto, de forma ligeira, respeitando o sigilo profissional. Retive uma frase do causídico: “Não há, nem vai haver, na acusação, uma única prova de corrupção!” Na altura “apenas” se falava no grupo Lena e, como mais tarde escrevi, a própria contabilização dos concursos ganhos pela construtora, dificilmente suportavam a teoria da compra dos mesmos, pelos milhões “garantidos” pelo ministério público. Ao ouvir o despacho de pronúncia do juiz Ivo Rosa, lembrei-me do falecido advogado que tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Mas também me lembrei do filósofo grego e, igualmente e por arrasto, do juiz espanhol Baltazar Garzón que garantiu que o maior erro da justiça acontece quando, em vez de se focar nos factos, se concentra no homem e faz dele o seu alvo. O filósofo grego foi acusado de corromper a juventude e desrespeitar os deuses. Mas, o seu julgamento demonstrou que o que incomodava a elite ateniense era o próprio Sócrates em si e não os “factos” que lhe eram imputados. A atuação do juiz madeirense foi e continua a causar perplexidade. Mas, analisando- -a cuidadosamente, o maior espanto é o espanto que ela causa. Ivo Rosa diz que não há nenhuma prova de corrupção. Mas isto não é uma convicção. É um facto! Não há, apesar de sete anos de intensa e dedicada investigação. Perante a valorização de alguns testemunhos, o magistrado foi acusado de parcialidade. Teria valorizado algumas declarações, em detrimento de outras. É verdade. Mas, perante afirmações opostas, umas incriminando o acusado (de Hélder Bataglia) e outras ilibando-o, o juiz optou por valorizar estas últimas. Pois bem, não podendo aceitá-las todas, por incompatíveis, seguiu o princípio de “in dúbio pró reo”. Devia fazer de forma diferente? Provas indiretas? “Se a rua está molhada, é porque choveu!”. Ou porque orvalhou? Não me pronuncio sobre a PT, nem o Vale de Lobos, porque não tenho dados fiáveis e contabilizáveis para tal. Mas não é fácil aceitar que os concursos ganhos pelo grupo Lena lhe tenham proporcionado lucros superiores aos aceitáveis (e justos) num montante tal que pudessem justificar o pagamento de dezenas de milhões de euros de luvas! Mas se formos por caminhos de indícios, fica algo que não cola: José Sócrates foi genial a construir um esquema de corrupção que não deixou qualquer rasto, nem a mínima ponta concreta por onde pegar... mas foi totalmente inepto para recolher o produto da sua ação... quando essa seria a parte mais fácil de concretizar recorrendo a offshores, valorizações de participações e outros artifícios legais usados por tantos a quem a justiça, sabendo, não consegue criminalizar. Continuo sem ter a certeza se José Sócrates é ou não corrupto, embora simpatize com a teoria do João Araújo que o apresentava como arrogante megalómano servindo-se da vaidade do seu amigo Carlos Santos Silva, para quem a amizade com um homem que ele idolatrava e a quem reconhecia genialidade e capacidade, cuja inteligência e poder os deslumbravam, justificavam as centenas de milhares que lhe “emprestava”. Não descarto que o Ministério Público esteja convencido das acusações que faz. Mas não concordo que prenda para investigar e não posso aceitar que se possa querer condenar alguém sem exibir provas dos crimes que se lhe imputam.

O Corso Orçamental

Na década de noventa, do século passado, quando convivia de perto com vários autarcas, um deles, candidato a novo mandato explicou-me o fundamento dos milhões de contos de reis que apresentava no seu programa para que não pudesse ser desmentido pelos seus opositores, coisa que temia. “Reuni todos os projetos que estando já aprovados ou, pelo menos candidatados e somei o valor total, global, independentemente dos anos em que se vão realizar. São projetos de futuro. É verdade que os eleitores vão induzir que serão realizados no próximo ano, ou, os mais cautelosos, no próximo mandato. Mas, isso não está explícito no que digo... embora a forma como o anuncio possa, efetivamente, induzir que assim seja entendido”. Não há memória que tenha sido contraditado. Outra via, menos avisada e muito menos inteligente, foi adotada por um autarca, em exercício. Em vez de falar de futuro resolveu glorificar o passado e apresentou na página do município o que ele chama de “investimento” o que, sendo verdadeiro, seria mais convincente e de maior impacto. O problema é que os milhões publicitados não aderem facilmente à enorme carência de realização nessa área... o que, obviamente, convida a visitar os dados oficiais contabilísticos certificados. A primeira nota que surge de imediato é a ausência de Contabilidade Analítica, apesar de ser obrigatória desde há muitos anos. Esta situação ilegal ou resulta da incompetência do autarca (que há vários anos que promete implementá-la no ano seguinte) ou, pior que isso, tem medo do que ela possa revelar e evita-a para poder mascarar a sua auto-elogiada gestão municipal. De qualquer forma, analisando a mais recente prestação de contas publicada verifica-se que o que é chamado de investimento resulta do somatório das verbas das despesas de capital que não são, nem de perto, nem de longe, a mesma coisa, como facilmente se pode verificar. Logo no resumo aparece uma verba significativa, quase vinte por cento, dizem respeito a amortização de empréstimos. Ora esta não representa, seguramente, qualquer investimento! Se a essa verba forem somados os montantes que se transferem para outras entidades, em rubricas de capital, mas que se destinam a despesas correntes, como a recolha e tratamento de resíduos, entre outros e, igualmente, o incompreensível, pelo astronómico valor total atingido, item de “outros”, exagerado em qualquer divisão da contabilidade geral, inaceitável na classificação de capital, o valor real do investimento efetivo desce para menos de metade do anunciado e, pasme-se, fica mais consentâneo com a perceção que se tem da atividade municipal. Dir-se-á que estas artimanhas são habituais e não são novas. É verdade que a habilidade de mascarar os números e alterar a realidade ajudou muitos autarcas a ganhar eleições, mas também houve quem as tivesse ganho sem romper com a verdade e a transparência. Mesmo que assim não fosse seria sempre boa altura para arrepiar caminho e nada como denunciar as dissimulações, começando, obviamente, pelas mais toscas e pouco inteligentes.

Borges a Muralha da China e a pseudopolítica

No seu livro “Outras Inquirições”, publicado pela primeira vez em 1952, Jorge Luís Borges, discorre sobre os dois “grandes” feitos de Shi Huang Ti: O começo da construção da Grande Muralha da China e a destruição, pelo fogo, de todos os livros anteriores a ele. Queria alcançar dois objetivos simples e concretos: Impedir a invasão do império chinês (que ele unificara), dificultando a transposição das novas fronteiras aos Bárbaros que a circundavam e abolir todo o passado para que a história começasse consigo já que, apropriadamente, se fez batizar com O Primeiro, ordenando que quem lhe sucedesse fosse O Segundo e por aí adiante durante dez mil gerações (o equivalente à eternidade, na cultura chinesa). Na história antiga não se fala em ditadores porque todo o poder era ditatorial ou pretendia sê-lo. A ambição ditatorial era consentânea com a chegada ao poder ou com a sua manutenção e os que “falhavam” este desígnio, normalmente claudicavam como aconteceu recorrentemente, mesmo entre os sucessores diretos do Primeiro Imperador Chinês. O regime democrático, concebido, desenvolvido e disseminado pela excelsa cultura grega veio alterar radicalmente os pilares do poder. Não acabou com as ditaduras, mas confinou-lhes a “legitimidade” e veio introduzir uma nova classe de liderança: a levada a cabo por tiranos que, podendo ser eleitos e jogando com as regras da democracia, para ascenderem ao poder, as usam de forma distorcida, enviesada e soez, para dela beneficiarem e cimentando-o se manterem no poder. Tal como antigamente, também há os que, pela sua capacidade e competência ascendem a essa categoria, por mérito próprio e há, igualmente, os que, por muito que se esforcem, não passam de aprendizes e não atingem o patamar cimeiro e estabilizador. Aqui surge uma nova diferença – os aprendizes de ditadores, têm vida curta porque o sustentáculo não admite meias-tintas; ou é ou não é. Já na classe dos tiranos existe uma variedade de gradações pois que, sustentando-se em eleições que, no exercício do seu poder conseguem condicionar, são capazes de se aí se irem mantendo, dando ares de grandes senhores mas que, na verdade, não passam de arrogantes executores das exceções que a lei democrática, imperfeita, como tudo o que é humano, lhes permite. Foi a eles que Montesquieu se referiu quando proclamou “Não há maior tirania do que a que é exercida sob o escudo da Lei” Não espanta pois que estes iniciantes, não podendo já fazer muralhas, modifiquem, abusivamente as que existem, para lhe dar cunho pessoal e que, sendo-lhes proibido queimar livros, ataquem a memória de quem os escreveu, para tentar alterar a história. Outra nota significativa e caracterizadora pode ser a forma como lidam com quem lhes contesta a atuação. Em vez de contestarem com razões, as razões que aos outros assistem, refugiam-se em classificações. Chamam- -lhes “pseudopolíticos”. Querendo dizer que são diferentes do padrão que, obviamente, tomam como certo, o seu e a sua atuação. Porém, as árvores conhecem-se pelos frutos. Um bom político, tendo dedicado grande parte da sua vida pública a combater quem lhe antecedeu deveria ter-lhe ganho pelo menos uma contenda direta ou, no mínimo, ter-lhe alguma vez, retirado a maioria absoluta... Ou, pelo menos, ter deixado, para memória futura, alguma obra de vulto, no ambiente, na formação superior...

Autárquicas 21

O processo eleitoral já começou. Já se vão conhecen - do os candidatos e recandidatos aos lugares autárquicos em disputa, todos, é certo, mas especialmente o de Presidente de Câmara pois é nele que se centram todas as atenções do próximo processo eleitoral. Apesar do estranho ambiente, perturbador, sem dúvida, dificultador, sobretudo nas zonas rurais onde o contacto pessoal é de alta importância, já são visíveis, no terreno, as movimentações de todos os putativos atores, especialmente os oponentes ao poder estabelecido. Substituir quem está sentado na cadeira do poder não é, reconhecidamente, tarefa fácil, tanto assim que é assumido como verdadeira a afirmação, vulgarizada, precisamente, quando aplicada às eleições autárquicas que, normalmente ninguém as ganha, quando muito, perde-as quem detém o poder. As várias edições já ocorridas vieram dar razão a tal proposição que aumentando a dificuldade dos aspirantes, igualmente acrescenta a responsabilidades dos atuais detentores se, igualmente, forem contendores. Por uma razão simples de que ninguém pode assegurar melhor a continuidade do que aquele que já está ao comando na máquina municipal. Embora, na maior parte das vezes, o pleito eleitoral se cinja à discussão de personalidades é um erro cair nessa armadilha. Porque o que está em litígio não é propriamente um emprego, bem ou mal remunerado, isso agora não é relevante, mas o futuro de toda uma comunidade que dependerá, é verdade, da vontade, querer e determinações do que encabeçar a lista vencedora. Quem pensar que para que tudo mude basta mudar o cabeça de cartaz, está muito enganado. É preciso que a mudança, quando e se acontecer, traga inerente um novo roteiro, uma agenda inovadora e, provavelmente, uma estratégia de rutura. Só analisando todas as propostas em debate será possível decidir em consciência e optar, livremente, pelo rumo que cada um acha melhor para o trajeto comum que reveste a vida em sociedade. Entristece-me sempre que, perante alguém que surge com ideias inovadoras, sejam mais ou menos valiosas, em vez de as ver rebatidas, porque não, ser imediatamente alvo de acusações de caráter. A estratégia de ataque ao mensageiro, quando a mensagem não agrada é muitíssimo mais velha que a Sé de Braga, mas nunca contribuiu para melhorar a vida de ninguém. Parecendo serem “apenas” mais umas eleições autárquicas, não é exatamente assim, no caso presente. A nível local porque o momento histórico que vivemos que, sabemos, antecede volumosos investimentos destinados à recuperação da desastrosa situação para onde fomos arrastados pela tremenda pandemia que se abateu sobre o mundo, pede-nos a escolha de quem podendo decidir os investimentos certos e necessários, pode, igualmente, desperdiçar esta oportunidade agravando ainda mais a situação depauperada atual. A nível nacional vai haver um foco, inevitável, na contenda da capital. Com certeza que não foi com a cadeira municipal como último horizonte que Carlos Moedas abandonou o tranquilo e prestigiante lugar na administração da Fundação Gulbenkian, afastando- -se da possibilidade que, não sendo certa, era apontada como muito provável, de ascender ao melhor lugar executivo do território lusitano, a fazer fé nas palavras atribuídas a Marcelo Caetano, quando foi indigitado para presidir ao Conselho de Ministros.