O LENÇO
No lançamento do livro “Um Homem Comum num Tempo Incomum”, onde o autor, António Lacerda Sales, relata a sua experiência enquanto médico e governante no dramático período da pandemia do COVID-19, a uma pergunta da assistência afirmou, sem qualquer rebuço: “entre seguir a lei e salvar duas crianças, escolheria salvar as crianças”. Esta afirmação foi uma alusão clara ao célebre caso das gémeas brasileiras tratadas no Hospital Santa Maria, com o medicamento mais caro do mundo, o Zolgensma.
Independentemente do juízo de valor e ético sobre o seu envolvimento no célebre caso que abalou a política portuguesa, é difícil contestar essa afirmação. De tudo quanto se sabe sobre os contornos políticos e jurídicos do incidente, tornado público e amplamente comentado, seja por ser necessário encontrar um bode expiatório ou porque o comportamento do governante deixou muito a desejar e não cumpriu as regras estabelecidas, é bem provável que o antigo Secretário de Estado venha a ser condenado em tribunal pela sua conduta.
Porém, se o político deveria ter sido mais prudente e menos voluntarista, já ao médico, que sendo-o antes e depois de assumir responsabilidades no Governo, não deixou de o ser enquanto integrou o Ministério da Saúde, não seria de esperar outra atitude. A sua afirmação apenas reflete a consequência lógica do seu juramento de Hipócrates, que lhe há de condicionar a vida e comportamento enquanto portador de uma missão a que se comprometeu, por sua honra, dedicar-se.
Não quero com isso dizer que o poder judicial não deva atuar de acordo com a Lei e sancionar tudo quanto houver de sancionável. Não direi uma única palavra em seu desabono. Já quanto ao olhar político sobre o caso, terei toda a tolerância e adesão a tantos quantos, nesse campo, se dedicarem a entender as motivações dos variados intervenientes. E, consequentemente, a maior repulsa por quem, com motivação populista, crendo que é no quanto pior melhor que pode construir um projeto de sociedade. Não só por razões de humanidade, mas pelo apuramento do que, em qualquer dos cenários, aproveita a quem.
Pelo mesmo motivo, me proponho comentar a recente afirmação de André Ventura, que anunciou que o seu partido irá propor que seja proibido o uso do véu ocultando o rosto ou parte dele, em todas as instituições públicas como escolas não religiosas, hospitais, transportes públicos e demais locais regidos ou pertencentes ao Estado. Porque Portugal é um Estado laico. Pois é. E então? Que diferença me faz a mim ou a qualquer um dos leitores que fulana ou cicrana traga a cabeça descoberta, tenha um chapéu ou use um lenço? Incomoda-me, sim, a obrigatoriedade de o usar, mas também a sua proibição. E não consigo descortinar qual a motivação de o fazer… Até porque, aí chegados, seremos iguais àqueles que pretendemos criticar.
Provavelmente é uma questão de “costumes”. Mas aí, alto e para o baile! Lenços na cabeça, a tapar todo o cabelo e parte da cara, SEMPRE houve, em Portugal, sobretudo em tempos idos, na viuvez, nas igrejas e em muitas atividades agrícolas, sobretudo as estivais.
Trabalho numa instituição onde, com frequência, me cruzo com mulheres de lenço na cabeça. E não é por qualquer questão religiosa, antes fosse.